Como absurdos como terraplanismo nos treinam para aceitar ideias radicais

A ciência está sendo colocada em dúvida. As pesquisas das universidades já não são consideradas confiáveis por muitos. As vacinas são contestadas. E sobrou até para o planeta que nos abriga, vítima do terraplanismo e da negação do aquecimento global.
Discursos cada vez mais extremados - na boca (ou no Twitter) até mesmo de quem teria que comandar um país - podem estar nos "anestesiando" para absurdos de menor grau. A conta é simples: se você ouve repetidamente que a terra é plana, provavelmente nem vai se incomodar tanto quando alguém quiser discutir seriamente astrologia. Se você escuta que Eduardo Bolsonaro será embaixador em Washington e na mesma semana a reforma da Previdência é aprovada e mexe com aposentadoria de quase toda a população, a segunda notícia parece normal, corriqueira, quase lógica.
Pelo menos é esse o conceito proposto na década de 1990 por Joseph Overton, um pesquisador e advogado norte-americano que morreu em 2003, mas tem ganhado cada vez mais destaque nos EUA desde a eleição de Donald Trump em 2016.
Mais recentemente, começamos a ouvir falar de Overton também no Brasil em tentativas de explicar as falas de Jair Bolsonaro, seus filhos e o guru familiar, Olavo de Carvalho.
A teoria da Janela de Overton, ou Janela do Discurso, é uma tentativa de mostrar de maneira visual como a opinião pública pode se deslocar e começar a aceitar teorias antes consideradas radicais.
Esse conceito da ciência política afirma que há um espectro dentro do qual as ideias são consideradas normais e esperadas. Opiniões radicais, ridículas e inimagináveis ficam fora, nos extremos da régua.
Podemos encaixar aqui qualquer assunto polêmico. O direito ao aborto, por exemplo. De um lado da régua, estaria a defesa da cirurgia coberta pelo SUS, irrestrita, em qualquer situação e sem nenhum condicionante, como avaliação psicológica da paciente. Do outro, a proibição total da prática, com punição severa a médicos e mulheres que abortarem. Hoje, pode-se dizer que a janela do aceitável gravita em torno da defesa da prática em casos de estupro, risco para a vida da gestante e em fetos anencéfalos - o que já é permitido por lei no Brasil.
Para mudar essa janela e alterar o escopo de ideias consideradas aceitáveis, o conceito de Overton mostra que você não começa por ideias brandas - você começa pelo extremo.
How Trump moves the Overton Window: pic.twitter.com/09Kk0YrNiT
? Carlos Maza (@gaywonk) December 21, 2017
Digamos que você queira convencer alguém de que é preciso proibir o aborto nos casos de estupro. O ideal seria começar defendendo a proibição total. Dessa forma, a conversa pode ir caminhando para o aborto apenas em casos de estupro, e o interlocutor pode ser convencido da sua ideia, sentindo que chegou a um meio-termo e não foi o único a ceder.
Parece um joguinho psicológico, mas no fundo, tem a ver com o clima político que vivemos hoje, garantem pesquisadores. "Jair Bolsonaro foi o primeiro político a entender que a Janela de Overton da opinião pública estava se movendo para a direita", escreveu no Poder360 Thomas Traumann, jornalista e ministro de Comunicação Social do governo Dilma Rousseff. "Ele (Bolsonaro) ajudou a mover a Janela."
Espiral do silêncio
Durante os pouco mais de 13 anos de administração do país pelo Partido dos Trabalhadores, a janela do discurso vigente tendia mais para a esquerda, avalia Hilton Cesário Fernandes, professor do curso de pós-graduação de Ciência Política da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
Para entender melhor como isso foi mudando, o cientista político introduz outra teoria: a da espiral do silêncio, proposta em 1977 pela alemã Elisabeth Noelle-Neumann. "A opinião dominante, com o tempo, vai se esvaziando. E aqueles que não se veem representados começam a perceber que não estão sozinhos. Quando isso acontece, cria-se um movimento que faz com que a opinião até então não dominante ganhe voz", explica Fernandes. Para ele, essa mudança começou a ganhar força nas manifestações de 2013, quando pautas da direita, sem muito espaço durante o governo do PT, ganharam voz. Grupos que até então ficavam 'em silêncio' perceberam que não estavam sozinhos.
