Vim pelo meme e era textão

Na era das mídias sociais, eles são a poesia e a prosa do nosso excesso de informação e pressa

Arte/UOL

Acordar, olhar o celular e gargalhar de um meme. Descer a timeline e encontrar um relato impactante em primeira pessoa. Passar o café pensando nesse textão, dividir as reflexões que surgiram a partir dele com uma amiga, mandar talvez a postagem para alguém da família? Bom, bora pagar os boletos. No ônibus, relaxar com as novas figurinhas no grupo dos amigos. No almoço, um vídeo engraçado vai viralizar e com certeza até o fim do dia outro textão vai capturar sua atenção.

Hoje, a mudança de humor em intervalos cada vez mais curtos é influenciada pelo uso intenso das redes sociais. "O mundo virtual tem moldado nossa subjetividade de uma maneira diferente", diz o psicanalista Marcelo Veras, professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia). Dados de 2018 levantados pelas plataformas Hootsuite e We Are Social apontam que o brasileiro fica conectado em média nove horas por dia. Ali, aprendemos a linguagem que melhor funciona, adaptamos o que falar, observamos os usos, as regras não explícitas, (acreditamos que) driblamos algoritmos.

Adaptados a esse idioma que se transforma conforme a plataforma, os memes e textões dominaram a rotina dessa década como modos de a gente rir, repercutir notícias, dividir descontentamentos, colocar o dedo em feridas, relatar injustiças e até se informar. Entraram logo no vocabulário para além da internet: "virar meme", "dar textão".

Suas características também interferiram no jeito de compreender o mundo e expressar sobre o que acontece à nossa volta. Viktor Chagas, professor e pesquisador da Universidade Federal Fluminense (UFF), os vê como manifestações culturais de grande relevância para entender o período e, também, como "extravasadores de afetos".

E não foi pouca coisa que afetou a gente nos últimos tempos.

VIRAR VIRAL

"Muita coisa aconteceu na minha vida de 2016 para cá por causa de um textão", diz o escritor e roteirista Ricardo Terto. Os 7.000 caracteres que ele postou em abril daquele ano falavam sobre crescer no subúrbio sem corresponder ao estereótipo do sujeito periférico e causar estranheza mesmo para aquela pessoa com "textão embasado" de classe média que pouco sabe além de sua bolha. Três anos, vinte mil curtidas e 7.000 compartilhamentos depois, o post segue recebendo comentários.

"Por cerca de um ano encontrei pessoas que me agradeceram dizendo que aquilo falou sobre elas. Eu falei tanto com periferia quanto com classes média e alta que se afetaram por aquilo", diz Ricardo, que acaba de lançar seu segundo livro, "Os Dias Antes de Nenhum".

No documentário "How to Go Viral: The Art of Meme" (Como Viralizar: A Arte do Meme), lançado em abril pela BBC, Amanda Brennan, gerente de conteúdo do Tumblr, diz que "muito da cultura do meme é sobre encontrar sua identidade". Dá para ir além: estudiosos do assunto dizem que as redes sociais em geral são permeadas por essa lógica. Um sentimento de pertencimento, de encontrar seus pares e se colocar no mundo, que faz sentido de feministas a terraplanistas. Que faz sentido para todos.

MUSEU DE MEMES

No caso de Ricardo, esse círculo de afetos garantiu a longevidade de um conteúdo escrito em um formato que, por ter o Facebook como veículo principal, aparece muito associado à ideia de efemeridade. Por mais que o textão seja "ão", assim como o meme ele é uma expressão sintética típica de hoje, explica Viktor Chagas. Mesmo o textão mais longo na verdade é um textinho: faz parte da lógica do espaço em que circula. Diferente do meme, termo cunhado pelo cientista britânico Richard Dawkins em 1976 para falar de expressões culturais que vão grudando e se espalhando pela sociedade, é difícil saber sua origem exata, mas ele ganhou forma e popularidade na rede de Mark Zuckerberg.

A questão é que o assunto do dia pode durar mais tempo, dada a relevância do tema, a identificação que a escrita gera e a circulação heterogênea das pessoas nas redes: nem todo mundo está vendo a mesma coisa que você agora. Hoje, a gente lembra ainda de textões de sete anos atrás e há memes que completaram uma década sendo relevantes ou readaptados. São conteúdos que ecoaram na sociedade, ajudando a gente a lembrar do que aconteceu em tal época. O mesmo processo ocorre com hashtags.

