O barato da cannabis

Uso medicinal e perspectiva de lucro reabilitam planta banida no século 20 e desafiam estigma

Uma nova regulamentação da Anvisa, em vigor desde março de 2020, autoriza a venda de derivados de Cannabis nas farmácias brasileiras com retenção de receita, renovável a cada 60 dias — no padrão dos medicamentos de controle especial.

"Aos poucos, vemos a maconha retomando a sua história anterior à proibição no século 20", diz o professor de História Moderna Henrique Carneiro, da USP (Universidade de São Paulo), que pesquisa a história de alimentos, bebidas e drogas. "Ela sempre foi uma planta medicinal muito importante, não só no mundo oriental e na Índia, mas também em todas as farmacopeias do mundo ocidental."

Aprovada em dezembro de 2019, a mudança é para agilizar, facilitar e ampliar o acesso da substância a pacientes com epilepsia, esclerose múltipla, Parkinson e até dores crônicas. Antes, era preciso fazer um pedido de importação à Anvisa — a autorização podia levar até 90 dias. A expectativa é que o tempo de espera caia para poucas horas: em tese, será possível sair da consulta direto para a farmácia.

Mas a medida está longe de colocar o Brasil na vanguarda do uso medicinal da maconha. Primeiro, porque tem prazo de validade: deve durar três anos, até que haja nova avaliação dos resultados no período. Segundo, porque limita bastante a presença de THC — a substância responsável pelos efeitos psicoativos da planta. As novas regras da Anvisa preveem que os produtos não poderão ter mais de 0,2% de THC (tetrahidrocanabinol).

Isso dificulta o chamado "efeito entourage", uma espécie de sinergia ou combinação de todos os canabinoides que, juntos, proporcionam os efeitos terapêuticos. "Sabemos hoje que 70% das doenças [para as quais se usa Cannabis] são tratadas com a combinação do THC", explica Marcelo De Vita Grecco, sócio-fundador e diretor de negócios da The Green Hub, primeira aceleradora de startups do setor no Brasil.

MERCADO PROMISSOR

As empresas interessadas em colocar os produtos nas prateleiras das farmácias precisarão de uma autorização sanitária para importar a matéria-prima ou tudo já pronto. Isso dificulta a redução nos preços dos produtos, que seguem em torno de R$ 1.000 (um frasco de óleo de CBD), considerando taxa de câmbio, frete e taxas de importação.

Além disso, restringe o potencial de um mercado que tem se mostrado promissor. "O fato de não se permitir o cultivo torna o país dependente da produção estrangeira", afirma Carneiro. "Isso afeta a economia brasileira e até a soberania nacional, porque o país abdica de um ramo inteiro de potencial econômico."

Estados Unidos e Canadá são pioneiros na onda de legalização da maconha. Encabeçados por seu estado mais rico, a Califórnia, que legalizou o uso medicinal em 1996, os EUA têm hoje 33 estados, mais Washingon D.C., permitindo o uso medicinal — e outros 10 que aprovaram também o uso social da maconha. O Canadá legalizou o consumo tanto medicinal quanto social no país em 2018.

Sobram empresas e investidores de olho no potencial do mercado da cannabis. Nos EUA, por exemplo, existem entre 20 mil e 28 mil negócios que atuam no setor, segundo dados do Statista referentes a 2017. São empresas que vão de gigantes da produção e distribuição de insumos, como a canadense AuroraCannabis, com valor de mercado estimado em US$ 5 bilhões, até revendedoras como a MedMen, chamada de "Apple da maconha" por causa de seu visual futurista.

SE PLANTAR, TUDO DÁ

O potencial brasileiro no mercado da Cannabis é grande. Uma projeção da New Frontier Data, feita em conjunto com a The Green Hub, estima que a legalização completa movimentaria R$ 4,7 bilhões, só em volume de vendas.

Outra pesquisa, feita pela startup ADWA Cannabis, em parceria com a UFV (Universidade Federal de Viçosa), aponta o Brasil como um grande player do mercado de exportação, caso liberasse o plantio. O país tem 7,5 milhões de quilômetros quadrados de áreas propícias ao cultivo da planta e poderia movimentar US$ 2,4 bilhões — considerando também o plantio de cânhamo, um primo da cannabis que não tem propriedades psicoativas e é usado nas indústrias têxtil e papeleira.

A mineira Ease Labs, que começou a comercializar Cannabis no Brasil em 2015 e estruturou sua logística no Uruguai, investiu R$ 30 milhões na construção de um laboratório para fabricar seus produtos no Brasil, importando a matéria-prima diretamente dos EUA. A expectativa da empresa é faturar R$ 190 milhões em 2021 e se tornar a primeira indústria farmacêutica focada em Cannabis no Brasil.

"Queremos criar um fluxo de informações, porque quando você explica como a substância age, como conseguimos controlar em laboratório e os ganhos dos pacientes, fica tudo muito claro, e não existem argumentos substanciais contrários", diz Gustavo Palhares, CEO da Ease Labs.

EDUCAR PARA LEGALIZAR

A estratégia adotada pelas empresas que atuam no Brasil segue uma linha semelhante a que defende Palhares: em vez de brigar ou pressionar por legalização ampla e irrestrita, elas apostam em destacar as qualidades medicinais da planta e potenciais farmacêuticos.

