Filipe Chrysman acordou com calor e logo percebeu o cheiro de queimado. O atacante de 16 anos dormia no quarto 6 do alojamento do Ninho do Urubu, exatamente onde começou o incêndio.
A tragédia matou dez garotos das categorias de base do Flamengo na madrugada de 8 de fevereiro de 2019.
O primeiro ar-condicionado a pegar fogo estava próximo a Filipe. Ele saiu do quarto incomodado com a fumaça e o calor. Foi aí que percebeu a gravidade.
Chegou a correr até um bebedouro para buscar água, mas não adiantou. Tudo piorou a partir desse momento.
Enquanto isso, Pablo Ruan foi acordado por Jorge Eduardo. O rapaz estava atordoado, mas conseguiu colocar a cabeça para fora da janela.
Já era impossível respirar dentro do contêiner.
Pablo tentou então abrir a porta da estrutura de aço. Estava emperrada. A saída era a janela. Por ser magro, conseguiu escapar por entre as grades.
Jorge não teve a mesma sorte. Ele foi um dos dez mortos no incêndio.
O UOL mostra nesta reportagem como foram as últimas 24 horas antes da tragédia no CT do Flamengo.
O relato é baseado no depoimento de quem trabalhava no local, na investigação da polícia e em detalhes descritos pelos sobreviventes em entrevistas.
A história é contada na série documental "O Ninho: Futebol e Tragédia", com ideia original e desenvolvimento do UOL. Os três episódios estão disponíveis na Netflix.
Aniversário e Amizade
O Ninho do Urubu era um local de sonhos. Representava a chance de jovens sair de casa e compartilhar com colegas o ambiente e um objetivo: ser profissional do futebol.
Aquela seria uma semana de celebração para Arthur Vinícius. O aniversário dele seria no dia seguinte e isso mobilizava outros jogadores.
Rykelmo, dois anos mais velho que os colegas, havia contado à mãe que queria passar os próximos dias no Ninho para comemorar os 15 anos do amigo.
O volante também queria abraçar os garotos recém-chegados ao clube, como Gedson dos Santos, o Gedinho.
Rykelmo sabia da importância da integração de novatos, talvez para replicar a amizade que tinha com Daniel Cabral — à época titular do time sub-17.
Daniel, inclusive, deveria estar ali na madrugada do incêndio, como fizera nos outros dias da semana.
O meia usava o alojamento do Ninho na capital porque o de Mesquita, cidade onde morava, na Baixada Fluminense, era muito distante.
Mas, na tarde anterior ao incêndio, ele preferiu ir para casa porque se apresentaria à seleção sub-17 no dia seguinte. Ele era titular do time campeão mundial da categoria em 2019.
Falta de luz
Daniel nem se deu conta de que houve falta de luz, segundo depoimentos. Ele já havia deixado o CT.
Cauan Emanuel, um dos sobreviventes, contou à polícia que a energia caiu por volta das 16h na véspera.
A luz voltou cerca de 1h30 depois, segundo esse relato, sem qualquer oscilação perceptível posterior.
Naydjel Callebe disse, no entanto, que não houve queda de luz. Mas citou um episódio anterior, ocorrido naquela mesma semana.
As tomadas do ar-condicionado de dois quartos do Ninho do Urubu emitiram estalos três dias antes do incêndio. Os garotos desligaram os aparelhos da energia.
Houve um temporal no Rio, com instabilidade elétrica no Ninho do Urubu, segundo depoimento de Pablo Ruan.
A diferença em relação a Naydjel é que Pablo percebeu uma falta de luz, que relatou ter durado cerca de 20 minutos, na tarde da véspera do incêndio.
Jean Sales afirmou que o fornecimento de energia no dia 5 foi restabelecido porque os geradores foram ligados. Ele confirmou a falta de luz na véspera.
O teste com VAR no Maracanã
A expectativa era alta horas antes do incêndio.
Parte dos garotos iria ao Maracanã no dia seguinte fazer uma atividade que serviria de teste para homologação do VAR (árbitro de vídeo) no estádio.
Mas, para quem morava no CT do Flamengo, o foco era outro.
"Estava ansioso porque havia chance de, na sexta-feira, me responderem se eu seria aprovado ou dispensado do clube", lembra Gabriel Castro, um dos sobreviventes.
O teste do VAR não aconteceu. Gabriel tinha 15 anos na época e ficou mais três meses no Flamengo após a tragédia, antes de ser dispensado.
Quem dorme onde?
O alojamento da base no Ninho não estava com máxima ocupação na noite da tragédia.
O contêiner principal, alugado da empresa NHJ, tinha seis quartos, com três beliches cada um.
Alguns jogadores saíram durante o dia e havia camas vazias, o que embaralhou a disposição dos garotos pelos quartos.
