Vinte anos atrás, o casal de namorados Liana Friedenbach, 16, e Felipe Caffé, 19, foi sequestrado, torturado e assassinado enquanto acampava em uma região isolada de Embu-Guaçu, na Grande São Paulo.

O país acompanhou atônito pela TV e jornais as buscas do advogado Ari Friedenbach pela filha.

Cinco pessoas foram detidas e condenadas pelos crimes. Só duas continuam presas. Uma delas é Roberto Aparecido Alves Cardoso, conhecido como Champinha, que há 17 anos vive em uma espécie de limbo.

Menor de idade à época dos crimes, ele foi encaminhado à antiga Febem. Embora não pudesse ficar mais de três anos, uma decisão judicial o manteve lá dentro. Aos 21, após uma fuga, foi colocado na recém-criada UES (Unidade Experimental de Saúde), local altamente vigiado que parece uma prisão, mas não é.

Nunca houve uma sentença que determinasse quanto tempo Champinha deveria permanecer por lá.

Até hoje não há data —nem disposição judicial ou política— para que ele seja colocado em liberdade.

O destino de Champinha esteve em discussão desde que ele entrou na antiga Febem, que em 2006 passou a se chamar Fundação Casa.

Em documentos da instituição, psicólogos registraram problemas de saúde e de vulnerabilidade social, com anóxia (falta de oxigenação) no nascimento, duas quedas na infância, convulsões, pobreza, abandono da escola e privação sociocultural, além de um ambiente familiar vulnerável, devido ao alcoolismo de seu pai.

Relataram "limitação cognitiva" e "retardo mental leve", mas registraram uma progressiva melhora de escolaridade e resposta ao atendimento psicológico.

Sua mãe acompanhava seu processo. Ele vivia isolado dos outros internos.

Em 2004, quando estava para completar 18 anos e deveria deixar a Febem, a Justiça concluiu que não havia ambiente seguro para ele.

A justificativa dada por profissionais do juízo da infância e juventude para não colocá-lo em liberdade foi a "aura tamanha de indignação popular e da mídia" que o caso ainda despertava.

Na mesma época, peritos do Imesc (Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo) afirmaram que ele apresentava "periculosidade latente" e, portanto, não tinha "condições de progredir para regime de liberdade".

Outra perícia do IML (Instituto Médico Legal) considerou "inviável o seu retorno à sociedade" e sugeriu "internação com outras medidas de intervenção psicológicas e psiquiátricas". A avaliação propôs sua interdição civil.

No fim de 2006, a Justiça suspendeu a medida socioeducativa e o enquadrou em uma "medida protetiva de tratamento", ordenando que continuasse na Febem para tratamento psiquiátrico até 21 anos.

Mas isso também não se concluiu.

Em maio de 2007, Champinha fugiu. Foi recapturado no dia seguinte e se tornou o primeiro interno da recém-criada UES.

A UES fica na Vila Maria, zona norte da capital paulista. É um equipamento único no país, destinado a egressos maiores de idade da Fundação Casa que cometeram atos infracionais graves, possuem diagnóstico de transtorno de personalidade antissocial e laudos de alta periculosidade.

O lugar não é um hospital psiquiátrico de custódia. O atendimento médico é precário e o acesso aos prontuários é difícil até para os advogados. Não se sabe ao certo que medicamentos são fornecidos, se há frequência periódica nesse suporte e se existe avanço no que seria um tratamento.

A UES também não é um presídio. Fica em um terreno de 7.000 m² de área e 1.600 m² de área construída, onde existem cinco casas. Agentes de segurança subordinados à Secretaria da Administração Penitenciária de São Paulo fazem a vigilância.

Em setembro de 2019, Champinha e outros internos tentaram fugir da unidade usando um estilingue e um objeto pontiagudo. Chegaram a render dois funcionários, mas foram contidos pela Polícia Militar.

Visitas à UES são muito restritas, difíceis até para as equipes da Secretaria da Saúde, que não autorizou a reportagem a conhecer o local nem quis falar sobre as irregularidades.

Embora a unidade esteja sob sua coordenação, ela própria admite à reportagem que o estabelecimento "não se enquadra como hospital de custódia ou de tratamento psiquiátrico" e que sua existência se deve a uma decisão excepcional do Poder Judiciário.

A criação da UES era algo totalmente do Estado de exceção. Não há sustentação jurídica ou normativa para viabilizar aquele equipamento. Gabriela Gramkow, psicóloga e professora da PUC-SP

Um estudo de Gramkow acompanhou o caso de sete jovens que passaram pela unidade entre 2007 e 2012, incluindo Champinha.

"Esse equipamento nunca poderia ter nascido. Ele não se sustenta em nenhum princípio de política de saúde mental."

Apenas quatro pessoas vivem atualmente na UES, em uma espécie de limbo entre a saúde e o sistema penitenciário.