Foi pensando justamente nessa memória que o professor criou em 2017 o Museu de Memes, grupo da UFF que acaba de realizar uma exposição no Museu da República, no Rio. No projeto, meme e textão não são exatamente opostos. "A maneira como a gente trabalha acaba relacionando esses gêneros. Nós compreendemos como memes hashtags coletivas, porque envolvem certo comportamento reiterado. O textão nesse sentido é um gênero de meme", explica.

IN INTERNET WE TRUST

O interesse de Viktor veio da curiosidade em entender como memes eram apropriados pela política. Ele vê tanto memes quanto textões como comunicações complexas. Se por um lado resumem temas (recentemente o MBL assumiu uma 'simplificação exagerada da linguagem política'), por outro podem significar acesso, primeiro contato com um assunto. Uma pesquisa feita neste ano pela consultoria de tendências Consumoteca aponta que 73% das pessoas já souberam de uma notícia política via meme.

"Os memes são uma faca de dois gumes. Tanto no caso deles como do textão, a gente está diante não só de uma experiência de letramento midiático, ou seja, a pessoa precisa entender o formato, como de letramento político. Fazer uma pessoa concatenar os argumentos, condensar a mensagem de forma que superponha camadas de significados, inclusive fazendo uso de uma dinâmica intensa de intertextualidade", diz Viktor.

A catalogação de um formato que parece avesso à ideia de arquivamento ganha dimensão de desafio: cada releitura diz algo, traz uma informação, quase como se houvesse a linha do tempo do meme. Em questão de dias, a frase memética "In Fux we trust" adquiriu sentidos opostos no contexto político brasileiro, por exemplo.

DESLEIXO SOFISTICADO

Assim como Viktor, a artista e professora da FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo) Giselle Beiguelman vê os memes como "parte da cultura política contemporânea". Ou "uma espécie de jornalismo à queima-roupa", diz ela.

Giselle aponta para o fato de eles terem se tornado "língua franca" de grupos de extrema-direita nos EUA. "Não que sejam exclusividade, mas é necessário entender que eles têm uma participação muito forte a partir desses grupos. No Brasil, acho que essa cultura é tão transversal que se torna ainda mais complexa. É importante prestar atenção no quanto seu desleixo politicamente incorreto favorece uma torrente de imagens com conteúdos extremamente reacionários", diz ela, que vê como desafio atual a nova linguagem memética: as figurinhas do WhatsApp.

"Acho que o meme cria quase um movimento estético junto. Porque ele chega com essa cara de amador, e hoje há empresas que fazem o meme assim; ele é a estética da geração Z", diz Marina Roale, que estudou os memes em sua dissertação de mestrado.

A dinâmica entre uma sofisticação (intertextualidade, cruzamento de referências) e um desleixo (estética tosca, palavrão, simplificação) citados até aqui é o que permite, por exemplo, que a Mônica dos quadrinhos transite com muita desenvoltura em memes de política, ou que bebês de quadros renascentistas digam algo sobre nossa vida amorosa. Nos habituamos a ler essas imagens, que não são exclusivamente divertidas, dado que o humor (embalagem do meme) tem função poderosa de reproduzir ideologias e reiterar preconceitos.

INTERNET DE AUTOR

Quando chamado para falar em uma palestra sobre memes, o pesquisador e professor Rafael Grohmann, professor do mestrado e doutorado em comunicação da Unisinos, foi apresentado da seguinte maneira: "Agora vamos falar de um assunto mais leve: memes". Bem, achou errado, mestre de cerimônias. "O meme não é só uma coisa fofinha, ele é mais contraditório, replicando ideias circulantes na sociedade. E aí você vai ter memes racistas, da extrema direita. Por meio dos memes, a alt-right começou a florescer, há um uso político disso", diz Rafael.

Para ele, o fato de haver meme para tudo (futebol, eleição, novela, torcida por casais) se liga a uma "cultura de fãs que acabou se tornando a internet toda". E se essa cultura está presente no meme que conhecemos hoje, ela tem raízes mais antigas, ou ao menos não pode ser dissociada da cultura midiática de cada país, defende o pesquisador. "Quando você pega programas de humor, esportivos, as novelas, há muito essa coisa do bordão que as pessoas começam a usar no dia a dia. Então quando chega a internet, o brasileiro já estava acostumado um pouco com essa lógica, esse estilo. Acho que isso ajudou o meme a se sedimentar na sociedade brasileira", diz ele.

"A cultura do remix é muito brasileira, está na nossa identidade. Por isso, a gente produz tanto meme", observa, na mesma linha, a pesquisadora Marina Roale. Uma particularidade é que o meme brasileiro se descola um pouco da ideia de anonimato, de fóruns e deep web, como é nos EUA. Aqui ele é tão autoral quanto o textão, e muitos memes que usamos podem ser ligados a seus criadores, páginas famosas que se tornaram quase marcas.

