FESTA DOS PEÕES

Bailões e shows sertanejos são válvula de escape para a rotina maçante de operários brasileiros no Japão

Gilberto Yoshinaga (texto) e Marcio Saiki (fotos) Colaboração para o TAB, de Handa (Japão)

De bota branca e chapéu de estilo country, camisa bordada e cinto com fivelão dourado, Liziane Tanigawa, 45, chama atenção assim que chega ao bailão sertanejo no bar Muvuka's, na cidade japonesa de Handa.

"Lizi Marvada", como prefere ser chamada, é uma das poucas remanescentes da Comitiva dos Marvadus, que já chegou a ter cerca de 40 integrantes assíduos. "Comitiva", no universo sertanejo, é um grupo de amigos que se reúnem para curtir "bailões", vestidos a caráter, prontos para dançar coreografias ensaiadas.

"Uns voltaram para o Brasil, uns constituíram família e outros perderam o pique. Mas eu continuo firme, forte e 'marvada'", brinca, bem-humorada, a única frequentadora paramentada na noite de 4 de junho, um sábado. Moradora de Yokkaichi, na província de Mie, ela dirigiu pouco mais de 50 km para desfilar sua "marvadice" em Handa, uma cidade tranquila de 117 mil habitantes em Aichi, província onde vivem quase 60 mil dos 206 mil imigrantes brasileiros.

Lizi passou dois terços de sua vida no Japão — deixou o Brasil aos 15 anos e, desde então, só esteve no país uma vez, em 1996. Curiosamente, foi no arquipélago asiático que seu amor por ritmos brasileiros aflorou, movido pelo sentimento de "preservar suas raízes". Entretanto, ela não soube citar seus artistas preferidos. "No fundo, sou é 'arroz de festa' e até me considero mais pagodeira do que sertaneja. Mas amo isso aqui", confessa, entre risos.

Enquanto bossa nova e samba fazem sucesso nas casas de shows frequentadas por japoneses, os bailões realizados por e para imigrantes brasileiros são embalados por sertanejo, com um pouco de forró, pagode e tecnobrega.

A cena sertaneja no Japão já foi mais efervescente, com comitivas numerosas. Em 2007, por exemplo, quando a comunidade brasileira no arquipélago chegava a 317 mil habitantes, os bailões mais populares aconteciam em diferentes cidades e atraíam média de 500 pagantes ou mais; hoje, se reunir 200, é lucro. Nessa noite no Muvuka's, o ingresso custava 1.000 ienes (R$ 37) para mulheres e 1.500 ienes (R$ 55) para homens — metade do preço médio cobrado nas discotecas nipônicas.

Ainda assim, o sertanejo é um fenômeno cultural popular entre os dekasseguis, como são chamados os brasileiros que foram trabalhar nas fábricas japonesas desde a década de 1990.

"Já chegamos a receber mais de 300 pessoas nos bailões, pouco antes dessa pandemia que nos pegou de surpresa", conta Renato Matsunaga, 50, um dos donos do Muvuka's. A outra dona é sua esposa, Keiko Higa, 37, peruana que se apaixonou por sertanejo — estilo que ela conheceu no Japão. O menu da casa conta com a tradicional caipirinha e drinques peruanos à base de pisco.

Os diversos estados de emergência para controlar a covid-19 deixaram o Muvuka's sem muvuca desde 2020. As festas foram retomadas no fim de março e, diz Matsunaga, "o pessoal está voltando aos poucos". Em abril, a casa teve festa com 220 pessoas. Em junho, perto do verão no hemisfério norte, o movimento caiu para cerca de 50 pessoas. "Muita gente prefere ir para a praia durante o dia e ficar em casa à noite", aposta o dono da casa de shows.

Matsunaga trabalhava com reforma de imóveis e comércio de artigos usados. Sete anos atrás, viu uma oportunidade: uma construção de cerca de 200 m² que daria um belo bar de karaokê, repensado para uma casa de shows voltada ao público dekassegui. "Gosto de sertanejo, ouço desde criança, mas me considero musicalmente eclético. Começamos com uma balada mais diversificada e o bailão simplesmente aconteceu, porque o público é forte e muito fiel", conta.

De uma ponta do salão à outra, bar de um lado, palco de outro, uma das laterais comporta 12 mesas e um sofá de 20 lugares. No canto, um telão exibe videoclipes de artistas brasileiros no mudo, enquanto a trilha sonora é comandada por DJs. O estafe — com dois bartenders, uma garçonete, um segurança e um porteiro — é todo brasileiro.