O TAB teve acesso a um acordo judicial entre o estado de São Paulo, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo e o Ministério Público de São Paulo, homologado em agosto de 2022, que firmou o compromisso de não admitir novos internos na UES.

Estima-se que, ao longo dos últimos 17 anos, 15 jovens foram encaminhados à unidade. O último a ingressar foi conduzido em julho de 2022, aos 20 anos.

O documento sobre o acordo —sigiloso— estabelece que a internação de adolescentes e jovens adultos para tratamento psiquiátrico, com o perfil dos que estão hoje na unidade, deve seguir as diretrizes da política de saúde mental do SUS. Eles precisam ser avaliados por uma equipe multidisciplinar, que deve desenvolver um plano terapêutico individual.

A UES sempre foi um problema. Em 2008, uma sindicância do Departamento de Execução da Infância e Juventude à UES registrou que "não houve prévia capacitação dos funcionários atuantes no local; inexistia qualquer tratamento multidisciplinar ou mesmo de saúde mental adequados; o atendimento médico limitava-se ao comparecimento de um profissional da área de psiquiatria (uma vez por semana) e um médico clínico (a cada quinzena)".

O documento conclui que o local "está sendo utilizado apenas para contenção dos adolescentes, que deveriam estar sendo submetidos a tratamento adequado na tentativa de reversão do quadro de transtorno de personalidade".

"É uma unidade que fica irregular na Saúde. Seu objetivo não era o tratamento, de fato. Se fosse, eles não estariam mais lá. A questão é a restrição da liberdade", afirma um ex-funcionário, que preferiu falar em anonimato.

"É bem difícil acessar os internos até para as equipes da Secretaria da Saúde. Aquilo é um limbo. Eles entram por uma ordem judicial. A Saúde não coloca ninguém lá. Quem faz isso é a Justiça. Lá, a condição da pessoa complica. Como se trabalha a ressocialização com alguém que está isolado?"

Fernanda Emy Matsuda, doutora em sociologia pela USP e professora adjunta no curso de direito da Universidade Federal de São Paulo, critica a permanência de Champinha, hoje com 36 anos, na UES.

Inventaram essa Guantánamo e colocaram ele lá. Do ponto de vista jurídico não tem nada que sustente a existência desse lugar e essa medida que é aplicada. Não é um espaço em que o direito está operando. Como pode o estado manter isso por tanto tempo? Fernada Emy Matsuda

Desde a chegada de Champinha à UES, houve diversas tentativas de fechar a unidade.

Duas vistorias realizadas pela ONU, em 2011 e 2013, constataram as irregularidades na instituição e pediram o encerramento das atividades.

Em 2015, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária considerou a UES um "campo de concentração moderno".

Apesar disso, no mesmo ano, o STF negou recurso da defesa, que pedia a sua desinternação, e o manteve na unidade.

Em novembro de 2023, os assassinatos de Liana e Felipe completam 20 anos.

Paulo César da Silva Marques, o "Pernambuco", Agnaldo Pires, Antônio Caetano da Silva e Antônio Matias de Barros foram condenados, com sanções que previam de 6 a 124 anos de prisão. As penas tiveram redução e mudanças de regime.

Além de Champinha, apenas Pernambuco continua privado de liberdade e cumpre pena em regime fechado na Penitenciária de Iaras (SP).

Agnaldo e Antônio Matias cumpriram suas penas. Antônio Caetano, condenado a 28 anos e 8 meses, está em regime aberto.

Em entrevista ao TAB, Ari Friedenbach, pai de Liana, diz que não consegue perdoar os assassinos da filha. A dor após o assassinato violento atravessa sua vida diariamente.

Mas Ari também não quer vingança.

"Eu falo com a maior tranquilidade do mundo, juro por Deus, pela minha filha: eu não tenho nenhuma coisa assim de vingança. Todos eles pagaram as penas de acordo com a lei brasileira. Perdoo? Jamais vou perdoar o que aconteceu na minha vida. Mas está feita a lei", afirma.

Para casos como o de Champinha, ele defende a adoção de medidas de internação mais longas e proporcionais à idade dos autores dos atos infracionais. Também fala em acompanhamento direto, em unidades separadas do sistema prisional adulto e de adolescentes, penas alternativas e estrutura para a desinternação, com apoio às famílias.

"O cara tem que ser tratado com decência. Não adianta jogar numa fossa. Isso é inaceitável. É revanchismo", entende ele. "Sou 100% a favor da desinternação, desde que se tenha um acompanhamento adequado. Eu acho que não temos essa estrutura."

O defensor público responsável pela defesa de Champinha, Marcelo Dayrell, não quis dar entrevista, sob a justificativa de que o processo corre em segredo de justiça.

A família de Champinha informou, por meio de sua defesa, que prefere não se manifestar. Teme que a exposição pública complique ainda mais sua situação judicial.

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