Com "AmarElo", Emicida mostra o grito da periferia deprimida
"Às vezes eu me sinto muito mal, mano. Eu sinto medo de ter feito escolhas erradas a ponto de não poder mudar mais, tá ligado? (...) É foda, irmão, é tipo uma doença essa porra, mano. Parece que essas porra de remédio não adianta merda nenhuma. Mais de um ano, quase dois anos tomando essa porra. Sei lá, eu só precisava falar alguma coisa pra alguém mesmo, mano."
Se você assistiu ao clipe de "AmarElo", de Emicida, Majur e Pabllo Vittar, provavelmente reconheceu o texto aí de cima. O desabafo que se ouve no início do vídeo é uma mensagem de voz real - e emociona. "Muita gente acha que pobre não tem depressão, que tem muito problema pra resolver e não tem tempo pra isso", diz Projota ao comentar o hit de Emicida. "Muito pelo contrário, tem depressão sim. Você fica preso ali dentro. E eu acho que a música tem essa propriedade, essa possibilidade de pautar, colocar o assunto em cima da mesa, mostrar um caminho e dar uma perspectiva. O rap tem muito isso."
"A intenção de começar com uma história tão densa é assumir que na dor somos todos irmãos", disse Emicida em entrevista ao jornal O Globo, ao admitir que o áudio foi enviado a ele por um amigo. "Hoje cedo não era um hit, era um pedido de socorro", canta.
As palavras "depressão" e "ansiedade" estão longe do dia a dia dos jovens das periferias, diz a psicanalista Marta Quaglia Cerruti. A dor é presente, mas o estigma é sufocante. Ao ouvir nomes como Emicida, Baco Exu do Blues, Rashid, Projota e outros rappers que eles admiram falando do assunto e colocando a dor em palavras, o efeito sobre a saúde mental é quase terapêutico, explica Marta, que estudou a imagem dos jovens na periferia que esse estilo de música ajuda a construir.
Projota decidiu se abrir - como fez o amigo de Emicida na gravação - quando percebeu que tinha depressão. "Na minha experiência eu sentia quase como se fosse um vício, e eu só saí quando foi uma decisão minha. Eu parei de fingir que estava bem. A primeira coisa que eu fiz foi pegar meu telefone, fui num grupo que tenho com meus amigos de infância e falei que não estava bem, que eu precisava de ajuda", lembra. "Pra quebrar o tabu, tem que falar abertamente sobre o assunto", diz o rapper.
Eu não queria incomodar ninguém. Eu também acho que eu já dei peso demais pra todo mundo, tá ligado, que gosta de mim, mano. E eu odeio essa coisa de me colocar no papel de vítima, porque eu não sou vítima de porra nenhuma, tá ligado? Mas às vezes não dá, meu, às vezes tem que falar, mano. Eu guardo muita coisa pra mim, tá ligado? Eu demonstro pra todo mundo que eu tô bem o tempo inteiro Trecho da introdução de "AmarElo"
"Achei bom pra caramba, a letra é muito forte, especialmente a introdução do clipe - machuca, né?", resume Projota sobre o clipe. "Você se sente abalado, e é importante que a gente se sinta assim. Na sociedade de hoje é oxigênio saber que a gente ainda se importa com a dor do outro".
"Essa música, com esse formato e esse clipe, trazendo Pabllo, Majur e o sample de Belchior? Tem vezes em que o universo se alinha e você consegue ter várias coisas acontecendo ao mesmo tempo. Essa música foi um desses momentos", disse o rapper Rashid ao TAB.
O clipe fez barulho na internet. No Twitter, rede social com uma pegada mais 'vida real', onde muita gente encontra mais espaço para expressar os sentimentos que não atraem os mesmos likes do que a curadoria cuidadosa dos perfis no Instagram, houve uma avalanche de comentários positivos e emocionados sobre o vídeo e a música.
O auge de depression e anxiety
Falar sobre momentos de dificuldade não é novidade no rap, mas parece ser tendência enfrentar mais abertamente os problemas de saúde mental. O site de letras Genius tem uma ferramenta que permite buscar a frequência de palavras nas letras de hip hop ao longo do tempo, e o aumento da incidência dos termos depression e anxiety (depressão e ansiedade em inglês) foi grande.
Enquanto em 1991 depression representava 0,00015% das palavras nas músicas, em 2017 chegou a 0,00199%, um aumento de 12,3 vezes em três décadas. Happiness (felicidade em inglês), por exemplo, oscilou um pouco ao longo do mesmo tempo, mas o maior crescimento na frequência do termo foi entre 1996 e 2001, quando aumentou três vezes. Em nenhum momento chegou perto da mudança drástica registrada com o termo depressão (clique aqui para ver o gráfico em inglês comparando a evolução das palavras). Anxiety é um dos termos que mais chama atenção pelo crescimento exponencial nos últimos anos. A frequência da palavra nas letras ainda é baixa, mas aumentou quase 20 vezes de 2004 para 2017.
Pedido de socorro
Uma das maiores vozes no assunto, o rapper Baco Exu do Blues já falou abertamente sobre depressão nas letras de diversas canções. "Escondi minha depressão dos meus amigos / Me tranquei em casa à procura de abrigo (...) Os inimigos testaram tanto minha fé que me acostumei a tá disposto a morrer", diz em "Paris". Em entrevista à "Rolling Stone", Baco contou que a música veio em um momento em que ele estava "engasgado" e precisava "expulsar isso de alguma forma".