"Não vale a pena ficar tocando nesse assunto [o de ampliar a legalização], porque é dar murro em ponta de faca. Temos muito o que evoluir, e é melhor focar no que vai levar a algum lugar", diz o sócio da The Green Hub.

A evolução passa por desconstruir uma imagem, consolidada há anos, de que a maconha seria "uma porta de entrada" para drogas pesadas ou sinônimo de criminalidade. "Existe uma visão demonizadora, que associa a maconha à criminalidade, quando na verdade a criminalidade vem da proibição", explica o professor Carneiro.

A perseguição à planta, cujo consumo remonta há milênios, começou no século 20, liderada principalmente pelos Estados Unidos. Em 1920, com a famosa Lei Seca — que proibia a produção e comercialização de bebidas alcoólicas —, a maconha entrou na vida de muitos norte-americanos. Até então, era restrita a minorias mexicanas, daí a defesa de muitos ativistas de que os nomes "marijuana" ou "maconha" deveriam ser substituídos por cannabis.

GUERRA DE INTERESSES

O chefe da Divisão de Controle Estrangeiro do Comitê de Proibição, Henry Anslinger, tornou a guerra contra as drogas nos EUA quase uma missão pessoal, e na década de 1930 incluiu a maconha na lista de substâncias proibidas, colocando-a no mesmo nível que a cocaína e o ópio.

Há quem diga que o ódio de Anslinger era motivado por outros interesses. O principal deles seria o de favorecer indústrias como a do algodão, que lucrariam com o fim da indústria do cânhamo. O fato é que o cânhamo entrou no mesmo balaio que a Cannabis, e a maconha passou a ser perseguida globalmente.

A virada começou no mesmo país onde teve início a guerra à planta. Hoje, os EUA estão legalizando e anistiando pessoas que tinham sido condenadas por comercializar ou consumir. Foi na Califórnia dos anos 1990 que grupos civis, especialmente a comunidade LGBTQ+, diante da Aids, organizaram-se para obter autorização de uso medicinal.

Os movimentos ganharam força no restante do mundo, na maioria dos casos atrelados a mães de crianças com epilepsia — há diversos estudos que apontam que o canabidiol é eficaz na redução das crises. "Há sempre uma criança", diz Giadha Aguirre de Carcer, fundadora e CEO da New Frontier Data, sobre as pressões da sociedade civil por mudanças nas proibições.

As leis mudaram muito graças a Charlotte Figi, nascida em 2006 e portadora de síndrome de Dravet, que usou Cannabis no tratamento das crises por cinco anos (Figi falaceu em abril de 2020, vítima de Covid-19). No Brasil, o caso mais emblemático é o da menina Anny Fischer, que tem uma doença genética rara que provoca inúmeras convulsões por dia, e cuja saga da família para importar o óleo de canabidiol foi contada no documentário "Ilegal".

BRASIL NA DIREÇÃO CONTRÁRIA

Mesmo diante das mudanças globais, das experiências positivas de pacientes e dos potenciais econômicos da Cannabis, os brasileiros ainda são uma das populações mais conservadoras quando o assunto é legalização da maconha.

Segundo o levantamento Visão Global sobre os Vícios 2019, do Instituto Ipsos, 54% dos brasileiros aprovam a legalização da maconha medicinal — a média global é de 57%. Nos países vizinhos como Chile, Argentina, México e Peru, a porcentagem chega a 76%, 73%, 69% e 64%, respectivamente.

Essa resistência é observada inclusive na comunidade médica: no fim de 2019, em nota, o CFM (Conselho Federal de Medicina) pediu cautela na liberação de produtos derivados da cannabis. A regra atual não permite que médicos prescrevam Cannabis in natura. Já o canabidiol pode ser prescrito somente para o tratamento de epilepsia resistente aos métodos convencionais. Mas não é fácil encontrar quem esteja disposto a abraçar a causa: estimativas não oficiais apontam que somente cerca de mil profissionais brasileiros prescrevem CBD.

Quando o assunto é uso social, o cenário só piora, aponta a pesquisa da Ipsos. O apoio cai para 24%, abaixo da média global de 26%. Nos Estados Unidos, 53% da população é favorável ao uso social legalizado. O curioso, na visão de Carneiro, é que na prática o uso medicinal não se separa tanto do uso recreacional para adultos. "O uso como um tranquilizante para o dia a dia se difunde cada vez mais. É como o álcool, que é uma substância recreativa mas também ansiolítica", explica o professor. "A diferença é que tomar um copo de uísque quando se chega do trabalho é visto como absolutamente normal, ainda que o impacto do álcool em termos de saúde pública seja muito maior [que o da Cannabis]."

Tudo isso distancia o Brasil dos movimentos de legalização. "A resolução da Anvisa é temporária. É um avanço, mas nada definitivo, então faz sentido continuar discutindo", afirma o deputado federal Tiago Mitraud (Novo-MG), que integra a comissão que analisa o Projeto de Lei 399/15 sobre a comercialização de remédios à base de Cannabis. Ele é um dos autores de uma emenda ao projeto para autorizar o cultivo da planta, apresentada junto com o deputado Marcelo Calero (Cidadania-RJ). O deputado se diz a favor das liberdades como um todo, pois não considera que é papel do Estado decidir ou intervir em decisões de foro íntimo. "Até chegarmos ao país que queremos, vamos levar alguns bons anos."

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