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OPINIÃO

Da uva ao navio negreiro: má sorte do capitalismo são os empresários burros

Região de vinícola em Caxias do Sul (RS) - Erich Sacco/Getty Images
Região de vinícola em Caxias do Sul (RS) Imagem: Erich Sacco/Getty Images

Carlos Alberto Dória*

Colaboração para o TAB, de Gonçalves (MG)

04/03/2023 04h00

A má sorte do capitalismo são os empresários burros, mais do que a força inexorável do operariado organizado. É a conclusão a que se chega se observarmos os fatos que compõem o mais recente escândalo do vinho gaúcho.

O "nosso vinho" sempre correu na rabeira daqueles dos vizinhos (Argentina, Chile e, mais recentemente, Uruguai). Há mais de uma década a indústria vinícola nacional resolveu enfrentar a desvantagem num plano estritamente cultural: a narrativa ("storytelling") baseada na visão de um passado idílico de imigração italiana para o Rio Grande do Sul, numa epopeia que incluía o fabrico de vinhos para sustentar esse "modo de vida". O turismo na Serra Gaúcha se baseia nessa crença, repetida à exaustão.

Fazia parte dessa estratégia treinar os consumidores em dezenas de procedimentos afins: jantares harmonizados, certames de degustação, formação sensorial e, claro, revistas especializadas em fazer a apologia do "jovem e moderno" vinho dos confins do Brasil. Depois da insistência por um certo tempo, sem dúvida argentinos e chilenos iriam finalmente à lona.

Mas há a dura realidade do mercado. Nossos bons vinhos, que existem, são caros, podendo-se tomar algo melhor pelo mesmo preço, proveniente da Península Ibérica ou do vizinhos chilenos e argentinos. Vinho do Chile e da Argentina, aliás, já é encontrado em gôndola de supermercado por todos os centros urbanos brasileiros a um preço em torno de R$ 25. Entre outras razões, o baixo custo reflete nossa polícia tarifária, que reduziu a zero a antiga taxação, estendendo aos chilenos a mesma alíquota vigente para os demais vinhos do Mercosul. Assim, contrario sensu, os brasileiros populares não conseguem se posicionar nas faixas de preços dos concorrentes importados, em relação aos quais custam 25-30% a mais.

Para ser competitivo nessa faixa, pouco vale o storytelling, prevalecendo o preço. E os preços só melhoram reduzindo custos. Só os ingênuos pensam que se pode reduzir os lucros. E os insumos mais caros na produção de vinhos são, obviamente, o preço da terra e a mão de obra.

E eis que as maiores e principais vinícolas da região (Aurora, Salton etc), tão dedicadas ao storytelling amoroso em relação à imigração, mandaram vir da Bahia uns novos navios-negreiros cheio de "baianos", alojados de forma insalubre, comendo sabe-se lá o quê e, pasmem, sujeitos a ganhar, ao que parece, menos que a Bolsa Família, segundo o cálculo dos "gatos" que capitanearam os navios negreiros, embora tenham prometido aos "baianos" mais de R$ 2.000.

O que mais impressiona não é a farsa que se montou e, sim, os momentos de sinceridade nos acontecimentos que se seguiram. Diante da libertação de mais de 200 trabalhadores aviltados, houve a grita dos empresários que se sentiram prejudicados. Primeiro as próprias vinícolas aparecendo em público para dizer que "não sabiam" que os "gatos" eram tão desumanos. Depois, um vereador de Caxias do Sul (RS) defendeu da tribuna essa "escravidão" e recomendou que, no futuro, a fizessem com mão de obra argentina, de gente melhor para o trabalho e mais limpinha. Por fim, o CIC (Centro da Indústria, Comércio e Serviços) de Bento Gonçalves explicou em nota, na sua sociologia de senzala, que a culpa maior cabia às políticas assistencialistas do governo (Bolsa Família), responsável por gente que se recusava a trabalhar por menos. Dai a necessidade de trazer mão de obra barata de fora (leia-se "analoga à escravidão").

O economista Karl Polanyi, ferrenho adversário do liberalismo econômico, era de opinião que a Revolução Russa havia tido reflexos civilizatórios no próprio capitalismo, ao se desenvolver o welfare state como barreira ao avanço do próprio socialismo, dotando as massas de um mínimo de respaldo em políticas públicas — coisa que, ainda hoje, não se deram conta os gaúchos onde ainda impera o espírito da "bagualândia". Torturas, choques elétricos e spray de pimenta certamente não irão conter os trabalhadores que buscam simplesmente melhores condições de remuneração. E é justamente em contradição com esse retorno à barbárie que se levantam todos os demais contra o que ocorreu na vinicultura. Até o patético vereador que fez apologia da escravidão apressou-se em vir a público pedir desculpas pelos "excessos" em seu discurso.

O episódio põe a nu uma abjeta ideologia identificada com o derrotado bolsonarismo, segundo a qual os pobres não têm lugar no país e, pois, é preciso eliminá-los. Por essa razão, o ataque descarado ao Bolsa Família, conforme vocalizado pelo CIC, responsabilizando-a por uma recusa ao trabalho sub-remunerado que, no entender da associação, exigia mesmo uma ação inflexível de imposição. Ainda que se tome o benefício como um "salário" muito menor que o mínimo, parece um obstáculo à exploração desmedida daqueles que buscam o lucro a qualquer custo.

"Reumanizar" o vinho, retomar sua mística ítalo-gaúcha, não será fácil. É preciso reconhecer que o episódio arranhou a afinidade cultural com o turismo da Serra Gaúcha, mostrando uma realidade trabalhista que iguala o cultivo dos vinhedos às mais distantes e inumanas práticas rurais brasileiras, bem longe do modelo idealizado do agricultor familiar da longínqua agricultura italiana e seus vinhos.

O episódio, contudo, deve acender uma luz vermelha para a cultura do marketing, pois fica claro que nenhum discurso totalmente descolado da realidade tem condições de durar para sempre. Quando os consumidores veem virtudes na "sustentabilidade", nas relações trabalhistas "humanas", assim como no banimento dos agrotóxicos, já não há lugar para o "comportamento bagual" na vitivinicultura. Vinícolas como Aurora e Salton não necessitam apenas rever suas práticas de contratação de mão de obra, mas, também, dos escritórios de marketing que lhes vendem a esperança de um futuro melhor que o argentino, chileno ou uruguaio. A lição de casa não é pequena.

* Carlos Alberto Dória é doutor em Sociologia pela Unicamp, especialista em Sociologia da Alimentação e autor de livros sobre culinária brasileira.