Entre beats e bolhas

Como rappers e beatmakers nordestinos se organizam para mudar o jogo da cena musical

Uma van estaciona na vaga diante do camarim do Sesc Pompeia, em São Paulo. Dela desembarca um homem de baixa estatura com uma jaqueta de couro, sem camisa e com um cordão de ouro floreando seu peito que no lado esquerdo tem o rosto de Jesus tatuado. O cabelo recém-raspado nas laterais forma uma espécie de moicano. O bigodinho na régua e o óculos de lentes avermelhadas anunciam que Nego Gallo mudou a postura, pelo menos para este show. Quem está acostumado com sua fala mansa quase não o reconhece naquele estilo Eazy E. Como um de seus hits anuncia, "O Bagui Virou".

Era o lançamento de seu trabalho solo, a mixtape "Veterano", que apareceria em muitas das listas dos melhores discos de 2019. Junto de Nego Gallo, gente como Don L, Jonas de Lima (que na época ainda era conhecido como Coro MC) e Doiston, todos de Fortaleza, formavam seu bonde. Diomedes Chinaski é de Paulista, região metropolitana do Recife, e também colou. Os MCs aparecem coletivamente, buscando uma unidade na qualidade do som. No discurso, o que aparece é o Nordeste Side.

Ainda em 2019, o alagoano Vitor Pirralho fez suas rimas se encontrarem com Ney Matogrosso, e o potiguar Teagacê botou na rua um dos discos mais elogiados do ano, segundo especialistas ouvidos pelo TAB. Há um movimento consciente a fortalecer uma cena fértil para rimadores, produtores e DJs de rap que nasceram fora do eixo Rio-São Paulo, e que muitas vezes fica presa entre o algoritmos e o hype momentâneo que elege novas promessas.

De forma inédita, essa cena parecia furar uma bolha — a impressão se confirmava na quantidade de reportagens sobre a produção e o alvoroço em torno do baiano Baco Exu do Blues, que se mudou para São Paulo tão logo conquistou fãs e uma agenda concorrida para as bandas de cá.

Mas o fato é que nenhum deles experimentou a visibilidade merecida.

Rap de costa a costa

Corta para 2020. O show "histórico" (nas palavras do próprio Nego Gallo) não se repetiu. Depois dele, Gallo não voltou a São Paulo, mas conta que teve um dos anos mais agitados da carreira, ao concentrar seus esforços em Fortaleza, onde desenvolveu projetos e apresentações. "Dei as costas para esse bloqueio e estou fazendo só a minha", explica. "A gente está construindo nosso mercado, nossa forma, nossa maneira de existir nisso."

A produção em toda a região continua intensa. A óbvia justificativa é a revolução provocada pelo mundo digital, o acesso a softwares e a equipamentos. Do lançamento da mixtape "Sexo, Drogas e Violência de Costa a Costa" do grupo cearense Costa a Costa, um dos grandes momentos do rap nordestino, em 2007, até os lançamentos atuais, algumas lacunas foram preenchidas. "Foi a tecnologia que embasou a cena, possibilitou que vários jovens de 'n' periferias, de 'n' comunidades, de 'n' favelas, pudessem acessar esses aplicativos, programas, computadores. Essa é a grande sacada", explica Nego Gallo, que fazia parte do grupo. Recife se tornou um polo de tecnologia importante.

Don L, que ao lado de Gallo dava voz ao grupo, também fala sobre a mudança. "A gente não tinha acesso ao básico. Naquela época, o objetivo era fazer um som que eu botasse pra tocar no Opala no máximo, descendo o morro, e eu sentisse a mesma coisa que eu sinto ouvindo os sons que eu amo. Agora eu quero que, quando eu tocar os sons que eu amo e passar para o meu, não haja diferença de qualidade de gravação."

Hoje, "Sexo, Drogas e Violência de Costa a Costa" é unanimidade e está entre as gravações mais importantes do rap nacional. Na época, o Costa a Costa foi indicado ao prêmio Hutúz em uma categoria especial, distante de toda a produção nacional: melhor grupo do Norte/Nordeste. "Aquilo pra mim foi um sinal muito claro de que essas coisas não iam mudar. Posso chamar de xenofobia, poderia dar vários nomes para isso, mas percebi que o problema era comigo. Quem tinha que resolver era eu, eles não iam resolver nada, não iam mudar nada", conta Nego Gallo. A bomba caiu e não rachou o chão.

Bomba no Sudeste

O tabuleiro desse jogo só balançou mesmo em 2016, quando outra bomba, chamada "Sulícidio", caiu no Sudeste.

Criada por Baco Exu do Blues e Diomedes Chinaski (que não se conheciam pessoalmente), "Sulícidio" jogou luz, de forma agressiva e direta, na cena local, e na visão preconceituosa que o Sudeste mantinha sobre a cultura hip-hop do Nordeste. Os versos atacavam nominalmente MC's do Rio de Janeiro e São Paulo.

