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Versão da favela: PM executou, torturou e forjou provas em ação no Guarujá

Testemunhas, familiares e vizinhos de pessoas mortas na Operação Escudo apontam que policiais militares executaram, torturaram, ameaçaram, forjaram provas e alteraram cenas de crime em ações na Baixada Santista durante as últimas semanas.

Sob a premissa oficial de ser uma iniciativa para sufocar traficantes na região, a operação tornou-se um dos atos mais letais da história da Polícia Militar paulista.

Ao longo de 40 dias, foram 28 mortos, três feridos em estado grave, 382 foragidos recapturados e quase uma tonelada de droga apreendida.

Apelidada de "Operação Vingança" por organizações sociais que atuam na região, a investida começou no final de julho, logo após o assassinato do soldado Patrick Bastos Reis, 30 anos, baleado no banco traseiro de uma viatura da Rota enquanto fazia uma ronda no Guarujá (SP). Um suspeito pelo tiro foi preso, mas o crime ainda é investigado.

Ao encerrar a primeira fase da operação, o secretário da Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, afirmou que o balanço era positivo e todo o cronograma estratégico foi cumprido. Em nota, o governo diz que as mortes estão sendo investigadas e que os laudos oficiais são isentos.

Mas não são poucas as testemunhas que narram versões opostas às ditas e documentadas por policiais, que, por lei, deveriam usar câmeras corporais nas ações. Apenas sete filmagens foram enviadas até agora ao Ministério Público —três seriam de confrontos, mas, mesmo nessas imagens, pouco é possível ver.

No início de setembro, o UOL percorreu favelas do Guarujá, Santos e São Vicente para apurar, nos locais, as histórias que não foram gravadas pela PM.

Em pelo menos cinco desses casos, inocentes foram mortos, segundo relatos e evidências apresentadas por testemunhas.

São histórias que não aparecem nos relatórios oficiais da SSP, mas que a câmera da reportagem gravou.

A identidade dos autores dos depoimentos será preservada por questões de segurança.

29/7/2023 - Cleiton Barbosa Moura, abordado com uma criança no colo

Cleiton Barbosa Moura, 24 anos, passou o último ano trabalhando, com carteira assinada, como ajudante de calceteiro, recebendo salário mensal de R$ 1,7 mil. Foi demitido em abril e passou a se beneficiar do seguro-desemprego.

Carteira de trabalho de Cleiton Barbosa, morto pela PM no Guarujá durante a Operação Escudo
Carteira de trabalho de Cleiton Barbosa, morto pela PM no Guarujá durante a Operação Escudo Imagem: Luis Adorno/UOL

Com um filho pequeno e casado, revezava com a mulher os dias de trabalho desde então: em um dia, ele trabalhava com bicos de ajudante de pedreiro; no outro, ficava em casa cuidando do filho, enquanto a mulher saía para trabalhar.

Em 29 de julho, dois dias depois da morte do soldado Patrick, ocorreu uma ação policial na favela de Sítio Conceiçãozinha, no Guarujá, onde ele morava com a família havia apenas quatro dias, numa casa de palafita.

"Quando eles [policiais] chegaram em todos os becos, desceram da viatura, já foram invadindo as casas. Aí encontraram o Cleiton na entrada da casa dele. Como ele tava com a criança no colo, ele entrou", narrou uma vizinha.

A testemunha disse que policiais entraram no barraco. Na sequência, outros policiais também entraram.

Pegaram a criança do colo dele, entregaram para outra criança, maiorzinha, que estava perto, aí pegaram ele [Cleiton] pela parte do gogó e arrastaram ele até uma parte do beco, que dá saída para a maré. Lá, mataram o rapaz. Vizinha de Cleiton

Cleiton havia sido preso por tráfico em 2020, mas cumpria a sentença em regime semiaberto fazendo serviço comunitário, segundo a própria família. Vizinhos e familiares negam que ele tenha trocado tiros com a polícia.

"Foi um massacre mesmo, para matar. Vieram para mostrar que iam matar todos que tinham passagem. Eles deixaram isso bem claro", afirmou uma vizinha que disse ter presenciado Cleiton ser arrastado de dentro de casa.

O que diz a SSP: Segundo a versão da PM, Cleiton fugiu e atirou contra os policiais antes de ser abordado.

"A equipe correu atrás deste indivíduo e houve um confronto. No início do confronto, durante a tomada de ângulo, o indivíduo, que já estava de arma em punho apontando para os policiais, em dado momento, efetuou disparos contra estes policiais que repeliram injusta agressão com o intuito de preservar a integridade da equipe."

31/7/2023, Filipe do Nascimento, o tiktoker que estava na hora e no lugar "errados"

Filipe do Nascimento, 22 anos, pegou a bicicleta da mulher e foi até um mercado comprar macarrão para jantar, em 31 de julho, na casa onde morava com a família, na favela de Morrinhos 4, no Guarujá.

