Na última segunda-feira (22), o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, foi convidado a dar uma palestra na Fundação Fernando Henrique Cardoso, no centro de São Paulo.
Ele aceitou e falou para uma plateia composta por gente como Nelson Jobim, ex-presidente do Supremo, Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central, e o criminalista Theo Dias.
Após quase uma hora de discurso, o ministro passou a responder sobre suas prioridades no Supremo e no CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que também preside.
"Os meus projetos hoje são mais no CNJ do que no Supremo", introduziu. "No Supremo, é manter um ambiente pacífico e produtivo."
A plateia, que até então escutava em silêncio, riu. Barroso interrompeu a fala com semblante sério. Os risos continuaram.
"Sim, é importante. Um ambiente pacífico e produtivo", prosseguiu o ministro.
"Uma das mudanças qualitativas relevantes" do Brasil sob Lula, e não mais sob Bolsonaro, constatou, é o ministro não ser mais insultado quando toma decisões contra o governo.
"E a coisa da cordialidade é um ponto importante", sustentou. A plateia aquietou-se.
"Eu tenho uma posição pessoal, seguida por muitos, talvez a maioria. Se eu considerar que a matéria é institucionalmente relevante, eu não concedo decisão monocrática [individual] ou, se conceder, imediatamente levo à ratificação do plenário", disse Barroso.
A atitude, prosseguiu, o poupou de aborrecimento.
"Quando o governo passado quis pedir o impeachment de ministros do Supremo, eles anunciaram que iam pedir de dois ministros, do ministro Alexandre e o meu. E na última hora não entraram com impeachment contra mim", afirmou.
"Não conseguiram achar nenhuma decisão monocrática minha. Toda decisão minha relevante que tinha desagradado, todas eu levei ao plenário para ratificação. Então, eu acho, sim, que a colegialidade é muito importante."
Barroso não mencionou, mas, em agosto de 2021, o então presidente Bolsonaro cumpriu a promessa e entrou com pedido pessoal de impeachment contra Alexandre de Moraes. Em dias, contudo, foi rejeitado e arquivado no Senado.
Moraes já foi objeto de mais de 40 pedidos de impeachment do Senado. Barroso também sofreu iniciativas do tipo, assim como quase todos os ministros da corte. Nenhum até agora passou perto de prosperar.
Moraes, diferentemente de Barroso, tomou diversas "decisões monocráticas institucionalmente relevantes" no escopo de inquéritos que ele relata, como o das fake news, das milícias digitais, das joias sauditas e do 8 de janeiro.
Ele sempre argumenta que as mais sensíveis foram, depois, respaldadas pelo plenário.
Minutos antes em sua palestra, Barroso havia defendido Alexandre de Moraes dos ataques semanais que recebe de bolsonaristas como no ato em Copacabana na véspera, no domingo (21).
No conjunto, eu acho que a atuação dele [Moraes] merece a admiração e respeito, e eu tenho defendido o que acho, que ele tem um papel muito importante nesse momento brasileiro.
Luís Roberto Barroso presidente do Supremo Tribunal Federal
O elogio repercutiu, mas a alfinetada passou despercebida.
Supremas diferenças
As diferenças de método, estilo e de pensamento com Barroso na presidência já inauguraram uma nova fase no Supremo neste ano.
Antes da chegada de Bolsonaro ao poder, o Supremo protagonizou rachas, bate-bocas e rompimentos públicos, especialmente nos julgamentos da Lava Jato.
Barroso tomou decisões favoráveis à operação e se viu em disputa de posições com os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, por exemplo.
Algumas tiveram ampla repercussão — como quando disse em 2018 que Gilmar era "a mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia".
São de histórias como essas que a plateia da Fundação Fernando Henrique Cardoso se lembrou ao rir do projeto de Barroso de manter o ambiente do tribunal "pacífico e produtivo".
O Supremo de 2024 já aprendeu com as divisões de 2018 e com os ataques extremistas da era bolsonarista. Já não é mais nem tão rachado como durante a Lava Jato nem tão unido como durante os ataques à democracia e às instituições.
Mas o tribunal hoje começou a mostrar diferenças entre os ministros que estavam adormecidas.
Um deles disse reservadamente que, sentindo-se menos ameaçados pelo bolsonarismo, os colegas de tribunal podem começar a pontuar diferenças com Moraes sem correr o risco de enfraquecerem a instituição.
Para interlocutores de Alexandre de Moraes, ele não chegará a perder o apoio que recebeu dos colegas nos momentos mais tensos de enfrentamento ao bolsonarismo — não porque tenha respaldo incondicional e sim porque recuará ao primeiro sinal de derrota.
No entorno próximo do ministro, já se fala no encerramento do inquérito das fake news e num prazo mais delimitado para o das milícias digitais —- que só acabará, segundo aliados de Moraes, após a votação sobre o marco civil da internet pelo plenário do STF.
Fim do protagonismo de Moraes
Ao estabelecer limites temporais para os inquéritos que lhe conferiram tanto poder, aliados sinalizam com o começo do fim do protagonismo inédito de Moraes.
"Dá para perceber que a ação dura e continuada do Alexandre começa a gerar fadiga", disse o cientista político Claudio Couto, da Fundação Getulio Vargas.
Segundo Couto, o país vive uma trégua temporária nas ameaças extremistas, com uma tensão latente.
Com essa falsa calmaria, Alexandre continuar no mesmo ritmo sem certa contenção produz desgaste. Por isso o melhor é dar fim. Chega de medida parcial. Vai logo a julgamento. Senão parece que está imolando em praça pública, fazendo sangrar. O discurso de 'ditador' ganha plausibilidade assim.
