Ruas fechadas, blindados e tiroteios: as faces do medo no Equador
Os moradores das quebradas de Guayaquil têm horário para voltar para casa. Não podem estar na rua à noite, porque traficantes controlam portões nas entradas das ruelas.
Sem alternativa, a população se adapta. A frentista Daniela*, 34, pediu para trocar de turno, já que é obrigada a estar em casa antes das 19h. Ela mora na "ciudadela" de Guasmo. Em Guayaquil, ciudadelas são comunidades em bairros pobres.
Quem desrespeita o horário limite dos traficantes passa a noite na rua. É perigoso, porque o governo decretou estado de exceção com as Forças Armadas nas ruas.
Para a frentista, que tem medo até de dizer o sobrenome, passar a noite ao relento e ser considerada suspeita pela polícia está fora de cogitação.
Os portões que aprisionam os moradores foram instalados por eles mesmos entre 2010 e 2020, quando houve uma explosão de roubos.
A prefeitura ordenou a retirada, mas não teve efeito. Agora, o bloqueio tem sido usado por traficantes. Eles trancam os portões após matar um inimigo ou cometer um roubo grande.
Samuel Castillo, 66, abandona o posto de flanelinha perto de um shopping todo final de tarde. Os portões de sua ruela fecham às 20h. Ele mora em Pascuales, onde fica a Penitenciária del Litoral, maior complexo penal do Equador.
Portões fechados e toque de recolher
Os traficantes não estão preocupados com o ir e vir da população. Eles querem dominar as regiões mais estratégicas.
Em Durán, cidade da região metropolitana de Guayaquil, por exemplo, há bairros que servem de armazém para as drogas. Já Guasmo e Isla Trinitaria ficam perto do porto, de onde partem barcos que escondem cocaína nos navios.
O método é conhecido como "gancho cego": amarra-se o contrabando no casco e fixa-se um rastreador na embarcação. Comparsas monitoram a localização e recolhem a remessa quando o navio chega à Europa e aos Estados Unidos.
A gambiarra é responsável pelo escoamento de um terço da produção de cocaína da Colômbia.
Medo deixa ruas vazias
As quadrilhas recorrem a armas pesadas, decapitações e esquartejamentos na disputa de cada ruela. Também extorquem comerciantes e moradores para financiar o combate.
A violência atinge a todos. Em 2022, quatro crianças foram assassinadas num acerto de contas em Guasmo. A mais nova era um bebê de sete meses.
O pedreiro Edisón Conforme, 40, fala que os sicários (pistoleiros) miram em quem estiver no local da execução. As barbáries são filmadas e chegam aos celulares dos moradores.
O medo se percebe nas ruas. Não há carros ou pessoas circulando nos bairros perigosos, mesmo durante o dia. A reportagem do UOL chegou a Durán num carro dirigido pelo padre Simon, diretor de um projeto social. Foi abordada.
Ao entrar no bairro do Recreio, um homem saiu de uma casa de esquina, sorriu e pediu a bênção. Pelo celular, disparou o aviso da visita inesperada. O padre explica que as quadrilhas têm gente responsável por rondas no perímetro de seus territórios. As armas ficam entocadas, sem ostentação, mas sempre por perto.
Criados nesse ambiente inóspito, os três filhos de Mireya Quezada, 52, cresceram sabendo que estavam proibidos de sair na rua à noite.
Fui dura. Dei neles para aprenderem.
Mireya Quezada
Não se arrepende, porque todos chegaram à fase adulta. Edisón diz que basta ficar em casa para aumentar a chance de sobrevivência. É um raciocínio torto de alguém que passou a achar normal viver num permanente toque de recolher.
Blindados e trancados: o jeito dos ricos de se proteger
Exportadora de banana, Doris Polo, 57, acha que o sol do Equador aumenta a produtividade e a doçura da fruta.
As caixas que seguem para os EUA tomam emprestado dela o nome e o rosto —numa versão mais jovem. Mas, durante a noite, a Doris humana não passa do portão do condomínio de mansões em que mora. Ela e o marido têm medo de sequestros.
Encomendaram um SUV blindado. O carro chegou há três semanas. Os vizinhos também compraram veículos à prova de balas, mas as entregas demoram. Acuados, outros ricaços quiseram alugar o carro de Doris. Nada feito.
O marido, Jayme Cabrera, 61, visita as fazendas de banana com ele. Nem assim se sente seguro. As estradas do interior são estreitas e inviabilizam rotas de fuga. Um conhecido foi interceptado por criminosos. A blindagem não adiantou quando os ladrões jogaram gasolina embaixo do veículo e ameaçaram atear fogo.
Xenofobia e tortura como 'saída'
Guayaquil tem visto o caos e o crime prevalecer. Com isso, muitos moradores passaram a aceitar qualquer tipo de enfrentamento —até a tortura.
Grupos de WhatsApp e Telegram trocam vídeos de militares pisando, chutando e dando madeiradas em criminosos recém-capturados. Os likes chegam às dezenas de milhares. Outros aprovam as postagens com a imagem de um militar com um pedaço de pau onde está escrito "derechos humanos" [direitos humanos].
Procuradas, as Forças Armadas informaram não saber se as gravações são verídicas. Não há nenhuma investigação para apurar os casos, que podem inclusive ser de anos anteriores.
Mas foram as próprias Forças Armadas que postaram, em seu perfil no X (antigo Twitter), vídeos da humilhação de presos de cuecas, sendo obrigados a cantar o hino do Equador.
Pesquisadora na área de crime organizado, Michelle Maffei explica que a população está exausta de ser refém das quadrilhas.
Vendedor de sorvetes de produção caseira, Rúben Perero, 61, é um dos que afirmam que "criminosos merecem apanhar" e não são dignos de piedade.
Funcionário de um hotel, Michael Vera Merelo, 22, sente satisfação em ver criminosos apanhando. Na sua opinião, as surras deviam estar acompanhadas do fechamento das fronteiras, já que ele põe a culpa do caos em venezuelanos e colombianos. A xenofobia também entrou no cotidiano do Equador.
Tiroteios diários e sem medo de morrer
Subtenente da polícia, Nataly Orna comanda um pelotão no Divino Niño, outra área de Durán usada para estocar drogas.
Os tiroteios são diários. Quando acontecem, a central dá o alerta no rádio para prender os criminosos.
Na última ocorrência, os disparos partiram de uma caminhonete preta. Ouvidos treinados suspeitavam de fuzil. Nataly liderou as buscas.
Não demorou para avistarem uma caminhonete que coincidia com a descrição. Não havia para onde fugir. Os dois criminosos se atiraram ao chão para se entregar. A revista no veículo revelou um fuzil e uma pistola.
Nessa hora é adrenalina total. No ambiente de tensão você muda seu trato, se torna mais agressiva.
Nataly Orna, subtenente da polícia
Ela diz que, se tiver medo de morrer, a morte fica mais perto. Nataly tem 23 anos.
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