Operário de uma fábrica de óleo industrial e automotivo de segunda a sexta-feira e cantor aos finais de semana, Marcos Hatano, 43, foi a principal atração daquela noite no Muvuka's. No Japão desde 1990, ele cresceu ouvindo sertanejo em Mogi das Cruzes (SP), sua cidade natal, por influência de sua mãe. Começou a cantar entre amigos na adolescência e, já no Japão, subiu a um palco pela primeira vez por brincadeira, há nove anos, incentivado por um amigo.

Desde então, passou a receber convites e não parou mais: canta em Handa e em outras cidades com grande concentração de brasileiros, como Hamamatsu, na província de Shizuoka, Oizumi (Gunma), Suzuka (Mie), Konan (Shiga) e Echizen (Fukui). Em 2007, participou do concurso de calouros Latino Nodojiman, realizado pela emissora de TV japonesa NHK e, entre mais de mil inscritos, ficou em segundo lugar.

Hatano gosta das duplas que fizeram sucesso nos anos 1980 e 1990, como Chitãozinho & Xororó, Leandro & Leonardo e Zezé Di Camargo & Luciano. As duas últimas já se apresentaram no Japão em 1997 e 2004, respectivamente, mas, devido ao trabalho, o paulista não pôde prestigiá-las. Até hoje, ele faz covers, com um repertório atualizado de acordo com os sucessos do momento no Brasil. Incluiu nomes como Zé Neto & Cristiano, Jorge & Mateus, Henrique & Juliano, Michel Teló.

"A música ajuda a amenizar as saudades e a relembrar muitas coisas da terrinha", afirma o cantor, que passou a maior parte da vida no Japão e só retornou ao país natal uma única vez, há 24 anos. "Os eventos são uma válvula de escape, a maneira que os brasileiros têm para descontrair e aliviar o estresse acumulado durante a semana."

"Muitos brasileiros são solitários, estão há muito tempo longe dos familiares e, praticamente, só vivem para trabalhar. A música acaba sendo um conforto emocional", endossa Cesar Valentim, 42, outro cantor dekassegui que investe no segmento do sertanejo universitário. Em 2021, ele lançou seu primeiro CD, "Última Dose", e já produziu seis videoclipes. Assim como Hatano, também subiu ao palco pela primeira vez de forma despretensiosa, há sete anos. Hoje, possui repertório próprio, com canções compostas por amigos músicos ou compradas de compositores que estão no Brasil.

Viver exclusivamente da música no Japão ainda é um sonho perseguido pelos sertanejos dekasseguis, que enfrentam jornadas de até 12 horas por dia como operários, assim como a maioria do público que frequenta seus shows. Os cantores entendem que, para ter sucesso a ponto de viver da arte, precisariam voltar ao Brasil, pois consideram o público limitado no Japão. Por ora, parte deles leva a atividade apenas como passatempo e fonte de uma pequena renda extra.

"Vivo esse mesmo dia a dia desgastante e sei como é difícil", acrescenta Valentim, natural de Sorocaba (SP), que está há oito anos no Japão e trabalha de 8 a 12 horas por dia em uma fábrica de autopeças. "Entendo bem os dramas dos dekasseguis e essa afinidade nos aproxima. Frequentadores e organizadores das festas se conhecem bem, todos viramos amigos."

Os bailões foram um tipo de terapia para Sinde Amilton Mitsuka, 43, presença frequente nas festas do Muvuka's. "Três anos atrás vivi uma fase difícil, depois de terminar um casamento de 16 anos. Mal saía de casa. Os bailões me fizeram retomar o ânimo", conta ele, que está no Japão há 25 anos. Natural de Marília, no interior de São Paulo, diz que sempre curtiu música sertaneja.

Foi na casa de Handa que, em 2019, Mitsuka conheceu sua atual companheira, Lesandra Ieda da Silva, 45, que vive no Japão há cerca de duas décadas.

"Aqui tem um calor humano diferente, todos nos tratamos como uma família, já que os familiares de sangue estão longe", diz ela, nascida em Belém, onde o ritmo popular predominante é o brega. "Foi no Japão que o sertanejo me cativou de verdade. E gosto tanto que, anos atrás, fui passear na Tailândia, de lá assisti à live de um bailão e senti falta de estar aqui."

Além de Leandro & Leonardo e Zezé di Camargo & Luciano, o Japão já recebeu shows de Luan Santana e Michel Teló no "Brazilian Day" de 2013 — Luan em Tóquio e Michel em Nagoia. Pré-pandemia, as últimas duplas a tocar no solo nipônico foram Munhoz & Mariano, em 2017, e Alex & Yvan, em 2019. Fãs esperam que os shows não demorem para voltar.

Há sete anos no Japão, Wagner Mattos, 34, é apadrinhado por Gian, da dupla com Giovani, e até participou de seu CD. Estrela do "Sabadão Sertanejo" no Muvuka's, no fim de junho, Mattos é o mais badalado entre os músicos dekasseguis: já lançou um CD e dois DVDs ao vivo, gravados no Japão. Ele só canta repertório próprio, com letras ganhadas ou compradas de compositores, entre eles Toninho Mesquita, produtor de Rionegro & Solimões.