Barraco na favela Sítio Conceiçãozinha onde, segundo vizinhos, Filipe teria sido morto
Barraco na favela Sítio Conceiçãozinha onde, segundo vizinhos, Filipe teria sido morto Imagem: Luis Adorno/UOL

Segundo moradores da comunidade, PMs chegaram ao local naquele dia carregando três pessoas que não viviam na região e que, depois, foram identificadas como pessoas em situação de rua que viviam na capital antes de serem mortas.

Filipe teria visto e, por isso, teria sido arrastado junto pelos policiais, segundo as testemunhas.

Trouxeram ele até aqui, que não era a moradia dele, a moradia dele é mais para frente. Entraram com ele nesse barraco e executaram ele aí dentro. Ainda pegaram a bicicleta da esposa dele e jogaram dentro do mangue. Testemunha em entrevista ao UOL no local

Segundo ela, vizinhos escutaram, após o barulho dos tiros, policiais comemorando, abraçando-se, dizendo que um dos que atiraram tinha sido batizado, por ser primeira morte praticada por um deles.

Filipe do Nascimento: testemunhas dizem que foi morto após presenciar assassinatos
Filipe do Nascimento: testemunhas dizem que foi morto após presenciar assassinatos Imagem: Arquivo pessoal

Douglas Brito chefiava Filipe em um quiosque da praia das Astúrias havia quase três anos. Ele se disse revoltado e indignado com a morte dele.

"Era uma rapaz que trabalhava tão bem, tanto na alta demanda, quando tinha bastante cliente, quanto na baixa temporada, porque era um cara que sabia recepcionar os clientes, sabia trabalhar, sabia se portar, não causava atrito entre os amigos de trabalho. O moleque tinha toda uma vida pela frente", disse, muito emocionado.

A última vez que Brito viu seu funcionário foi no dia 30, um dia antes de ele ser morto. Segundo o chefe, Filipe era um funcionário dedicado, que, a cada dia, aprendia uma tarefa nova.

O jovem tinha o sonho de ser tiktoker. Em sua conta na plataforma digital, publicava vídeos fazendo brincadeiras, além de mostrar um pouco de sua rotina de trabalho.

O que diz a SSP: Segundo a versão da PM, houve legítima defesa na morte de Filipe.

"Os PMs entraram em uma viela no bairro Morrinhos 4 e foram recebidos por um indivíduo que surgiu na porta com uma arma na mão. Nesse momento, um sargento efetuou dois disparos de fuzil a cerca de 2,5 m de Filipe. Um cabo que estava ao lado também efetuou disparos. No barraco em que Filipe estava, havia uma bolsa com drogas, uma pistola calibre 38 e nove tijolos de maconha."

18/8/2023 - Willians dos Santos Santana, o cabeleireiro torturado em casa até a morte

Assim que a Operação Escudo começou, dizem vizinhos e familiares de Willians dos Santos Santana, o encanador e cabeleireiro de 36 anos foi abordado por PMs que incumbiram a ele uma missão: dizer a criminosos que morassem na favela do Perequê, no Guarujá, que aconteceria uma ocupação militar e que pelo menos quatro pessoas seriam executadas na região em represália à morte do soldado Patrick. Os policiais teriam dito a Willians que, caso ele fosse pego na rua de novo, seria um dos quatro.

Familiares de Willians dos Santos (foto) dizem que ele foi morto após sofrer tortura
Familiares de Willians dos Santos (foto) dizem que ele foi morto após sofrer tortura Imagem: Arquivo pessoal

Em 18 de agosto, ele estava arrumando a energia elétrica da comunidade, porque tinha ocorrido uma pane. Depois, entrou no quintal de casa, onde aguardava um cliente, que iria cortar o cabelo.

Quando policiais chegaram na favela, todo mundo se entocou dentro de casa e o cliente de Willians não apareceu, segundo os moradores.

Dezenas de vizinhos afirmaram que PMs entraram direto no barraco de Willians e iniciaram uma sessão de tortura.

Pegaram o alicate, machucaram os dedos dele, o braço dele estava todo perfurado de faca. A gente viu no dia do velório dele, porque o IML também não deixou a gente ver. Os policiais estão falando que teve troca de tiros e que foi na via pública. Não teve nada disso Familiar de Willians

Segundo outro vizinho, PMs foram vistos entrando no barraco de Willians com uma mochila azul: "Foi o que forjaram, né? Foi o que eles estão falando, que ele tinha droga. Depois, ouvimos os pedidos de socorro, mas eles [policiais] não deixaram ninguém prestar socorro, inclusive a ambulância, que foi impedida de chegar pelos policiais", disse.

