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Incógnita sobre a covid-19 no Japão: pior já passou ou ainda está por vir?

Feirantes em Ueno, na província de Taito, no Japão - Jérémy Stenuit/Unsplash
Feirantes em Ueno, na província de Taito, no Japão Imagem: Jérémy Stenuit/Unsplash

Juliana Sayuri

Colaboração para o TAB, de Toyohashi (Japão)

25/03/2020 04h00

Às 12h49 de sexta-feira (20), marco do fenômeno astronômico do equinócio, o inverno se foi e a primavera chegou ao Hemisfério Norte. Tal como uma simples virada de página do calendário, a mudança de estações vem trazendo ares bizarros de normalidade deste lado do mundo, apesar da pandemia da covid-19.

Enquanto milhões ficaram confinados nos últimos dias devido ao novo coronavírus mundo afora, tudo parece relativamente "de volta aos eixos" no Japão: na internet, posts indicando centros, bares e até baladas abertos; fábricas funcionando; parques de diversões reabrindo. Não foi imposta quarentena e as autoridades apenas indicaram que vão "pedir" aos viajantes vindos de 38 países para que permaneçam em quarentena voluntária de 14 dias ao desembarcar no arquipélago até o fim de abril.

Ao longo dos próximos dias, as esperadas cerejeiras vão florescer — o que deve atrair aglomerações e piqueniques nos parques. O dia 1º de abril continuará a indicar o início do ano letivo, visto que o governo sinalizou que não pretende prolongar o pedido de paralisação dos colégios. Apesar de tudo isso, e depois de muita pressão, o governo decidiu abrir mão da Olimpíada, adiando o megaevento esportivo para 2021 (ainda sem data).

"Se você quiser um lámen às 4h da madrugada, OK. Se for pegar o metrô, você vai vê-lo levemente mais vazio, mas ainda agitado. Se quiser alugar um carro e dirigir de uma ponta a outra do país, ida e volta, faça — não há nada te impedindo. O que quer dizer que não há quase nada impedindo a disseminação do vírus também", criticou o jornalista britânico Oscar Boyd, editor do jornal The Japan Times, radicado na capital, Tóquio.

Fora da curva

Em janeiro de 2020, o Japão foi o primeiro país atingido pelo novo coronavírus depois da China. Em fevereiro, foi o porto inseguro do cruzeiro Diamond Princess, que confinou mais de 3 mil passageiros e tripulantes de 56 nacionalidades por 14 dias e, depois, liberou muitos não-diagnosticados. Em março, porém, enquanto países como Irã, Itália e Estados Unidos tiveram um boom de diagnósticos de covid-19 — na casa dos milhares por dia — o Japão registrou, ao todo, 1.813 casos e 49 mortes até a noite de domingo (22). Isto é, a expectativa de explosão de casos não se concretizou.

O que justifica o número baixo de casos no Japão? Máscaras "desde sempre"? Não é o que acontece; ademais, desde janeiro/fevereiro o acessório é disputado no mercado e muita gente continua "desmascarado". Exemplo de higiene absoluta? Tampouco, pois pressupõe que o resto do mundo é sujo — uma hipótese bastante racista, aliás. Pura sorte?

Fora da curva global, o número intriga e, entre críticos, é considerado irrealista. A incerteza do quadro paira principalmente sobre a seletividade dos exames médicos realizados no arquipélago. Enquanto países como o Brasil patinam com a falta de kits disponíveis, o Japão poderia rodar 7,5 mil testes por dia, mas fez apenas 34 mil até 17 de março. Na China foram 320 mil; na Coreia do Sul, 200 mil; na Itália e no Irã, 80 mil cada. A supertriagem japonesa, filtrando e analisando apenas casos mais graves, contraria a diretriz da OMS: "Nós temos uma simples mensagem para todos: testem, testem, testem. Testem todo caso suspeito", nas palavras do acadêmico etíope Tedros Adhanom Ghebreyesus, atual diretor da organização.

Maquinista de metrô de máscara em Shinjuku, no Japão -  Matthieu Gouiffes/Unsplash -  Matthieu Gouiffes/Unsplash
Maquinista de metrô de máscara em Shinjuku, no Japão
Imagem: Matthieu Gouiffes/Unsplash

Hesitante para estender os testes, o governo japonês agora é alvo de diversas críticas, inclusive acusações de camuflar o quadro para proteger o mercado nipônico: se não tem teste, não tem diagnóstico e não tem caso para contabilizar, critica-se. Das 1.813 ocorrências oficiais, 712 foram registradas no navio Diamond Princess e 1.101 no território japonês — entre elas, 162 em Hokkaido, ao norte; e 143 em Aichi, no centro do país.

Andando no escuro

Hokkaido, o maior foco, foi a única província a decretar estado de emergência, em 28 de fevereiro. A declaração durou menos de um mês, encerrada em 20 de março. Aichi, o segundo foco, é um dos maiores polos industriais do Japão. É também a província com o maior número de residentes brasileiros no país (52.919, do total de 185.967, segundo dados do Ministério da Justiça do Japão de 2018). De Aichi, escrevo no conforto de casa, na cidade de Toyohashi, onde a maioria dos imigrantes continua trabalhando normalmente nas fábricas, sem perspectiva de folga ou possibilidade de home office.

