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Obras emergenciais em SP: 223 contratos têm indícios de conluio

Pelo menos 223 dos 307 contratos para obras emergenciais sem licitação realizadas na gestão de Ricardo Nunes (MDB), prefeito de São Paulo, trazem indícios de combinação de preços entre empresas concorrentes. São obras para contenção de encostas, intervenções em margens de rios, córregos e galerias pluviais, recuperação de passarelas, pontes ou viadutos.

Em 171 contratos apenas o vencedor apresentou desconto relevante —as outras empresas não ofereceram desconto ou recusaram o convite para participar da disputa. Em outros 52 contratos, os demais concorrentes apresentaram descontos irrisórios —abaixo de 0,3 ponto percentual do valor de referência.

Os valores com indícios de combinação somam R$ 4,3 bilhões, ou 87% do total contratado emergencialmente.

A gestão de Nunes é marcada pelo aumento expressivo de contratações emergenciais, concentradas na Siurb (Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana e Obras). Entre 2021, quando assumiu a prefeitura, e o final de 2023, o atual prefeito gastou R$ 4,9 bilhões em contratos emergenciais. Juntos, os último quatro prefeitos da capital gastaram quase R$ 950 milhões nesse tipo de contrato — Kassab, R$ 116 milhões; Haddad, R$ 140,7 milhões; João Doria e Covas, juntos, R$ 676,3 milhões.

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Imagem: Arte/UOL

O contrato emergencial e sem licitação funciona assim:

  • a prefeitura envia ofícios a três construtoras e pede a elas que ofereçam descontos no BDI, termo usado na construção civil para se referir aos custos indiretos de uma obra, aplicados no orçamento final
  • a empresa que oferecer o maior desconto leva o contrato e faz a obra

Nos casos com indício de combinação, a reportagem verificou a repetição de um padrão que sugere não haver disputa:

  • apenas uma convidada apresentou desconto relevante de BDI à prefeitura
  • as outras duas não apresentaram descontos no BDI, ofereceram descontos irrisórios ou recusaram o convite

Em apenas 58 contratos as três empresas apresentaram propostas divergentes e aparentemente competitivas entre si. Os valores somam R$ 450,3 milhões (9,2% do total contratado),

A reportagem deixou de classificar 26 contratos (R$ 139,5 milhões, ou 2,8% do total) — são casos em que os documentos necessários à análise não estão disponíveis.

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Imagem: Carol Malavolta/UOL

Embora a lei permita que o poder público escolha diretamente o fornecedor de bens ou serviços em caso de emergência ou calamidade pública, o município optou pelo modelo de convidar três empresas para executar as obras nestas centenas de casos desde 2021. O UOL procurou o prefeito Ricardo Nunes na semana passada, mas seu gabinete informou que as respostas seriam dadas pela Siurb.

Em entrevista ao UOL, o secretário da Siurb, Marcos Monteiro, se disse surpreso com a descoberta e afirmou ter solicitado uma avaliação do caso pela área técnica.

"O que você pode fazer para controlar isso? Nossa obrigação é tentar entender a dinâmica das coisas e tentar evitar", disse.

A decisão sobre qual empresa convidar é da Siurb. Em documentos que constam dos processos de contratação, funcionários da secretaria referem-se às empresas convidadas como "sugestões da superior administração".

Monteiro declarou tratar-se de uma referência a ele próprio, na condição de responsável por assinar o contrato da obra. No entanto, ele afirma que não participa da escolha das empresas a serem convidadas, tampouco conhece a "sistemática" aplicada aos convites - segundo ele, a decisão cabe ao corpo técnico da secretaria.

O engenheiro civil foi convidado ao cargo, no fim de 2020, por indicação de Ricardo Nunes, logo após sua eleição como vice-prefeito na chapa encabeçada por Bruno Covas (PSDB).

Maiores contratos

As campeãs de contratos emergenciais para obras na gestão Nunes são três empreiteiras controladas pela mesma família: B&B Engenharia, BBC Construções e Abcon Engenharia.

Elas assinaram 38 contratos no período analisado (15% do total), que somaram R$ 751,1 milhões. Juntas, as empresas foram convidadas a participar de 87 das 307 obras contratadas.

Em parte dos contratos em que a reportagem verificou a repetição do padrão de não concorrência, um mesmo grupo de empresas se alterna entre dois papéis: o de oferecer um desconto à administração para levar a obra e o papel de recusar o desconto ou de declinar o convite.

Por exemplo: em 27 de abril de 2022, a B&B Engenharia foi a única a oferecer desconto relevante de BDI (0,8 ponto percentual) para obra de contenção de margens de córrego na Vila Guilherme, e foi contratada por R$ 15,8 milhões. Convidada a realizar a mesma obra, a FP Projetos se recusou a oferecer desconto.

Quinze dias depois, as mesmas duas empresas foram convidadas para recuperar galerias pluviais da Rua Miguel Teles Júnior, ao custo de R$ 8,6 milhões. Nesse caso, a B&B se nega a oferecer desconto, e a FP é a única a oferecer desconto (0,76 ponto percentual).

O mesmo ocorreu com a BBC em junho daquele ano: no dia 27, a empresa apresentou proposta de desconto de 1 ponto percentual no BDI e levou a obra de contenção de margens do Córrego Rio Verde, em Itaquera. Na ocasião, a empresa Progredior recusou-se a oferecer desconto de BDI.

Duas semanas antes, a Progredior havia sido escolhida para realizar obra de contenção de muro de escola do bairro M'Boi Mirim, com desconto de pouco mais de 2 pontos percentuais. Na ocasião, foi a vez da B&B, empresa que pertence aos mesmos donos da BBC, recusar-se a oferecer desconto de BDI.

