Nos 18 segundos em que esta frase foi digitada, 10.800 pessoas visitaram o site do Mercado Livre. Seiscentas pessoas entram na plataforma a cada segundo — 52 delas fazem compras.
Se o produto tiver o selo full, é possível que o consumidor efetue o pagamento, comece a ver um filme de longa-metragem e a encomenda chegue antes de ele acabar.
Essa velocidade ajudou a transformar o Mercado Livre em sinônimo de comércio eletrônico e o levou à liderança do varejo online brasileiro.
Em 2022, a empresa registrou R$ 80,5 bilhões em vendas brutas, segundo a Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo, quase o dobro do segundo colocado, as Lojas Americanas (R$ 44,3 bilhões).
Análises de bancos de investimento indicam que, ainda em 2024, o Mercado Livre ficará perto de controlar quase metade do segmento.
Os bons resultados, no entanto, têm um preço. Dez ex-funcionários dizem ao UOL que, em nome da agilidade na operação, trabalhadores são submetidos a "metas insanas" de produtividade nos galpões.
As condições de trabalho e a pressão pelo recebimento, armazenagem e despacho de produtos provocam prejuízos às saúdes física e mental dos funcionários, eles afirmam.
Levantamento feito em abril nos tribunais regionais do trabalho identificou 2.388 processos trabalhistas em andamento contra as empresas com CNPJs relacionados ao Mercado Livre.
A pesquisa foi feita pelo Sindpd-SP, o Sindicato dos Trabalhadores em Processamento de Dados e Tecnologia de São Paulo.
Os motivos do sucesso
Especialistas em varejo ouvidos pelo UOL destacam três fatores para explicar esse desempenho.
Além da velocidade da operação, eles apontam o senso de oportunidade histórica da empresa e a "infidelidade" do brasileiro nas compras online.
O forte investimento em publicidade também ajudou a tornar a marca onipresente no país. A empresa patrocinou a mais recente edição do BBB e pagou R$ 1 bilhão para nomear o estádio do Pacaembu, em São Paulo, por 30 anos.
Para atingir as metas, o Mercado Livre tem uma operação executada à risca nos dez centros de distribuição espalhados pelo Brasil.
É neles que os produtos full ficam estocados, prontos para serem despachados imediatamente após serem vendidos.
Produtos que não têm o selo full saem do depósito próprio do vendedor, e por isso demoram mais a chegar à casa do comprador.
Alguns galpões têm o tamanho de estádios de futebol. Lá, o produto passa por quatro etapas.
A entrega ao comprador é feita por motoristas terceirizados — de carro ou moto —, cadastrados em um aplicativo da empresa.
Desde 2022, sete aviões de carga da Gol fazem entregas do Mercado Livre pelo país. A empresa também utiliza rotas operadas pela Azul, que não são exclusivas da empresa.
Liderança isolada
Enquanto a empresa mantém a liderança isolada, concorrentes lidam com prejuízo e demissões.
O Banco BTG Pactual prevê que o Mercado Livre irá dominar 46,9% do comércio eletrônico do país em 2024 — Magalu deverá ficar com uma fatia de 16,7%, e Casas Bahia, 6,4%.
Para 2027, a previsão é de 50,5% para o Mercado Livre, 16,5% para Magalu e 5,3% para Casas Bahia.
Tantas vendas fizeram dos veículos amarelos com o logo do Mercado Livre parte da paisagem urbana nos 18 países onde atua. O Brasil, principal praça da empresa, responde por 53% das receitas.
No primeiro trimestre de 2024, a empresa vendeu 385 milhões de mercadorias nos 18 países onde opera, que resultaram em US$ 11,4 bilhões em vendas brutas — US$ 6 bilhões no Brasil.
O Mercado Livre também possui um banco, o Mercado Pago, que em 2023 faturou US$ 6,3 bilhões (cerca de R$ 32,13 bilhões), 32,6% a mais do que em 2022.
De janeiro a março, o banco processou 2,4 bilhões de pagamentos — 244 transações por segundo.
O contexto da abertura
O Mercado Livre está no Brasil desde 1999, ano em que foi criado por quatro argentinos que estudavam na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos.
No começo, era o site onde se anunciava o que não se queria mais — a pessoa comprava uma televisão nova e vendia a antiga no Mercado Livre.
Cinco anos após o Plano Real e num cenário de inflação controlada, o Brasil atraía a atenção de empresas "diante do potencial significativo de expansão do varejo", explica o professor Claudio Felisoni, coordenador do programa de estudos em varejo da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP.
Felisoni afirma que a implementação de políticas de distribuição de renda a partir de 2003 também contribuiu para a expansão do consumo.