MEME NÃO É BAGUNÇA

Em 2014, os jornalistas Ciro Hamen e Matheus Lanieri criaram um perfil para falar "d'O Brasil que Deu Certo". Uma "fatia" da realidade, explica Ciro, "ainda mais hoje que tanta coisa deu errado". A página é uma das comunidades de memes que participa nesta segunda-feira (26) de uma premiação inédita no país, o MemeAwards. Eles recebem hoje cerca de cem imagens por dia, fazendo uma curadoria das mais engraçadas, meméticas no nicho que atuam. Em cinco anos, perceberam como o meme mudou de cara, com forte influência da cultura do WhatsApp, por exemplo. "Usamos muitas imagens de conversas privadas engraçadas que as pessoas nos enviam", contam.

Na seleção, a dupla atenta para não ofender pessoas ou grupos. Nem tudo é uma grande zoeira. Ou "meme não é bagunça", como escreveu o videografista Bruno Galan, criador da página Memeria de Memes Gourmet. "Quando você posta em forma de meme, aquilo entra em você de maneira muito poderosa. Nunca achei que o mundo estivesse ficando mais chato, e sim que estivessem me ensinando a fazer humor de forma a não reforçar preconceitos", diz ele.

A opinião do pesquisador Viktor Chagas é que, ao mesmo tempo em que limitar a apropriação de conteúdo é "problemático para a expressão criativa e a produção científica", há um ponto que diz respeito aos limites éticos. "E aí a gente está falando do potencial que o meme tem de ferir a expressão individual do sujeito. Quando o meme faz uso de humor, é importante prestar atenção a quem esse humor se lança. A gente não pode deixar que um grupo subtraia os direitos de outros", diz.

Dois casos bem veiculados na mídia ilustram os diferentes efeitos de "virar meme" na vida de pessoas com trajetórias distintas. A cantora e atriz Gretchen viu sua imagem protagonizar os mais variados memes na última década. Se no início não curtia muito, hoje ela aproveita essa popularidade. Há sete anos, uma adolescente paulistana viu um selfie postado em sua rede social se espalhar em tom de chacota. Teve depressão, ficou sem sair de casa e, anos depois, entendeu o quanto de racismo havia nesses memes. Não se trata apenas de não gostar de ver sua imagem circulando nas redes sem autorização, o que também é legítimo (e há leis para isso): o meme tem impactos diferentes dependendo de opressões existentes na sociedade.

SEM TEMPO, IRMÃO?

Não há como ganhar o rótulo sem julgamento prévio. O que faz de um texto um textão? Tamanho, tom, tema, lógica argumentativa, local de publicação? "O termo 'textão' diz muito sobre as expectativas das pessoas sobre as plataformas de mídias sociais", diz Tarcizio Silva, professor e pesquisador em métodos digitais, raça e tecnologia. "O tom pejorativo evoca a expectativa generalizada de uso lúdico das plataformas para mensagens curtas e sobre temas vistos como leves."

Assim como no meme, o comportamento reiterado influi. Textões também foram feitos para circular, saindo das redes sociais e migrando para outras mídias mais tradicionais: TV, jornais, revistas, livros. Houve amplificação de pontos de vista.

"Décadas atrás, a maneira de se comunicar tinha curadoria das grandes corporações. Só chegava ao jornal ou à revista quem o editor determinava. E esse perfil era bem restrito. Escrevia o homem com ensino superior, de classe alta. Com as redes sociais, novas perspectivas puderam ser ouvidas. Tem muita coisa que precisa ser dita e que não teve espaço para ser escutada. Mulheres, LGBTQ, indígenas, negras. Quem se incomoda com a quebra desse monopólio do direito à voz não entende que é um caminho sem volta", diz a escritora e roteirista Renata Corrêa, que antes da prevalência do Facebook já usava bastante a internet para circular seus textos.

Por que, então, tanta gente reclama de textão? Por que quem escreve começa pedindo desculpa por fazê-lo? Tanto a minimização da importância de assuntos historicamente jogados para debaixo do tapete quanto eventuais chavões encontrados nesse tipo de texto podem ser pistas para a estafa do textão — some isso a uma debandada do Facebook, com textos virando legendões de Instagram, threads de Twitter e papos de YouTube. A primeira se relaciona com não querer ouvir ideias dissonantes. A segunda, com o fator memético, outra vez, e seus prós e contras: na rede social, diante de um sistema recompensador de curtidas, há modos de chamar a atenção que podem se tornar clichês.