O descontentamento da direita com o governo de Dilma Rousseff se somou à revolta acumulada desde o escândalo do mensalão e à rejeição conservadora em relação às pautas voltadas às minorias. Isso começou a abrir espaço para um discurso que inicialmente se colocava apenas contra a corrupção, mas foi caminhando cada vez mais para a direita, avalia Karen Christina Dias da Fonseca, doutoranda em Ciências Humanas e Sociais que pesquisa discurso político na Universidade Federal do ABC. "O Bolsonaro se beneficiou dessa onda, mas também ajudou a mover essa janela", afirma.
Golden shower?
No Twitter, o presidente e alguns de seus apoiadores, como Olavo de Carvalho, encontram espaço para se expressar de forma mais extrema. Exemplos não faltam. Do tweet que mostrava uma cena explícita e fez boa parte dos brasileiros descobrir com desgosto o que significa golden shower, até a homenagem a Mc Reaça, Bolsonaro agrada a muitos de seus apoiadores com opiniões radicais. Assim Trump apoiou pelo Twitter um homem acusado de assediar uma menina de 14 anos, Bolsonaro falou que Mc Reaça "tinha o sonho de mudar o país" após ele agredir uma mulher e se suicidar.
Tales Volpi, conhecido como Mc Reaça, nos deixou no dia de ontem. Tinha o sonho de mudar o país e apostou em meu nome por meio de seu grande talento. Será lembrado pelo dom, pela humildade e por seu amor pelo Brasil. Que Deus o conforte juntamente com seus familiares e amigos.
? Jair M. Bolsonaro (@jairbolsonaro) June 2, 2019
"Naqueles caracteres, ele pode colocar o que quiser. É mais moderado num dia, no outro faz uma publicação de impacto para gerar polêmica. A estratégia que ele adota é de lançar a polêmica e, se a aceitação for boa, ele mantém. Se não, recua", analisa Karen.
Reportagem da Vox sobre a Janela de Overton avalia que, pelo menos nos Estados Unidos, uma das principais consequências do deslocamento da janela é que a direita já começou a ser colocada como o discurso de oposição à extrema direita. Em debates nos quais se viam representantes da esquerda e da direita, agora só há um lado representado. "O problema não é elas serem vozes conservadoras, mas sim o fato de que não as vemos como conservadoras nesse novo contexto", afirma a reportagem.
No Brasil, figuras da direita, como João Amoêdo e até mesmo o general Hamilton Mourão, vice-presidente, já ganham espaço como vozes moderadas. O "general mozão" ganhou o apelido (e críticas de Olavo de Carvalho) após diversas declarações à imprensa. Por exemplo: ele defendeu a importância de Chico Mendes após fala do ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, disse que o ex-deputado Jean Wyllys deveria ter ficado no país e ser protegido e afirmou que o aborto "é uma decisão da mulher", entre outras falas moderadas em relação ao seu superior no Planalto.
Por essa e outras atitudes o @GeneralMourao está virando o queridinho da imprensa esquerdista e perseguidora das pessoas de bem!!
? Araci Badaró (@AraciPatriota) April 24, 2019
Já o chamam de "GENERAL MOZÃO"
Eu preferia quando ele era o "General Mauzão" https://t.co/47xqDbFVsl
Se você olhar bem, vai perceber que todas as falas de Mourão estão dentro da janela do discurso vigente no Brasil. Nada de extrema-esquerda ou ideias chocantes. "A principal diferença é que o Mourão entendeu o que era campanha eleitoral e o que é responsabilidade do cargo", avalia Fernandes.
Janela à esquerda
Originalmente, Overton não teve a intenção de dividir os temas em réguas que iam da extrema esquerda à extrema direita. Mas, hoje, até temas como aquecimento global e educação pública são divididos dessa forma. Fica difícil fugir da dicotomia.
Enquanto Bolsonaro e seus apoiadores ajudam a puxar a janela para a direita em diversos temas, "a esquerda radical está mais abastecida do que nunca para radicalizar seu discurso", opina Karen sobre a lógica polarizada dos últimos anos.
A ideia é que, com tantas falas extremadas da direita, há mais espaço para contestação radical. "Porém, (as ideias de extrema esquerda) continuam tendo pouca aceitação social. Talvez o caminho seja se deslocar um pouco da figura do Lula e do PT, e também da radicalização", comenta.