Um dos tiros disparados foi parar na casa de uma vizinha. Antes de os policiais irem embora, foram até a casa dela e capturaram a bala. Depois, ameaçaram outro vizinho, que, por medo, deixou a favela: "Você viu, né? Você viu que foi ele que atirou primeiro em mim, depois eu atirei nele, né?", teria perguntado um policial. "Ah, tu não vai confirmar? Você é o próximo", teria dito na sequência.

Uma das filhas de Willians teria tentado entrar no local, mas um dos policiais teria apontado um fuzil contra o peito dela e dito: "Aqui você não entra, o seu pai já está em óbito".

Segundo testemunhas entrevistadas pela reportagem no local, no momento em que os PMs teriam decidido matar Willians, ligaram as sirenes das viaturas para, com o barulho delas, evitar que a população escutasse os disparos.

O que diz a SSP: Segundo a versão da PM, Willians morreu após atirar contra policiais militares:

"PMs realizavam diligências na região, quando o homem fugiu ao perceber a aproximação da equipe. O suspeito atirou na direção dos policiais, foi baleado e morreu no local. Com ele, foram encontrados porções de maconha, crack e cocaína, além de um rádio comunicador e anotações do tráfico. A arma foi apreendida e a perícia acionada."

29/8/2023 - Wellington Gomes da Silva, com filho para criar, "trabalhava até na chuva"

Um dia antes de ser morto, Wellington Gomes da Silva, de 31 anos, foi gravado por um colega de trabalho pendurado em uma corda, sobre um prédio alto da Baixada Santista, sob chuva, trabalhando na reforma do edifício.

"Mas é isso aí, rapaziada, o negócio é trabalhar. O cara trabalha até na chuva", disse o rapaz na gravação. Um dia depois, ele foi morto pela polícia na favela do Sítio Cachoeira, no Guarujá.

Wellington da Silva, trabalhando como restaurador em prédio no Guarujá, um dia antes da morte pela PM
Wellington da Silva, trabalhando como restaurador em prédio no Guarujá, um dia antes da morte pela PM Imagem: Arquivo pessoal

Wellington já foi preso no passado, mas trabalhava havia um ano com carteira registrada em uma empresa de restauração predial. No dia em que foi morto, teria pedido ao patrão para ser liberado mais cedo, para conseguir buscar o filho na creche.

A caminho de casa, ele teria sido abordado pela PM. Como não devia mais nada à Justiça, teria sido liberado pelos policiais na sequência. Os familiares dizem que ele ligou avisando sobre o que aconteceu, dizendo que se atrasaria para buscar o filho por conta disso.

"Ele foi para casa dele para tomar banho para poder buscar o filho. Aí os policiais bateram no barraco dele. E ele falou: 'Senhor, não me mata, porque eu tô trabalhando agora e tenho um filho para criar'. Os policiais arrombaram a porta e deram um tiro na cara dele. Ele levantou a mão, pediu socorro, mas caiu de barriga no chão. Depois, os policiais deram mais três no peito", afirmou uma testemunha.

Outra familiar, quando soube, correu até lá. Ao chegar, o corpo já havia sido retirado.

Morreu inocente. Ele estava trabalhando, não estava na vida errada, entendeu? Foi muita covardia. Ainda saiu no jornal muita coisa que ele não fez. A única coisa que ele fez foi levantar a mão e pedir socorro. Não tinha nada no barraco dele. Familiar de Wellington

O que diz a SSP: Segundo a versão da PM, Wellington confrontou a polícia:

"As forças de segurança realizavam patrulhamento quando encontraram o suspeito com uma arma longa pendurada no ombro. Ele não obedeceu à ordem de parada e atirou contra os PMs, que intervieram. O homem foi ferido e levado à UPA Rodoviária, onde morreu. Com ele foram apreendidos uma submetralhadora, um carregador de munição e um rádio comunicador. Foi solicitada perícia ao local e às armas dos PMs e do suspeito."

3/9/2023 - Diogo Aparecido dos Passos Tomaz, baleado no colchão dos filhos

Era sexta-feira, dia 1º de setembro, quando Diogo Aparecido dos Passos Tomaz, de 37 anos, quebrou uma rotina que costumava ter aos finais de semana: não pegou seus três filhos pequenos porque teve de trabalhar no sábado, dia 2.

Nos últimos três anos, ele era ajudante geral num conhecido condomínio de luxo do Guarujá. Na manhã de domingo (3), entrou em contato com a ex-mulher pedindo para ela deixar os filhos arrumados, porque ele passaria a noite com eles.

Diogo Aparecido, o 27º morto pela PM durante a Operação Escudo
Diogo Aparecido, o 27º morto pela PM durante a Operação Escudo Imagem: Arquivo pessoal

Diogo foi à casa da mãe e, depois, voltou para sua casa, na favela Maré Mansa, que fica próxima da praia de Pernambuco.