Entre 2017 e 2018, Mattos também esteve no Brasil, onde participou de programas televisivos e fez alguns shows, incluindo passagens pelos rodeios de Americana e Barretos, em São Paulo. Por disso, suas músicas tocam nas rádios, visibilidade que já lhe rendeu quase um milhão de seguidores no Instagram.

Muitos fãs dizem ouvir sertanejo há anos, ou até décadas, mas hoje a música raiz não tem vez nos bailões "made in Japan" — é altamente improvável ouvir ecos de Milionário & José Rico ou Tião Carreiro & Pardinho, por exemplo. Faz mais sucesso entre os dekasseguis o estilo "sofrência", de Marília Mendonça, Gusttavo Lima e Zé Neto & Cristiano.

Zé Neto, aliás, foi pivô do recente caso dos cachês milionários pagos a artistas por prefeituras de cidades pequenas e pobres. O cantor alfinetou Anitta num show realizado em Sorriso (MT), afirmando que não precisa de Lei Rouanet nem de "tatuagem no toba" para provar seu valor. O assunto respingou em outros famosos, shows foram cancelados e muitos que já foram realizados estão na mira do Ministério Público — onda que vem sendo chamada de "CPI do Sertanejo". O caso, entretanto, não teve tanta repercussão entre os fãs no Japão.

"A cultura é importante para a população, desde que os gastos com ela não façam falta para coisas básicas e essenciais, como educação e saúde", considera Wagner Mattos, natural de Paraguaçu Paulista (SP), um tanto desconfortável para comentar o assunto.

Marcos Hatano diz que sabe da polêmica por alto. "Moro no Japão há muito tempo e não acompanho tanto o noticiário brasileiro. Como trabalho muito e tenho cinco filhos, dedico a eles meu raro tempo livre", explica. Ainda assim, opinou. "Cantores que já são muito ricos poderiam abrir mão de cachê nesses lugares [cidades pequenas], fazer shows beneficentes ou reverter essa renda para ações sociais."

Embora estejam há muito tempo longe e muitas vezes dessintonizados das notícias que repercutem no Brasil, muitos continuam vivendo num tipo de "bolha" brasileira, frequentando mercados, baladas, bares, lojas de carros e agências de viagens conduzidos por conterrâneos e em português — uma realidade que contribui para a popularidade do sertanejo nesses redutos.

Joe Hirata, 54, foi o primeiro estrangeiro a vencer o Nodojiman, da emissora NHK, principal concurso musical amador do Japão — na ocasião, derrotou cerca de 80 mil concorrentes. Era 1993 e ele, natural de Maringá (PR), ainda trabalhava em uma fábrica de pães em Toyokawa, na província de Aichi.

Hirata foi dekassegui entre 1988 e 1994, quando decidiu voltar para o Brasil com a vitória do Nodojiman debaixo do braço e investir no sonho artístico. Resolveu incluir no repertório um gênero que já ouvia e gostava quando pequeno, o sertanejo. Desde então, faz um mix dos dois estilos nos shows, dando prioridade a músicas japonesas quando canta para a colônia nipo-brasileira; e ao sertanejo quando participa de rodeios e feiras agropecuárias.

"Chegando lá no Japão, já tinha onde trabalhar / De peão na produção, calos nas mãos foi ganhar / Dez, doze horas por dia e 'zangyo' sem recusar", canta Hirata em "Sonho de um brasileiro", faixa-título de seu primeiro CD e seu maior sucesso, uma canção inspirada na sua própria trajetória como dekassegui: migrar com a intenção de trabalhar muito, enfrentar muito zangyo (hora extra, em japonês), para juntar dinheiro para voltar. "Muito obrigado, Japão, por me acolher, por me cuidar. Muito obrigado, Japão, mas o Brasil é o meu lugar", finaliza.

Para Hirata, o gênero caipira é um jeitinho encontrado pelos brasileiros para amenizar a distância e a saudade. "Para quem morava no interior, ouvia muita música sertaneja e hoje vive no Japão, ela traz boas lembranças e ajuda a matar as saudades. Eu também me consolava assim quando estava no Japão", diz ele, que tem Chitãozinho & Xororó como principal referência.

Desde que voltou ao Brasil, o músico já viajou diversas vezes para fazer shows no Japão. "Peguei a fase áurea dos bailões de dekasseguis, quando as casas lotavam e as comitivas eram numerosas. Espero poder voltar logo a uma dessas festas." Fã de Hirata, Renato Matsunaga, do Muvuka's, já deixou a porteira aberta. "Está mais do que convidado."

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