Situações assim se repetem na maioria das contratações emergenciais da administração municipal e sugerem que a disputa pelo menor preço não é real.

Os donos da BBC e B&B informaram que suas empresas "têm vasto histórico de execução de obras de diversas complexidades" e negaram haver combinação de preços. "Não temos conhecimento dos demais convidados", afirmaram.

A Abcon informou ser detentora de "expertise" para a realização das obras para as quais foi contratada. Perguntada se tinha conhecimento sobre quais eram as outras empresas convidadas a realizar a mesma obra, a empresa não respondeu.

A empresa FP Projetos negou ter conhecimento sobre outras empresas convidadas para as obras emergenciais.

Até a publicação deste texto, a Progredior não havia se pronunciado.

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Imagem: Carol Malavolta/UOL

Aparência de competitividade

A apresentação de uma proposta, sempre no valor mais alto possível, e a opção por não submeter proposta por parte de outra, com o intuito de beneficiar uma terceira, são estratégias para dar aparência de competitividade a uma disputa por contratos, segundo entendimento do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), órgão de defesa da concorrência do governo federal.

Em 2023, o Tribunal de Contas do Município (TCM) realizou a análise de 53 contratos emergenciais de São Paulo de 2021 e 2022 e constatou que, "em cerca de 90% das obras selecionadas", a Siurb "agiu com insuficiente planejamento para o enfrentamento de problemas históricos da cidade e, em vez de promover licitações, celebrou contratos emergenciais".

O relatório classificou este movimento como "emergência fabricada": em vez de abrir uma concorrência pública para resolver problemas da cidade, o gestor classifica determinada situação como emergencial e contrata prestadores de serviço por meio de convite, sem licitação.

Em 18 obras visitadas pelos auditores no mesmo trabalho de inspeção, que custaram R$ 442 milhões, foram detectados indícios de superfaturamento de R$ 67,1 milhões.

Para produzir esta reportagem, o UOL ampliou o objeto de análise do TCM e reuniu todos os 307 contratos emergenciais da Siurb assinados de 2021 a 2023 e divulgados oficialmente pelo órgão. Os documentos foram compilados usando a ferramenta Pinpoint, do Google, e estão disponíveis para consulta pública.

A análise teve como foco a concorrência entre empresas convidadas a apresentar propostas - a lei determina que, mesmo em processos de compra fora do tradicional processo licitatório, os órgãos públicos devem zelar pela busca de melhores condições de serviço e preço.

Proteção de riscos

Antes de 2021, início da gestão de Ricardo Nunes, as obras emergenciais ficavam a cargo da SMSub (Secretaria de Subprefeituras), que precisa obedecer a um decreto de 2019 para fazer contratações emergenciais.

Esse decreto diz que a SMSub só pode contratar empresas em regime de emergência se houver um relatório da Defesa Civil Municipal reconhecendo a situação de risco e um laudo da Atos (Assessoria Técnica de Obras e Serviços) da SMSub que "caracterize a urgência de atendimento da situação de risco". O decreto não se aplica à Siurb.

Ao UOL, o secretário Marcos Monteiro disse que os processos de contratação emergencial na secretaria são acompanhados de atestados de emergência feitos pela Defesa Civil. "Pode acontecer de, nos casos mais antigos, de 2021, por exemplo, quando a gente estava começando [a fazer obras emergenciais], isso não estar no processo administrativo", disse.

Para especialistas em licitações, a contratação emergencial por meio de convite não é um problema em si e pode ser realizada quando devidamente justificada. A lei, no entanto, determina que a administração busque melhores condições para a contratação, inclusive naquilo que diz respeito a preços.

O professor de Direito Administrativo da FGV, Carlos Ari Sundfeld, destaca a necessidade de se verificar se os valores cobrados pela convidada estão dentro dos padrões do mercado.

"O que pode haver é irregularidade no preço", afirma. "Em vez de uma consulta real para saber o parâmetro dos preços, existe um jogo em que a prefeitura sabe que a empresa que ela vai contratar não tem competitividade, e aí simula uma concorrência", comenta o professor, que participou da elaboração da lei das parcerias público-privadas, da LINDB (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro) e da Lei Geral das Telecomunicações.

"A contratação emergencial pressupõe procedimentos que acautelem a proteção de riscos, como um direcionamento indevido de obras para determinadas empresas", diz o advogado e professor de direito administrativo da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) Rafael Maffini.

O especialista menciona a necessidade de se endereçar convites a empresas de forma alternada e de não haver vício no debate sobre valor a ser pago nos contratos, considerando princípios da administração pública como economicidade, moralidade e eficiência.

Artigos da Lei de Infrações contra a Ordem Econômica e da Lei Anticorrupção vedam a prévia combinação de preços entre empresas que disputam um contrato público, mesmo que na modalidade emergencial. Quem descumpre a norma está sujeito ao pagamento de multa ou pena de proibição de contratar com o poder público.

'Emergências fabricadas'

Para o TCM, a prefeitura de SP fabricou emergências para aumentar o orçamento da Siurb e gastar o dinheiro com contratações diretas, segundo análise do órgão de controle realizada no primeiro semestre de 2023.

A auditoria atestou que as despesas orçamentárias da Siurb aumentaram de R$ 370 milhões em 2020 para R$ 2,63 bilhões em 2022.

Em resposta, a Siurb disse aos técnicos do TCM que foram feitas mais obras emergenciais porque as subprefeituras tinham "demanda represada" e explicou que o aumento da dotação orçamentária da secretaria aconteceu justamente por causa das emergências.

Os técnicos da corte de contas concluíram, a partir da resposta, "que a Siurb se utilizou da justificativa de dispensa de licitação por emergência de forma habitual para dar vazão à realização de obras demandadas pela subprefeituras, em afronta à obrigação de licitar estabelecida na Constituição Federal".

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