Preparou arroz, feijão e salsicha. Deixou o colchão dos filhos arrumado na sala de sua casa de dois cômodos.

No fim da tarde, antes de os filhos chegarem, entraram ali quatro policiais militares do 13º Baep (Batalhão Especiais de Ações Especiais de Polícia), de Bauru, batalhão localizado a 440 km de distância do local. Segundo vizinhos e familiares de Diogo, os PMs entraram e o encontraram deitado no colchão dos filhos.

Logo na sequência, relataram terem ouvido Diogo clamar por socorro. Os pedidos do ajudante geral foram interrompidos com cinco estampidos de tiros.

Após alguns minutos de silêncio, os barulhos passaram a ser de água e do arrasto de vassouras no chão, seguidos de um rápido aumento de temperatura no local, promovido pelo colchão dos filhos de Diogo arrastado para o quintal e incendiado

Local onde familiares afirmam que Diogo foi morto e que teria sido lavado logo em seguida pela PM
Local onde familiares afirmam que Diogo foi morto e que teria sido lavado logo em seguida pela PM Imagem: Luis Adorno/UOL

Os policiais aguardavam, pacientemente, ainda conforme as testemunhas, as chamas consumirem todo o material do colchão, fumando ao lado da fogueira e descartando suas bitucas de cigarro sobre o fogo.

O UOL esteve próximo do local cerca de duas horas após os disparos terem sido feitos. No trajeto, encontrou duas familiares de Diogo.

"Eu vou botar a boca no trombone. Sabe por quê? O povo morre, a família chora e ninguém faz merda nenhuma. Eles, que fazem esses erros, eles têm família também. Só que eles, no momento de abrir o dedo e puxar o gatilho, não lembram disso", disse uma das familiares.

Ao chegar na esquina da casa onde Diogo vivia, havia duas viaturas do Baep escoradas em um matagal. Ninguém tinha permissão de entrar. Após a reportagem sair da favela, outra familiar telefonou:

Eu entrei lá na casa agora. Fiz dois vídeos. Eles lavaram todo o chão da casa. Queimaram o colchão que ele tava dormindo. A comida que ele fez tava quentinha em cima do fogão, porque ele precisava comer cedo para dormir cedo para trabalhar cedo amanhã [segunda-feira]. Familiar de Diogo

Dois dias depois, Diogo foi enterrado no cemitério Vila Julia, a poucos metros de onde o soldado Patrick foi morto em 27 de julho, desencadeando a Operação Escudo.

O velório aconteceu com o caixão lacrado. Depois do enterro, a reportagem voltou até a casa do Diogo. Lá, se deparou com as marcas do colchão que ainda aparecia queimado no quintal, com o chão da sala limpo, com a comida pronta sobre o fogão e com um prato sobre a pia da cozinha, com restos de arroz e uma colher suja.

O que diz a SSP: Segundo a versão da PM, Diogo morreu após atirar contra policiais militares:

"Os policiais realizavam diligências na comunidade, quando viram o suspeito em frente a uma residência. Ele correu para dentro do imóvel e efetuou um disparo na direção dos PMs, que intervieram. O homem foi ferido e socorrido à UPA Enseada, onde morreu. Com ele foi localizado um revólver calibre 38, que foi apreendido juntamente com as armas dos policiais. O local foi periciado e o corpo encaminhado ao IML."

"Operação Vingança"

Segundo policiais civis do departamento de Homicídios, oficiais da PM aposentados e especialistas em segurança pública entrevistados pela reportagem, historicamente, assim que ocorre a morte um policial em serviço em São Paulo, é estabelecida uma vingança policial de maneira informal. Foi o que aconteceu nos chamados Crimes de Maio, de 2006, e na chacina de Osasco, de 2015.

Quando isso ocorre, especialmente em áreas dominadas pelo crime organizado, homicídios são praticados na mesma região. Os principais alvos de grupos paramilitares são jovens, negros, que vivem em locais vulneráveis e que têm passagem criminal —seja ela qual for.

Assim, quando um homem negro e com histórico de ter praticado um crime no passado —mesmo já tendo pagado o que devia ao sistema judiciário- é morto, as suspeitas recaem sobre as vítimas, não sobre os autores dos disparos.

Para a Polícia Civil e promotores à frente da investigação de eventuais excessos na operação Escudo, porém, isso será difícil de se documentar.

Com testemunhas e moradores constantemente ameaçados, é quase impossível que as pessoas relatem à polícia e à Promotoria o que realmente viram. E, sem isso, a única versão que fica documentada é a apresentada pelos policiais militares envolvidos nas próprias ocorrências.

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