"A parada que eu mais aprendi com a minha depressão é que assumir meus sentimentos é bem menos doloroso do que guardar e fingir que tá tudo bem. Enquanto a gente for proibido de sentir e admitir que tá doendo, de viver como uma pessoa normal, a resposta vai ser a agressividade iminente", disse o rapper à revista "Trip". Na letra de "Me Desculpa Jay Z", os ecos da depressão também estão presentes. "Tô entre tirar sua roupa e tirar minha vida / Procuro um motivo pra sair da cama e melhorar meu autoestima." No rap En Tu Mira (Interlúdio ESÚ), Baco mandou um SOS explícito. "Fiz um pedido de socorro / Você está aplaudindo / Eu tô me matando, porra."
Papo reto na periferia
Falar de saúde mental não é tendência apenas no rap. O próprio pop vem registrando um aumento no tema, e mesmo fora da música é cada vez mais comum ouvir gente abrindo os sentimentos - em redes sociais, séries e filmes - e procurando ajuda.
Mas o rap tem um diferencial. É através dele que muitos moradores da periferia encontram as palavras para entender e explicar sua própria realidade. Ao pesquisar a imagem dos jovens na periferia da zona sul de São Paulo, a psicanalista Marta Cerruti encontrou na música uma maneira de "falar a língua" deles. "Meu objetivo era pegar as líricas dos Racionais e mostrar o quanto existe uma cultura, uma expressividade que é própria da periferia, e que em nada se identifica com a barbárie que costuma ser associada a ela, apesar de reconhecer essa barbárie", explica a pesquisadora do Instituto de Psicanálise da USP.
E o efeito foi claro. "Eu atendi um menino de 13 anos, considerado analfabeto funcional, que estava em liberdade assistida e o irmão estava preso", relata Marta. "Eu coloquei ele para escutar Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais, e ele falou: 'Nossa, eu quero saber fazer isso.' Eu disse que para isso ele precisava saber escrever. Em dez dias ele estava alfabetizado", conta a psicanalista.
A violência cotidiana é um dos pontos que mais pesam nesse cenário, afirma Marta. "Eles (os jovens de baixa renda que vivem nas periferias) têm uma certa urgência da própria vida, que demanda deles uma posição diferente em relação à saúde mental. Isso não faz parte do vocabulário deles."
Achar que essas mazelas me definem é o pior dos crimes / é dar um troféu pro nosso algoz e fazer nós sumir / tenho sangrado demais / tenho chorado pra cachorro / ano passado eu morri / mas esse ano eu não morro Trecho de "AmarElo"
Para a população negra, a violência é ainda mais presente. Dados do Atlas da Violência 2019, publicado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostram que 75,5% das vítimas de homicídios em 2017 foram indivíduos negros. Essa taxa cresceu 33,1% em dez anos, enquanto a de não negros (brancos, amarelos e indígenas) aumentou 3,3% no mesmo período.
Na entrevista à Trip, Baco disse que a consequência da violência é que toda pessoa negra sofre com depressão, em diferentes níveis. "Todos passam por traumas que podem levar à doença."
"A morte não fica no campo da fantasia para esses jovens", explica a psicanalista. "Ela é muito real. Eles perdem os amigos, os irmãos, as pessoas próximas. E muitas vezes não têm tempo para decantar essas perdas."
Denúncia e esperança
A psicóloga Cláudia Yaísa Gonçalves da Silva também fez do rap seu objeto de estudo no Instituto de Psicologia da USP. "O rapper é aquele que vai denunciar, que vai trazer as questões que os jovens, principalmente das comunidades, estão passando. Ele vai falar daquilo que vivencia, e isso tem um papel muito importante."
Especialmente para o preto periférico, o emocional é político também. Você se sentir pra baixo é uma política que foi imposta nos últimos 500 anos no Brasil pro preto de periferia. Quando você se sente pra cima, é um ato contrário a essa política que vinha sendo aplicada sobre nós Rashid
De jovem que se enxergava nas letras de rap a artista que virou exemplo, Rashid viu as consequências da depressão na avó e em conversas com fãs. Quando um fã se suicidou, há alguns anos, começou a prestar mais atenção no assunto. Hoje, conta que tira um tempo para responder quem o procura.
"Falar disso humaniza. A gente se coloca ombro a ombro com quem está ouvindo e faz a pessoa perder a ideia de que é pecado, de que é uma fragilidade. Todo mundo está propenso (a ter depressão) e a gente tem que se tratar, atravessar esse vale e sair do outro lado gigante", diz o rapper.
O que Rashid sentiu na pele fica comprovado na pesquisa de Cláudia. "A música tem uma função muito importante de resgatar instrumentos pessoais, os recursos que cada um tem diante de dificuldades e problemas muito fortes. O rapper fala: 'Olha onde eu cheguei, tem os amigos, os manos, os irmãos da periferia que formam uma comunidade que nos resgata.' É como se ele falasse: Eu acredito que você também é capaz."
"Aí, maloqueiro / levanta essa cabeça / enxuga essas lágrimas, sério / respira fundo e volta pro ringue / você vai sair dessa prisão / você vai atrás desse diploma / com a fúria da beleza do sol, entendeu / faz isso por nós / faz essa por nós / te vejo no pódio". (Trecho de encerramento de "AmarElo")
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