Claudio Couto sobre julgamento de bolsonaristas investigados pelos ataques de 8 de janeiro
"No momento em que se relaxa, a unidade entre os ministros, que era defensiva, se enfraquece. As fissuras que já existiam antes ficam agora explicitadas", concluiu Couto.
Nelson Jobim, na plateia da Fundação Fernando Henrique Cardoso, também cobrou "contenção" do tribunal e de Barroso.
"No momento em que se faz [apelos em] excesso ao Supremo, você está desprestigiando a solução da política. Aí vem a contenção e aí, Barroso, a responsabilidade da contenção é do presidente do tribunal", afirmou Jobim.
"Que o Supremo esteja desprestigiado, isso é irrelevante no sentido do que estamos falando aqui. Agora, eu creio, Barroso, que tem que ser meditado dentro do tribunal uma forma pela qual o tribunal não comece a avançar num [processo de ditar] como [a política deve atuar] de forma definitiva", completou.
Lavajatistas e a 'bancada de Lula'
Não foi à toa que o lavajatismo voltou a mostrar as diferenças dos tribunais nos últimos dias.
Barroso protagonizou na semana passada um embate que inaugurou a nova fase. Fez um voto duro contra uma medida monocrática do corregedor no CNJ, Luís Felipe Salomão, na segunda-feira (15).
Sozinho, Salomão decidiu afastar a juíza Gabriela Hardt, que substituiu Sergio Moro na 13ª Vara de Curitiba, e mais três magistrados.
"Considero que a medida foi ilegítima e arbitrária", criticou o presidente. Em seguida, Barroso conseguiu reverter parcialmente o ato de Salomão no plenário do CNJ.
No combate à Lava Jato, o corregedor é aliado de Gilmar Mendes, que na mesma segunda-feira criticou Moro em entrevista ao UOL e depois foi para casa para ser anfitrião de um jantar.
Seus convidados não eram quaisquer frequentadores de Brasília.
Naquela noite, Gilmar recebeu o presidente Lula para jantar acompanhado de Lewandowski, hoje ministro da Justiça, e Jorge Messias, titular da Advocacia-Geral da União.
Também foram convidados Alexandre de Moraes e os dois ministros indicados pelo petista ao Supremo: Flávio Dino e Cristiano Zanin. Barroso não foi.
Na Presidência da República, Bolsonaro uniu o plenário do Supremo contra ele. Lula opera sob outra lógica.
Lula prioriza a interlocução com os ministros com quem já tem afinidade em detrimento de zelar pela união do plenário do Supremo. E faz isso num momento em que as tensões com o terceiro Poder dessa equação, o Legislativo, aumentam.
"Creio que Lula sabe que o STF se tornou uma arena que pode aprovar propostas que tenham sido derrotadas no Parlamento", comentou Marta Arretche, professora titular de ciência política da USP.
"Por isso, ele está calibrando a composição do STF com a indicação de Dino e a relação com o STF com a indicação do Lewandowski [pra pasta da Justiça]", continuou Arretche.
"Do ponto de vista do sucesso do governo, me parece uma estratégia ótima, dada a composição e a liderança da Câmara dos Deputados. Do ponto de vista da polarização política, a estratégia me parece bem arriscada, por aumentar a pressão sobre o STF."
Com ministros menos alinhados, como Kassio Nunes Marques, indicado por Bolsonaro, o petista tem feito aproximações pontuais. Segundo relatos, atua em pautas específicas, em geral relacionadas aos cofres da União.
Com nomes como o de Dias Toffoli, que Lula indicou, mas de quem depois se afastou, hoje o presidente mantém uma espécie de distância segura — há interlocutores em comum que fazem a ponte quando necessário, mas também de maneira pontual.
Na mesma semana em que foi pro embate no CNJ, Barroso foi pro apaziguamento no Congresso.
O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), enfurecido com o governo Lula, sinalizou que ia abrir as CPIs (comissões parlamentares de inquérito) que estivessem paradas.
Uma delas pretendia investigar supostos abusos do STF.
Moraes, sem incluir na agenda oficial, foi até a residência oficial do presidente da Câmara de manhã conversar com Lira. Ouviu que nenhuma CPI contra o tribunal seria instalada.
Barroso, horas mais tarde, já no final do dia, fez um telefonema ao deputado em tom mais protocolar.
Um sinal dos tempos foi evidenciado pelo cientista político Sergio Fausto, diretor-executivo da Fundação Fernando Henrique Cardoso.
Em março de 2023, ao receber Alexandre de Moraes para uma palestra, Fausto externou "gratidão pessoal" pelo papel desempenhado pelo ministro na preservação da democracia no Brasil durante uma fala toda elogiosa.
Na última segunda, Fausto recebeu Barroso em outro tom.
"Não querendo soar por demais provocativo, mas sendo", introduziu, "em que outro país do mundo o presidente de uma corte constitucional, do mais alto tribunal do país, apresentaria como agenda constitucional, uma agenda que tem educação, saneamento, saúde etc?", questionou ao comentar a fala de Barroso, que em sua visão era demonstração de uma politização do Supremo.
Barroso, ao encerrar a palestra, devolveu a provocação.
"Quando você tem o grau de exposição pública que a gente tem, decidindo as grandes questões nacionais, tem que acertar o ponto, para não se tornar apenas mais um ator político", disse. E agradeceu o convite.
"Sergio Fausto também é uma pessoa que eu admiro e a quem quero imensamente bem, apesar de ele achar inadequado eu vir aqui debater com vocês", zombou, para diversão da plateia, que gargalhou.
O jurista Oscar Vilhena, da mesa, emendou: "Convida e critica!".
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