Reprodução/Instagram

No fim da tarde de 30 de dezembro de 2016, cerca de 20 crianças brincavam no mar de Serrambi, em Ipojuca, litoral sul de Pernambuco. Da areia, os pais as observavam. A maré encheu e surgiu um jet-ski ziguezagueando entre as lanchas, cruzando as ondas até se aproximar dos pequenos banhistas com manobras arriscadas, causando alvoroço entre as famílias. "Cuidado com as crianças!", gritaram os adultos.

"Todo mundo se assustou", lembra uma das mães. O motorista do jet-ski continuou a avançar, respondeu com palavrões e fez questão de se identificar, com certo deboche. "Eu sou Thiago Fernandes Vieira", ele dizia.

Herdeiro de uma das famílias mais ricas de Pernambuco, Thiago Antonio Brennand Tavares da Silva Fernandes Vieira é considerado foragido da Justiça desde 27 de setembro, acusado de agressão, assédio sexual, estupros e lesão corporal, entre outros crimes. A mais recente denúncia contra ele foi feita em 9 de novembro.

Denunciado pelo MPSP (Ministério Público de São Paulo), ele também está na mira do MPPE (Ministério Público de Pernambuco): o órgão está recebendo denúncias dentro e fora do Brasil, sob sigilo, na Ouvidoria da Mulher. A expectativa da promotora Bianca Stella Azevedo Barroso é que mais vítimas decidam denunciá-lo no estado onde cresceu, dada a repercussão dos episódios de agressão.

Thiago foi flagrado agredindo a modelo Alliny Helena Gomes, 37, na badalada Bodytech, academia no shopping Iguatemi, na zona sul de São Paulo, em 3 de agosto. Viu-se alvo de uma série de denúncias na sequência. Em Pernambuco, deixou para trás histórias pontilhadas por violência, mistérios e o poder de quem cresceu cercado de privilégios, certo de que os sobrenomes prestigiados poderiam blindá-lo — medo é uma palavra constante nos relatos sobre ele.

Vaidoso, o herdeiro faz questão de pontuar o próprio nome: "Quem, por acidente de leitura, ou memória, transformaria Thiago Antonio Brennand Tavares da Silva Fernandes Vieira em 'Tiago Brennand da Silva Fernandes'?", escreveu, por exemplo, num e-mail agressivo ao MPSP. "Como se meu nome fosse apenas mais um nome." Ele faz questão do H.

PERIGO 'DIRETO E IMINENTE'

Thiago tinha uma casa num condomínio de luxo na praia de Serrambi, onde veraneia a high society pernambucana. Na véspera do Réveillon de 2016, julgou por bem "brincar" com seu jet-ski entre as crianças.

Assustados, os pais pediram para elas saírem do mar e chamaram a polícia. Uma garota de 10 anos, com deficiência física, não conseguiu sair da água tão rapidamente. Na agitação, perdeu os óculos de grau para as ondas. Thiago, relata uma testemunha, ficou dando voltas violentas ao redor dela, em alta velocidade.

O episódio foi registrado num boletim de ocorrência, virou inquérito policial e Thiago foi indiciado por expor a vida dos presentes a perigo "direto e iminente" (o artigo 132 do Código Penal, que prevê pena de três meses a um ano de prisão). Ele não chegou a responder judicialmente: a denúncia foi aceita em janeiro de 2018, mas Thiago não foi encontrado nos seus endereços no estado — e, em abril de 2022, o MPPE pediu a prescrição do processo. Hoje, os pais das crianças querem reabrir o caso.

Recentemente, Thiago citou o episódio, com o desdém que lhe é característico, afirmando que o processo foi apenas por "contravenção por uso de jet-ski".

Segundo uma das testemunhas do episódio, a mansão de Thiago era um "bunker", cercada por muros altos. "Ele sempre arrumou confusão na vizinhança. Também humilhava os funcionários, ameaçava de demissão e coisa pior", acrescenta um parente dele.

