Em dias de frio, a Prefeitura de São Paulo distribui água, sopa, achocolatado e chá para a população em situação de rua.
Mas o preço dos produtos está inflado e há indícios de que o poder público favoreceu o fornecedor escolhido, um bufê cujos donos são ligados a um vereador da base do prefeito Ricardo Nunes (MDB).
O município paga R$ 4,11 em cada garrafa de água de meio litro. A mesma marca distribuída neste inverno é vendida a partir de R$ 0,77 em supermercados -- diferença que chega a mais de 400%.
A sopa pequena custa R$ 11,92. É mais cara do que a própria prefeitura paga em marmitas com o dobro do tamanho, no programa Cozinha Cidadã -- R$ 10.
O próprio fornecedor da sopa é uma das empresas contratadas para produzir a marmita.
No copo de achocolatado, a administração municipal paga R$ 4,32. No de chá, R$ 3,91.
As compras começaram em maio do ano passado. Até agora, foram adquiridos 3,4 milhões de itens, por R$ 20 milhões.
O fornecedor é o bufê Prime Alimentação e Eventos, de Interlagos, zona sul de São Paulo.
A empresa foi declarada vencedora de uma licitação em que quatro concorrentes com preços mais baixos foram desclassificados.
Os donos do estabelecimento são de uma família de apoiadores do vereador Rodrigo Goulart (PSD).
Em janeiro, Goulart assinou o pedido de abertura de uma CPI para investigar ONGs que prestam auxílio -- e fornecem comida gratuitamente -- para a população de rua no centro de São Paulo.
O padre Julio Lancellotti era um dos alvos. A CPI ficou em suspenso depois que parte dos vereadores retirou o apoio. Goulart o manteve.
A prefeitura afirma que não há irregularidades na contratação da Prime ou favorecimento para apoiadores de um aliado político.
De acordo com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, a empresa foi escolhida depois que outras quatro empresas "foram desclassificadas por não cumprirem integralmente as exigências quanto à documentação solicitada no edital de licitação".
Primeiramente, a secretaria não quis comentar a diferença entre os valores pagos pelo poder público e os oferecidos pelo varejo, como no caso da água mineral com 400% de disparidade entre os dois. Na noite de sexta-feira (16), depois da publicação da reportagem, a prefeitura enviou nova nota ao UOL contestando pontos da apuração. A manifestação pode ser lida aqui.
A empresa Prime Alimentação não respondeu às tentativas de contato nem respondeu aos questionamentos enviados pela reportagem.
O vereador Rodrigo Goulart diz que é amigo dos donos da Prime Alimentação, mas que não tem relação com a contratação da firma pelo poder público.
R$ 143 mil por dia
A distribuição de comida e bebida para a população de rua é o eixo principal da Operação Baixas Temperaturas.
São dez tendas espalhadas pela cidade. A maior delas fica na praça da República, no centro. Às 18h, começa a entrega dos alimentos.
A Prefeitura de São Paulo paga R$ 143 mil ao bufê Prime por dia de operação.
As sopas têm 350 mililitros. Como a embalagem é pequena, cada pessoa pode retirar mais de uma.
A maioria da população de rua atendida pegou duas unidades nos dias acompanhados pelo UOL.
Por isso, o número de beneficiados pelo programa é menor que a quantidade de sopa comprada.
O cardápio varia entre legumes com carne bovina e legumes com frango. As sopas vistas pela reportagem continham mais legumes e pouca proteína animal.
A porção é acompanhada de pão de cachorro-quente -- embora a prefeitura tenha solicitado pão francês, que é mais caro.
Não se compara com arroz e feijão. É uma sopa com batata e cenoura. Diz que tem carne, mas fico procurando e não acho. Só que essa sopa é uma certeza. Se vou comer algo mais essa noite, é uma esperança.
Bernardo, 27, em situação de rua, que frequenta a tenda de Santana há dois meses
O bufê Prime compra achocolatado ultraprocessado e serve em copos de 240 mililitros, em vez de preparar o chocolate quente.
O preço do litro da mesma marca distribuída nas tendas, em julho, é equivalente ao do copo pago pela prefeitura.
O chá também é servido em copos de 240 mililitros. Um dos sabores é camomila.
Um consumidor pode comprar no mercado, com o mesmo valor que a prefeitura paga em um único copo, uma quantidade de camomila suficiente para dez copos.
Além do custo das comidas e bebidas, o bufê tem custos de transporte dos produtos até as dez tendas da Operação Baixas Temperaturas.
O UOL apurou com prestadores de serviço do bufê que a despesa total com o frete é de menos de R$ 5.000 por dia.
Isso significa que a logística consome apenas 3% do montante pago pela gestão.
Elo com aliados de Nunes
A empresa Prime Alimentação e Eventos pertence aos irmãos Fabiano e Giuliano Ribeiro da Silva.
A família tem grande influência política na zona sul de São Paulo. É aliada antiga do vereador Rodrigo Goulart (PSD) e do pai dele, o ex-vereador e ex-deputado federal Antonio Goulart.
Quando o pai dos donos da Prime morreu, em 2019, Rodrigo Goulart fez um post para homenageá-lo nas redes sociais. O chamou de "tio" e postou uma foto dele com um avental escrito "vote Goulart".
O vereador destinou uma emenda no ano seguinte para revitalizar uma praça da zona sul, que foi rebatizada com o nome do "tio", João Batista Ribeiro da Silva, o João Padeiro.
Ao pé da placa, se lê "homenagem da família Goulart".