O primeiro caso de Aichi foi identificado em 26 de janeiro, indica o infográfico truncado do Ministério da Saúde do Japão, levemente descompassado com as atualizações do dia (neste momento, às 13h de segunda, foram confirmados 1.101 casos, mas o site diz 944, por exemplo). Até agora, o pico por dia ocorreu em 10 de março, com 12 novos casos. Idosos estão entre os mais diagnosticados — 16 homens e 16 mulheres na casa dos 60 anos, por exemplo —, mas também há casos de superidosos: dois homens e duas mulheres na faixa dos 90, e jovens (três homens e duas mulheres na faixa dos 20).

Ainda não há, entretanto, informações detalhadas sobre o desenrolar de casos na pequena província de 5.173 km² — menor que a região metropolitana de São Paulo —, o que desperta insegurança e interrogações. Estamos ou não dentro de um foco de vírus? Tudo já está "sob controle" e não devo me preocupar, pois minha família e amigos continuam batendo ponto nas fábricas dos arredores? Qual foi o destino dos mais de 120 passageiros diagnosticados positivos no Diamond Princess, que foram internados no hospital universitário de Okazaki? Por onde mais andou o indivíduo de 57 anos que, diagnosticado e orientado a ficar dentro de casa, foi a um pub filipino em Gamagori dizendo "vou espalhar vírus", infectando uma garçonete de 30 anos (ele morreu dias depois)?

Para os organizadores olímpicos, que negaram até ontem (24) a possibilidade de cancelar o evento, parecia suficiente recomendar que "quem estiver se sentindo mal deveria deixar de seguir a trajetória da tocha olímpica" — e contar com "a interpretação de cada um" sobre o que define uma multidão, conforme declarou o diretor Toshiro Muto, da Tóquio-2020. Para o governo, parecia suficiente "pedir" quarentena voluntária dos viajantes para impedir infecções, como sinalizou o premiê Shinzo Abe. Nesta terça (24), porém, o governo decidiu banir a entrada de viajantes de 18 países europeus. Afinal, o pior já passou ou está por vir?

De Aichi à Califórnia

O médico japonês Kenji Shibuya, docente do King's College de Londres e ex-coordenador de políticas da OMS, esboçou os dois desdobramentos possíveis à agência americana Bloomberg: ou atuais focos estão sob controle, ou novos surtos ainda surgirão. "Ambos são razoáveis, mas meu palpite é que o Japão está prestes a ver uma explosão e, inevitavelmente, passará da fase de conter para a fase de atrasar-o-pico (achatar a curva) muito em breve", opinou Shibuya.

Segundo estudo publicado pela agência japonesa Kyodo em 17 de março, o Japão ainda vai atingir o auge de infecções internas: apesar da tendência decrescente em Hokkaido, o número de novos casos continua crescendo em Aichi e Hyogo. Entre 28 de março e 3 de abril, projeta-se chegar a 3.374 casos (227 deles sérios) entre Hyogo e Osaka.

Homem veste máscara no Japão: país é reconhecido pelo seu controle sanitário - Jusdevoyage/Unsplash - Jusdevoyage/Unsplash
Imagem: Jusdevoyage/Unsplash

De Aichi, sigo relativamente isolada. Usar álcool em gel, conferir compulsivamente a minha temperatura (36,7 °C neste minuto) e acompanhar as informações oficiais — que vêm sendo liberadas a conta-gotas à imprensa — se tornaram técnicas para tentar mitigar a ansiedade. Escrevi às assessorias das autoridades para pedir dados adicionais sobre o status do surto, especialmente entre imigrantes, mas não obtive resposta até o fechamento desta reportagem.

Desde a declaração de pandemia, diários e depoimentos de isolamento temporário e/ou quarentena se alastram de Wuhan a Washington, passando por Lesbos, Bangalore e Barcelona.

De São Francisco, a maestra nipo-americana Sarah Hicks fisgou o domínio CoronavirusDiary.Net para compartilhar ideias e reflexões. "Há uma expressão fantástica em japonês, 'shouganai'. Significa algo como 'não há o que fazer' — e sua própria imprecisão permite inúmeros usos. Embora seja mais usada para situações desagradáveis, em muitas maneiras indica uma atitude neutra, resignada, mas disposta a lidar com a realidade. Hoje, olhei para o mundo e pensei: 'shouganai', vou viver meu dia da melhor forma possível", escreveu Hicks, que teve uma turnê internacional cancelada e está isolada no norte da Califórnia.

É um tipo de "c'est la vie" nipônico; ou um "vida que segue", em bom português. Andando no escuro, muitos temos inadvertidamente adotado o lema diante dos últimos dias, tão triviais quanto estranhos, no Japão. Será que este é o "novo normal"?