Kennedy Lucas decidiu dormir em uma casa de alvenaria fora do contêiner. Cauan Emanuel, Dyogo Silva, Jhonata Ventura e Athila Paixão ficaram no quarto 3.
Rykelmo dormiu no quarto 5. O quarto 2 reuniu Christian Esmerio, Jorge Eduardo e Samuel Thomas.
O quarto 1 era o mais distante da porta. Arthur, Bernardo Pisetta, Gedinho Santos, Pablo e Victor Isaías estavam nele.
O monitor Marcus Vinícius colocou a turma para dormir por volta das 23h. Mas eles não dormiram logo de cara.
O celular era companheiro antes do sono para a maioria. Mandavam recados para a família e se divertiam com jogos.
Kayque Soares, um dos sobreviventes, jogou Free Fire no telefone até 1h45, pelo que se lembra. O passatempo era comum entre os jogadores.
O recado da mãe
Felipe Cardoso tinha poucos dias de Flamengo.
Estava se acostumando com o elenco e ficou até tarde conversando com o irmão por mensagem. Também recebeu um recado da mãe naquela madrugada.
Ela dizia estar com saudade e também mandou versículos bíblicos. Um dos trechos foi tirado do Salmo 91.
"Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, à sombra do Onipotente descansará." E mais adiante: "Mil poderão cair ao teu lado, dez mil à tua direita, mas tu não serás atingido."
O meia estava no quarto em que o incêndio começou e não foi atingido porque foi acordado a tempo pelo xará Filipe Chrysman.
"Acorda, acorda, tá pegando fogo!"
Ao perceber o ar-condicionado em chamas, Felipe pegou alguns pertences e colocou no sofá em frente ao quarto.
Não imaginou que o fogo se alastraria. O jogador chegou a sugerir aos colegas que voltassem para buscar coisas, mas outros dois não quiseram.
Eles olharam para trás ao sair do alojamento e viram que o fogo já estava pegando no teto. Chamaram o monitor e ouviram a explosão.
As chamas se espalharam por toda a estrutura. As paredes eram formadas por duas chapas de aço, recheadas por poliuretano, uma espécie de espuma, que é inflamável.
O Flamengo e a NHJ, de quem o clube alugou a estrutura, reconheceram a composição. Mas disseram que o composto em questão "não é propagador de incêndios".
Era difícil acreditar no que estava acontecendo. "Acorda, acorda, está pegando fogo!" era um grito que ecoava pelo alojamento.
O zagueiro Jhonata Ventura, ainda sonolento, não deu tanta importância de início.
Pensou se tratar de alguma brincadeira e até voltou a cochilar. Mas o goleiro Francisco Dyogo — hoje no time principal do Flamengo — o despertou.
O pedido de socorro acordou Cauan Emanuel, que estava no mesmo quarto. Cauan também achou que era uma zombaria dos companheiros, até que sentiu a fumaça e um vapor quente quando tentou abrir a boca.
O garoto percebeu que não tinha mais como sair pela porta, devido à fumaça e à alta temperatura que vinha do corredor.
Foi quando ele decidiu quebrar a janela. Precisou de duas tentativas. Enquanto isso, viu o monitor Marcos Vinicius e o segurança Benedito Ferreira ajudando a abrir o espaço pelo lado de fora.
Eles conseguiram tirar duas barras da grade. Passaram por ela Jhonata, Dyogo e, por fim, Cauan, que se jogou para fora.
Athila em momento algum se mexeu ou deu sinais de que poderia se salvar, mesmo com os gritos para acordá-lo. Parecia desmaiado, segundo relatos.
Incêndio avassalador
Dyogo e Cauan estavam sem ar. Mas, dos que saíram, Jhonata estava em situação pior. O zagueiro sentiu a camisa pegando fogo, entrou em desespero e a tirou.
As chamas atingiram os braços. A fumaça já estava muito forte e ficou tudo escuro.
Ele não enxergava e procurava a janela apenas pelo tato. De repente, sentiu alguém lhe puxar em direção à janela e ajudar a sair. Os três saíram e foram levados ao hospital.
Havia muita correria do lado de fora do alojamento.
Os poucos funcionários e os garotos que saíram tentavam se aproximar dos outros quartos para abrir brechas nas janelas. Mas a fumaça preta e as chamas tomavam conta.
Era por volta das 5h e duas funcionárias da limpeza já haviam chegado. Uma delas, Daniele, se desesperou quando viu a cena. Foi ela quem chamou Benedito Ferreira.
O incêndio já era avassalador. A tentativa de usar extintores, enquanto os bombeiros não chegavam, foi em vão.
Na época, o Flamengo não tinha alvará para instalação de módulos habitacionais no Ninho. A estava delimitada junto à prefeitura como estacionamento.
A dimensão da tragédia só foi notada quando o monitor e os seguranças reuniram os garotos sobreviventes, pegaram uma lista e fizeram a contagem.
Faltavam dez.
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