Serrambi fica quase deserta na primavera. No último dia 13 de outubro, pós-feriado, a orla do condomínio onde ocorreu o episódio estava vazia. Poucos caminhavam pela areia, diante de um mar de azul claro estonteante. Vizinha às famosas Porto de Galinhas e Carneiros, a praia é cercada por mansões, com terraços e jardins com piscinas. Uma casa ali não custa menos de R$ 1,5 milhão. Conforme o TAB apurou, a fortuna de Thiago é de cerca de R$ 300 milhões.

A NATA DE PERNAMBUCO

Serrambi é onde trabalha uma ex de Thiago. Ana*, corretora de imóveis e dona de uma loja de roupas, ficou com ele durante quatro anos, entre idas e vindas. Juntos tiveram um filho, Bruno* — hoje adolescente de 17 anos, que desde pequeno vive sob a tutela de Thiago. Era "um relacionamento abusivo", nas palavras de Ana, e por isso chegou ao fim. Em 2012, ela entrou na Justiça para reivindicar a guarda do garoto, de então 7 anos. No processo, ao qual o TAB teve acesso, ela acusa Thiago de alienação parental.

Ana alega que Thiago, "uma das pessoas mais ricas e influentes" de Pernambuco, se aproveitava de sua posição social para afastá-la do filho. Na contestação, Thiago diz que a mãe tinha "interesses financeiros". Em 2017, a Justiça decidiu manter a guarda unilateral do garoto ao pai, restando a Ana visitas e convívio nas férias, feriados e fins de semana.

Entretanto, ela ficou sem conseguir falar com o filho por sete anos, segundo seu depoimento à polícia. Em 2019, eles voltaram a conversar, pela internet. Em 2020, o adolescente de 14 anos contou à mãe que o pai o estava agredindo.

Foi quando Bruno fugiu de casa, em São Paulo, e foi procurar Ana, em Pernambuco. À Delegacia de Polícia de Crimes contra Criança e Adolescente, no Recife, ele relatou maus tratos: desde os 4 anos apanhava do pai, "mesmo que fosse por besteira", com castigos com corda e baqueta de bateria. Um laudo indica que ele tinha escoriações no braço direito, causadas por "instrumento contundente". Ao inquérito foram anexadas fotos de marcas de agressão nas costas do filho e um registro que o garoto fez do pai deitado num sofá e, ao lado dele, uma arma. De acordo com Bruno, Thiago fazia aquilo para "torturá-lo e intimidá-lo psicologicamente".

Dois dias depois, o adolescente voltou à delegacia e se desmentiu — disse que as marcas eram "outras coisas" e pediu para "alterar tudo". Sem seu relato, o caso acabou arquivado. No inquérito, Thiago disse que os hematomas do filho foram "lesões causadas pelo próprio adolescente a fim de convencer a mãe de que era agredido".

O processo até poderia seguir adiante, mesmo com o adolescente desistindo, como comenta um especialista ouvido pela reportagem. As marcas no corpo e as imagens que mostram um histórico de situações atípicas em casa serviriam de base para a investigação, mas essa decisão necessitaria de um pedido de alguém responsável pelo rapaz — no caso, sua mãe. Ana não o fez.

Na internet, Thiago demonstra uma relação de muita proximidade com o filho. Ele publica vários vídeos e fotos do adolescente surfando, em lutas de jiu-jítsu e em viagens. Numa das publicações, chegou a mostrar uma conversa dos dois na qual ele diz ao menino "a morte antes da desonra".

Procurada diversas vezes ao longo dos últimos meses, Ana não quis dar entrevista. "Tenho uma criança que está sofrendo muito com toda essa história", justificou, por telefone.

'PRÍNCIPE QUE VIRA SAPO'

Tampouco quis conversar Marina*, namorada de Thiago na adolescência. Na época, ela tinha 16 anos e ele, 17. Namoraram durante cinco meses, tempo suficiente para que ela enfrentasse episódios de violência, ciúme e assédio, até "por besteira", segundo relato de uma fonte muito próxima do então casal, a quem o herdeiro se referia como "puta invejosa". "Ele chegou a quebrar uns óculos dela [Marina]. Puxava cabelo, mordia, dava beliscão."