"A gente estava ali em um cenário que tinha vários artistas com uma base cultural muito forte. Os artistas daqui são geniais e são tipo 4, 5 vezes melhores que os do Sudeste. A mensagem da música era: eu sou tão bom quanto vocês, por que a gente é desvalorizado?", explicou Baco, em 2017, ao UOL. Hoje, a faixa foi retirada do ar pelo rapper, por seu conteúdo explícito. Procurado pelo TAB, Baco não retornou à reportagem para comentar.

O produtor da faixa, Mazili, hoje aos 23 anos, relembra o ambiente fértil de ideias, mas ainda paupérrimo na produção. "A gravação foi bem peculiar. O computador que eu tinha travava quando esquentava, então eu fiz a gravação com o computador no corredor da minha casa, com o ventilador em cima dele pra não travar, o cabo embaixo da porta do quarto e o microfone dentro do guarda-roupa." O produtor admite ainda que nem todos os softwares e plugins que utiliza em seu serviço são originais. "Kanye West usava programa crackeado; quem sou eu pra não usar?"

Portas cerradas

O pesquisador Danilo Cruz, professor de filosofia e pesquisador diletante do rap nordestino, observa um movimento ambíguo a partir de "Sulicídio".

"Ao mesmo tempo que parece ter aberto as portas para o Nordeste, com o Baco sendo colocado como representante, sempre houve e ainda há um apagamento por parte de quem elabora a crítica especializada do rap. Você pega as listas e não existe menção a nada feito no Nordeste, com coisas muito pontuais aparecendo, coisas que não dá mais pra fingir que não existem, como Nego Gallo, que tem mais de 20 anos de rap, e só agora — o que é também signo importante dessa falta de visibilidade — lançou o primeiro disco solo."

Para ele, há trabalhos sólidos na região que são solenemente ignorados, sobre os quais ninguém vai falar. Cruz, que mora na Bahia, é um dos poucos que se dedicam a divulgar a cena in loco no site Oganpazan.

Nego Gallo observa outros elementos nessa equação, como a produção artística precarizada e o lobby entre artistas, produtores e contratantes. "Existe uma forma de brecar esse acesso. No final das contas, as pessoas acabam consumindo aquilo que já é pautado há algum tempo, que é mais fácil de ser assimilado, que é colocado como a primeira opção. É mais fácil ficar com o mais do mesmo."

Ódio ao Nordeste

Fora das redes, dos estúdios e longe das telas de computador, a situação é bem mais delicada e agressiva. Após "Sulícidio", os ataques aos nordestinos se intensificaram.

Para Ana Lúcia Silva e Souza, doutora em linguística pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) que pesquisa o uso de linguagem no hip-hop na construção de identidade, trata-se de um reflexo do próprio país. "Não é só na música; há uma ação discriminatória em relação ao Nordeste, e aí é o momento em que as pessoas dizem: 'alto lá, a gente tem nossa voz'."

Entre todas as pessoas entrevistadas para a reportagem só houve uma unanimidade: a xenofobia existe. "É difícil não ficar puto, é difícil não levar para o lado da emoção. Os rappers que estão fazendo essas coisas são guerreiros. Essa parada de falar que a porta tá aberta cria um imaginário muito complicado, que é de que é mais fácil chegar aqui, mas a grande maioria, senão todos, furou as bolhas lá e veio pra cá. Não é que foram abraçadas aqui, não é que deu tudo certo", comenta o rapper baiano Hiran.

Seleção injusta

"Não é um preconceitozinho, uma rixa como se teria West Coast contra East Coast [Costa Oeste contra Costa Leste, nos EUA], ou Rio-São Paulo. É xenofobia, e precisa de uma reparação histórica", explica o produtor e músico paulistano Daniel Ganjaman. "Nunca se falou qual o tamanho real da contribuição nordestina para o que é a cultura brasileira. Num olhar mais amplo sobre o que a gente gerou de cultura brasileira de fato, e quem são os grandes nomes da literatura, arte, música, é muito bizarro que ainda exista qualquer tipo de soberba por parte de quem é 'sudestino'. Chega a ser patético."

"É uma xenofobia seletiva: eles escolhem um, dois, três artistas que sejam gentrificados, que sejam limpos pra eles. Que sejam colocados numa posição inofensiva", diz o baiano Vandal. "Toquei no Lollapalooza [em 2019], fiz vários festivais, vivo o dia a dia, produzo com o BaianaSystem e não sou colocado como um artista da cena. Por que essa seletividade? Será que é por que eu sou o grande representante, verdadeiro, desse povo nordestino? Das favelas nordestinas? E que sou o preto verdadeiro, no sentido de estar sofrendo as problemáticas reais, não as problemáticas virtuais disso?"