TEM QUE PERFORMAR

"Quem edita um meme ou um 'textão' busca seguir um estilo de escrita e narração próximo a algo que já viu com muitos compartilhamentos", diz Tarcízio Silva. "Um tipo interessante são os relatos de acontecimentos em primeira pessoa. Diálogos inteligentes, eventos chocantes ou exemplos morais são compartilhados em profusão, o que levou a um novo tipo de interação: a acusação de 'fanfic', termo que nasceu de 'ficção de fã', um formato de produção literária de fãs que se inspira em universos ficcionais já existentes.

A internet permitiu que os escritores de fanfics se multiplicassem e conectassem mais facilmente. E hoje o termo 'fanfic' é usado como ofensa, como uma suposição de falseamento da realidade. Este é só um tipo de dinâmica particular nas mídias sociais que mostra como formatos, termos e conceitos são construídos e reconstruídos continuamente nas interações cotidianas - que sempre são disputas discursivas", observa.

"O textão tem o lance de apelo, captar a atenção para que alguém leia aquilo até o final. Tem muita gente que faz isso bem, mas também virou uma fórmula. Tem um pouco de vaidade, 'falou tudo', você quer acertar", diz Bruno Galan. Querer acertar não é exclusividade de uma ou outra pessoa, mas inerente ao tempo que vivemos. Para o psicanalista Marcelo Veras, professor, doutor em psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor de "Selfie: Logo Existo", somos "forjados e moldados para uma performance". "Estamos em um meio narcísico em que a gente fica refém do outro", diz ele.

O excesso de informação e a velocidade de recebimento gera uma necessidade de se posicionar, fazer textão, espalhar um meme. "Tudo o que o jovem de 16 anos na época feudal tinha aprendido na vida, um de 16 hoje aprende em um dia. A quantidade de informação que se absorve é muito maior e isso tem impactos reais na subjetividade. Na psicanálise, a gente pensa o seguinte: tem o instante de ver, um tempo para compreender e um momento para concluir. Hoje você tem o instante de ver e já é induzido a concluir", diz Marcelo.

Nessa circunstância, nossa subjetividade teve de ficar mais rápida para acompanhar a comunicação. Marcelo menciona uma "fobia do tempo lento", um afastamento das relações corporais e uma "insegurança narcísica" como efeitos colaterais do processo. Sobre essa última, ele acredita não ser por acaso que vivemos a era do coaching. "Há cada vez mais profissionais criados não para fazer você ser quem você é, mas se adequar ao mundo em que quer entrar. O que se quer com isso é a adequação, e não fazer valer a subjetividade."

MUNDO NAS PLATAFORMAS

Não dá para falar de comportamento memético sem levar em conta o desenho das plataformas. "A partir do momento em que o Facebook imprime certa mudança em seu algoritmo, como compartilhamento de link, e passa a valorizar conteúdo autoral, a gente passa a identificar um certo aumento desse tipo de linguagem [meme e textão]", diz Viktor Chagas.

A tal democratização da informação pela internet talvez não tenha sido tão democrática assim. "Hoje poucas plataformas concentram quase todo o fluxo de comunicação no mundo ocidental", lembra Tarcízio Silva.

Renata Corrêa vê a importância tanto de considerar a potência que a comunicação em rede social nos trouxe, quanto de não ser ingênuo em relação a ela. "Os veículos nos quais nos expressamos também são grandes corporações. Os algoritmos do Facebook restringem o alcance de diversos conteúdos, mamilos femininos expulsam mulheres do Instagram e o Google restringe pesquisas sensíveis do governo chinês para população local. É sempre bom ficarmos atentos a esses movimentos para defendermos nossa liberdade de expressão. O textão livre também é um direito que pode ser restringido, afinal", diz.

Para Tarcízio, como a influência do design digital no comportamento das pessoas vem se tornando mais explícita, o cenário abre espaço para algumas perspectivas.

"Acredito que um dos grandes fatores a mudar o negócio digital das empresas de mídias sociais é a percepção generalizada de que os negócios baseados em métricas levou à radicalização intencional dos conteúdos. Na medida em que grupos passem a buscar uma internet mais plural e socialmente responsável, as dinâmicas das plataformas tendem a mudar", diz ele.

Ou seja, compreender a dimensão do problema pode ser um primeiro passo para uma cobrança maior do usuário — aquele que escreve textões, cria memes, faz girar a engrenagem da internet. Estar atento, pela saúde não só dos nossos conteúdos, nesse caso é imprescindível.

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