Depois da fase das pessoas físicas, vieram os pequenos e médios comerciantes com CNPJ e, desde o começo desta década, as lojas oficiais de marcas e grandes varejistas.
A venda de produtos usados hoje "representa muito pouco" da operação, segundo o Mercado Livre.
Custo e benefício
Embora os consumidores dispostos a comprar sejam muitos, eles têm pouco dinheiro, afirma o professor Claudio Felisoni. "Não há dúvidas de que o Brasil é um país pobre", diz.
A combinação entre potencial de consumo e limitação de renda do consumidor faz com que "o preço e a velocidade das transações sejam extremamente importantes", explica.
Assim, leva vantagem quem oferece a melhor combinação entre preço, custo do transporte e prazo de entrega — caso do Mercado Livre.
"Há muita firula sobre a lealdade do consumidor, mas somos seres utilitaristas. Na compra, a relação entre custo e benefício é o que move a maioria", afirma Felisoni.
Jean Paul Rebetez, sócio-diretor da Gouvêa Consulting, diz que o Mercado Livre alia "agressividade à competência" e se beneficiou do pioneirismo entre as plataformas de compra e venda — é uma nativa digital, ou seja, não precisou migrar do espaço físico para o virtual.
"O crescimento é absurdo. Nunca vi isso, e com o varejo despencando", afirma.
'Metas insanas'
Vitor Imakufu, do Sindpd-SP, afirma que o Mercado Livre trabalha com "metas insanas".
Ex-empregados relatam vigilância constante dos supervisores, com monitoramento de idas ao banheiro e a bebedouro e, no caso de terceirizados, falsas esperanças de contratação.
Dizem passar horas seguidas em pé, em galpões com pouca ventilação, executando movimentos repetitivos e levantando caixas pesadas.
"Todos os colaboradores podem ir ao banheiro e se hidratar quando necessitarem", informou o Mercado Livre, que também negou promover falsas esperanças a terceirizados e estabelecer "metas insanas".
A empresa diz que os centros de distribuição seguem "as normas vigentes para calor em ambientes de trabalho, com ventiladores potentes, climatizadores e bebedouros", e que não tem registro de doença ocupacional em 2023.
Caso de suicídio
O Ministério Público do Trabalho abriu inquérito para investigar a empresa após o suicídio de um colaborador no centro de distribuição de Cajamar (SP), em fevereiro.
O jovem se matou após a demissão — ele era terceirizado.
O Mercado Livre informou ao UOL que o rapaz "foi atendido em menos de um minuto por bombeiros e médicos socorristas de plantão no local, garantindo o socorro imediato e a remoção para a ambulância, ainda com vida, em menos de seis minutos".
Matheus Alves, 24, trabalhava na equipe do jovem e foi desligado na sequência. Ele disse que sempre batia a meta (armazenar 2.000 produtos por dia).
As metas abusivas me davam ansiedade. Quando saí de lá, achei que nunca mais conseguiria trabalho. Se mesmo ultrapassando as metas eu não fui aprovado, o que mais poderia fazer? Matheus Alves ex-funcionário do Mercado Livre
Matheus trabalhou por oito meses na armazenagem de produtos, das 14h às 22h, na escala 6x1 (uma folga para cada seis dias trabalhados).
Em resposta, o Mercado Livre informou que "todas as operações garantem intervalo para descanso e alimentação".
'Correr mais'
Nicollas Gabriel, 20, trabalhou como terceirizado na armazenagem em Cajamar por seis meses, entre março e agosto de 2023, e hoje relata dificuldades para mexer três dedos das mãos.
Ele diz ter ouvido de um médico que os dedos estão atrofiados por movimento repetitivo — apertar o gatilho das máquinas que leem os códigos dos produtos.
"Se você falasse que já estava correndo, líderes diziam que dava para correr mais. Fui demitido por me recusar a subir escadas para colocar embalagens no alto."
Nicollas, que trabalhava das 14h às 22h, na escala 6x1, tinha meta de 2.000 produtos ao dia.
Um ex-funcionário que atuava como líder de equipe confirma que a empresa dava "falsas esperanças" de contratação aos colaboradores.
"A possibilidade de contratação era usada como argumento para convencer as pessoas a aceitar a proposta, porque o salário era padrão [um pouco acima do mínimo], e o horário, muito ruim."
R.E., 40, que pediu para não ser identificado e foi demitido em 2023.
Ao UOL o Mercado Livre citou uma pesquisa de clima feita em 2023 com colaboradores, segundo a qual "o percentual de engajamento das equipes de logística no Brasil é de 89% e o índice de orgulho em trabalhar na empresa é de 95%."
O Mercado Livre negou o pedido da reportagem para visitar algum centro de distribuição da empresa.
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