Mulher, sufoco, preconceito

A pernambucana Lívia Cruz relata o desconforto. "No Rio de Janeiro já passei por situações do tipo: ir ao banheiro da Batalha do Real e ter uma pichação na parede: 'volte para o Nordeste, sua puta' endereçado a mim. Como não havia justificativa para elas me odiarem, me chamaram de nordestina, que é um xingamento aqui no Sudeste. Se você é uma mina da periferia de São Paulo, e cola num lugar desses, vão te tirar também, mas o 'pacote Nordeste' te garante quase todos os tipos de tiração."

Assim como a cena do rap nacional, o rap do Nordeste apresenta poucos nomes de mulheres diante dos microfones ou nas produções. Elas estão na mesma busca, ainda com menos projeção. Cíntia Savoli, Cronista do Morro, Áurea Semiseria, Janaina Noblah, Tulipa Negra, Bixarte e Sinta a Liga Crew são apenas algumas profissionais da cena.

Uma nova poética

De olho na produção baiana, de grupos como Opaninjé e o coletivo Underismo, Ana Lúcia Silva e Souza enxerga temas caros aos artistas, como a questão racial e o empoderamento feminino. "Mas tem uma questão maior, que é: 'a gente precisa sobreviver'", observa. "É a construção de identidades. Você sai desse lugar de que alguém está dando voz à periferia. Não, a periferia está colocando a sua voz. Isso é importante."

Jéssica Caitano vem da cidade de Triunfo, localizada no sertão do Pajeú, em Pernambuco, região em que a poesia está enraizada na vivência de seus habitantes. Foi natural crescer treinando rimas, e isso só se intensificou quando ouviu rap.

Ela chegou a participar de projetos em São Paulo e conta que a experiência a fez enxergar seu lugar de nascimento de outra forma. "Conheci pessoas que estavam próximas de mim, trabalhos que eu não fazia ideia que existia, a partir da provocação de uma pessoa que está lá do outro lado", observa.

Caitano faz o que ela chama de "rap repente", uma decantação da sua paixão pelo rap e suas raízes no improviso cantado, próprio do seu estado. Sua proposta nem é furar bolha nenhuma. "É hackear esse espaço, descentralizar a região. Se a gente se reconhecer, se afirmar junto, não vai precisar ninguém vir de fora para reafirmar. Parece que a gente está esperando uma reafirmação de alguém para então dizer: 'tá, é real'."

Quem vai, quem fica

A mudança de pensamento que os rappers buscam junto aos contratantes é uma das possibilidades reais de fomentar uma cena local. Apesar de nomes como Don L, Baco Exu do Blues e Diomedes Chinaski terem migrado para o Sudeste, há também a responsabilidade e o legado de quem fica — e são muitos. (Em tempo: Chinaski passa por um processo de "cancelamento" e enfrenta denúncias por ter oferecido sexo e drogas a adolescentes.)

"Permanecer aqui [em Fortaleza] é resistência e alimento para o sonho das pessoas que estão aqui e são mais jovens, que estão chegando para esse mercado, para que elas não fiquem na angústia de acharem que terão que sair logo de seu lugar. Hoje a gente consegue fazer de Fortaleza um espaço com festas importantes e isso acontece também em Salvador, Recife", explica Nego Gallo.

Tentando cimentar uma cena, com igualdade nas condições de produção e de contrato, os rappers nordestinos projetam no futuro um verso do cearense Doiston: "Quando isso passar, tu vai lembrar meu nome". Aos 25 anos, o autor da canção fala de exemplos próximos. "Pra mim é uma sensação de gratidão estar participando. Para a cena de Fortaleza é mais um passo, mais um cara que tá conseguindo furar a bolha pra sair do Nordeste. É bem significativo."

Nesse caminho, Nego Gallo acredita que o caminho para esgarçar espaços é sempre coletivo. "Acho que o hip-hop que [Afrika] Bambaataa conheceu era mais ou menos assim", diz. "Eu meço certas coisas pelo que a realidade me traz. Quando a vida de uma pessoa muda, ela muda nitidamente, as pessoas percebem. É uma luta fazer rap no Norte e no Nordeste. Mas é uma luta boa."

O flow do Nordeste

30 músicas para conhecer a produção de hip-hop da região

À moda de um geômetra

As ilustrações deste TAB são inspiradas nas obras do pernambucano Gilvan Samico (1928-2013). Um dos grandes artistas brasileiros, foi convidado por Ariano Suassuna a integrar o Movimento Armorial e tornou-se reconhecido pelos trípticos e as xilogravuras que traduzem e modernizam a cultura nordestina e a literatura de cordel.

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