Certa vez, Thiago levou Marina a Serrambi, dizendo que junto deles estaria uma de suas irmãs. Horas depois, a mãe de Marina ligou para a casa da família de Thiago para conferir a história (era mentira) e decidiu ir buscá-la. O namoro então chegou ao fim. "Ele era um 'bom partido', dentro do conceito pernambuquês. Mas a gente sempre soube da fama de 'bad boy' dele", diz a fonte. "Ele é o príncipe que vira sapo."

Há cerca de nove anos, Thiago procurou Marina no messenger, pedindo para que fosse sua testemunha num processo movido por Ana. Ela se negou.

Thiago é um homem alto, branco, forte, um "heterossexual inegociável", nas suas palavras. Tem olhos castanhos miúdos, queixo proeminente e voz grave. Na juventude, era visto como um cara bonito, elegante e inteligente. Uma de suas armas para flertar (e às vezes assediar garotas) era o poder de seu nome. Outra era um revólver.

Camila* conta que, há 20 anos, pegou uma carona com o herdeiro, após uma festa no Recife. No carro, ele pôs o pênis para fora e a forçou ao sexo. "Eu me neguei a fazer qualquer coisa, e ele tirou uma arma do porta-luvas. Comecei a chorar, pedir para que ele me deixasse sair." Ela nunca teve coragem de denunciá-lo. "Espero mais de duas décadas para que ele seja preso", desabafa.

UM TIAGO SEM 'H'

Serrambi também é o local onde Maria Eduarda Dourado Lacerda e Tarsila Gusmão Vieira de Melo, ambas de 16 anos, foram vistas pela última vez. Elas viajaram com amigos ao litoral sul para passar o feriado de 1º de maio de 2003. Desapareceram num sábado, 3 de maio. Dez dias depois, seus corpos foram encontrados num canavial em Camela, um distrito de Ipojuca.

Até hoje há rumores de que Thiago esteja envolvido no assassinato das garotas — o caso voltou a aparecer após as denúncias de agressão em São Paulo. Tanto ele quanto seu irmão, Bruno, foram convocados a depor na investigação do caso, em 2006, mas ninguém conseguiu provar seu envolvimento. Vira e mexe, Pernambuco volta a falar do assunto.

A defesa de Thiago alega que a confusão se deu porque ele frequentava a praia e porque as amigas ficaram hospedadas na casa da família de um xará seu — Tiago Alencar Carneiro da Silva, que à época tinha 20 anos. Ao fim da investigação, os irmãos "kombeiros" Marcelo José e Valfrido Lira foram apontados como responsáveis pelo crime. Eles foram julgados e absolvidos por júri popular, em 2010.

O curioso é que em 2019, 13 anos depois do ocorrido, três delegados revisitariam o tema, assinando declarações isentando Thiago.

"A investigação nos permitiu identificar que se tratava de boato, em que o Sr. Thiago Antonio Fernandes Vieira, surgiu [sic] pela semelhança entre seu nome e o nome da pessoa em cuja casa estavam hospedadas as vítimas, o qual também tinha o nome Tiago, mas sem o 'h'", escreveu o delegado José Oliveira Silvestre Jr., em declaração com timbre da Polícia Civil de Pernambuco. A reportagem procurou o órgão para comentar o caso, já que o papel usado era timbrado, mas não houve resposta.

O delegado especial Paulo Jeann Barros Silva e o delegado da Polícia Federal Cláudio Barros Joventino endereçaram os documentos "para os devidos fins de esclarecimento junto ao Departamento de Estado dos Estados Unidos da América", citando o número do passaporte de Thiago, o que indica que "os devidos fins" estavam relacionados a um pedido de visto. Joventino diz que o documento também pretendia dissipar "falsas acusações" contra "pessoas importantes e/ou abastadas da sociedade pernambucana". Segundo fontes ouvidas pelo TAB, é incomum que delegados assinem esse tipo de declaração.

"Ele é de uma família muito influente", diz Joventino, por telefone. "Nada foi comprovado naquele caso sobre seu envolvimento", lembra o ex-delegado, aposentado desde 2017.

Thiago revisitou essa história, dizendo-se "alvo de um boato", num vídeo publicado no seu próprio perfil no YouTube no início de outubro de 2022. "Eu nem no país estava", declarou. "Nunca fui parte no processo, mas pedi, apenas para registro, a declaração dos três delegados."

SP - ABU DHABI - SP

Ana, Camila, Marina e os pais das crianças de Serrambi não conseguiram, até agora, confrontar Thiago sobre o que lhes aconteceu em Pernambuco. Alliny e outros devem ter de esperar para poder vê-lo no banco dos réus.

Na madrugada de 4 de setembro, o herdeiro indiciado pelo MPSP passou à 0h10 pela imigração do Aeroporto Internacional de São Paulo. Cerca de 17 horas depois, desembarcou entre os arranha-céus de Dubai, num oásis de ricos e poderosos. Instalou-se a cerca de 150 km dali, onde foi filmado caminhando tranquilamente no jardim de um hotel cinco estrelas de Abu Dhabi.

Incluído na lista de procurados da Interpol após o pedido de prisão decretado pela juíza Erika Soares de Azevedo Mascarenhas em 27 de setembro, ele foi detido por oficiais dos Emirados Árabes em 13 de outubro. "Ele não se escondeu, inclusive ficou passando e-mails, fazendo vídeo provocando a promotora. Assim ele foi localizado no hotel e preso", conta a delegada Ivalda Aleixo, do Departamento de Capturas da Polícia Civil de São Paulo, que lidera o caso. "Ele gosta de intimidar pelo poder econômico e pela força física. Alguém que reforça ser um 'heterossexual inegociável' é um cara frustrado."

No dia seguinte, o herdeiro foi liberado após pagar fiança, recurso possível por não se tratar de um acusado de crime político ou terrorismo — o valor não foi divulgado. Thiago Brennand pode esperar em liberdade até que as autoridades locais decidam se vão ou não extraditá-lo. Segundo o advogado Victor Del Vecchio, mestrando em direito internacional pela Universidade de São Paulo, o trâmite depende de negociações diplomáticas entre Emirados e Brasil. Os dois países já têm um tratado assinado desde 2019 que formaliza casos de extradição, mas esse documento precisa ser sancionado pela presidência da República, o que ainda não foi feito.

O Tribunal de Justiça de São Paulo enviou um dossiê para o Ministério da Justiça e Segurança Pública, formalizando o pedido de extradição, em 7 de novembro. Os documentos tiveram tradução juramentada para o árabe. O ministério não comenta casos concretos em andamento. "O tempo de tramitação e julgamento do pedido de extradição pelas autoridades dos Emirados Árabes dependerá da legislação interna daquele país", informou, em nota enviada à reportagem.

Thiago contratou dois escritórios de advogados para sua defesa, depois de ter brigado com sua antiga advogada, Dora Cavalcanti. Em Pernambuco, ele é representado pelos criminalistas Carlos Barros e Gustavo Rocha, e, em São Paulo, por Ricardo Sayeg, que se apresenta como "especialista em superação de crises e contencioso estratégico de demandas complexas" e "advogado europeu". Procurados ao longo de semanas, Barros e Rocha não responderam às perguntas enviadas por e-mail nem atenderam às ligações. Já a ordem dada à secretária de Sayeg é dizer, ao telefone, que ele "não vai se posicionar sobre o tema".

Enquanto isso, Thiago é obrigado a declarar à Justiça dos Emirados Árabes um endereço fixo, comparecer a audiências e não pode sair do país. Se descumprir as regras, volta a ser preso. "A repercussão do caso e o deboche com que ele está tratando a Justiça", diz a delegada, podem tornar o processo de extradição mais célere. "Estamos em contato frequente com a Interpol. Quando nos derem 'ok', o governo brasileiro o traz de volta e ele vem para um presídio de São Paulo."

Entretanto, o processo também pode se arrastar por bastante tempo, pondera Aleixo. "Estamos num momento político importante [eleições], em seguida vem Copa do Mundo e temos um recesso do Judiciário no final do ano", destaca. Talvez Thiago só volte para responder aos processos no Brasil em 2023.

*Nomes trocados para preservar a identidade dos entrevistados e envolvidos

Topo