As nossas famílias realmente se confundem, é uma a família só, Ribeiro da Silva e Goulart
Antonio Goulart, em mensagem sobre a inauguração da praça para homenagear os pais dos donos da Prime, em 2020
Já no cargo de prefeito, Nunes nomeou um primo dos donos da Prime como chefe de gabinete de uma subprefeitura na zona sul, com salário de R$ 26 mil.
Julio Cesar Ribeiro da Silva Filho é afilhado do João Padeiro homenageado com o nome da praça e ex-assessor de Rodrigo Goulart na Câmara de Vereadores.
Concorrentes eliminados
O contrato com o bufê Prime foi assinado após uma licitação, por pregão eletrônico, para fornecer alimento para "a população em situação de rua durante a vigência do período de baixas temperaturas".
Há suspeitas de direcionamento para favorecer a empresa dos irmãos Ribeiro da Silva. Outras quatro empresas ofereceram preços melhores, mas foram eliminadas da disputa.
Uma delas pediu R$ 0,47 na garrafa de água; R$ 3,27 na sopa; R$ 1,76 no chocolate quente e R$ 0,98 no chá.
Outra concorrente com melhor preço entrou com recurso contra o resultado, dizendo que a Prime Alimentação e Eventos "foi extremamente beneficiada pela Pregoeira responsável".
A pregoeira, por exemplo, exigiu que a empresa tivesse sede em São Paulo, o que não constava no edital.
Confrontada, a pregoeira retrucou afirmando que os serviços precisariam ser iniciados dentro de quatro dias, o que também não constava no pregão — na verdade, só começaram 26 dias depois.
[A pregoeira usou] argumentos de extrema pressão e intimidatórios com a esperança que fossemos desistir do pregão. (...) [tentou] nos inabilitar a qualquer forma ou custo. (...) A quinta colocada ganhou o pregão com um valor superior de R$ 25 milhões. Gostaríamos de saber: onde está o respeito pelo princípio da economicidade? Onde está o respeito com o dinheiro público?
Pupo Cozinha Industrial, empresa desclassificada no pregão, em recurso contra o resultado
Na soma final, o preço da Prime era 340% maior que o do concorrente mais barato.
O contrato com a Prime Alimentação foi prorrogado por mais doze meses em maio deste ano.
Os preços -- que já estavam acima do mercado -- foram reajustados para cima, chegando aos valores cobrados hoje.
Obrigada a justificar o aumento, a prefeitura apresentou uma pesquisa de preços em que pinçou produtos mais caros.
No caso da água, alegou que o novo preço era mais barato do que farmácias cobravam do consumidor no varejo, em vez de comparar com preços de empresas do setor alimentício, especialmente do atacado, como supermercados e distribuidoras.
Já a sopa foi comparada com o preço que um consumidor paga em um site de marmita fitness.
O achocolatado, com o valor cobrado por uma cafeteria de Minas Gerais. E o copo de chá, com compras públicas de sachês que rendem mais de dois litros.
372 dias no ano
Apesar de se tratar de uma operação voltada para os dias frios, a prefeitura previu a compra de uma quantidade de comida e bebida suficiente para 372 dias do ano -- sete dias a mais do que os 365 dias do calendário.
A Prefeitura de São Paulo previa assinar um contrato com a Prime no valor de R$ 66 milhões.
Um mês depois do pregão, um técnico da prefeitura contestou os números e exigiu reformulação, porque a Operação Baixas Temperaturas não seria realizada o ano todo.
O preço do contrato precisou ser revisto para R$ 17 milhões. O ano de 2023, no entanto, teve poucos dias de frio, e a Prime foi menos acionada que o previsto. A empresa não ficou na mão.
A prefeitura usou o mesmo contrato para comprar bebida e comida para a Operação Altas Temperaturas, montada em dias de muito calor.
A população de rua recebe nas tendas espalhadas pela cidade água e chá — como no inverno — e uma fruta, que pode ser maçã ou laranja.
Elas foram lançadas nas notas fiscais da Prime com o nome e o preço do chocolate quente, já que o pregão não fez cotações para frutas.
O que dizem a Prefeitura, a empresa e o vereador
Procurada, a Secretaria de Direitos Humanos afirma que "a empresa F.G.R. Silva Buffet e Eventos Ltda., de nome fantasia Prime Alimentação e Eventos, foi a quinta classificada no processo licitatório, tendo ofertado um preço abaixo do valor de referência alcançado pela Administração e atendido todas as exigências do edital (proposta de preços, documentos de habilitação e planilha de composição de preços)".
Afirmou ainda que "as quatro primeiras colocadas foram desclassificadas por não cumprirem integralmente as exigências quanto à documentação solicitada no edital de licitação".
Sobre a comparação do preço da sopa pago à Prime ser mais caro que o da marmita comprada pela própria prefeitura para distribuir, a secretaria afirmou que o valor da última está "defasado".
"Instituído em caráter emergencial, em 2021, o Programa Cozinha Cidadã contratou pequenos restaurantes das comunidades periféricas de São Paulo para a produção de marmitas pelo valor de R$ 10, sem processo licitatório, em virtude da crise econômico-social causada pela pandemia do coronavírus."
"Passados mais de 3 anos, o valor encontra-se completamente defasado, o que motivou a realização de uma licitação (em curso), ajustada à atual realidade."
A Prime Alimentação não se manifestou. A reportagem procurou a empresa por telefone e foi orientada a encaminhar as perguntas por email.
A empresa, contudo, não respondeu a nenhum dos questionamentos enviados. Foi feita nova tentativa de contato por telefone, sem resultado.
O vereador Rodrigo Goulart (PSD) disse que tem "uma relação de amizade" com a família Ribeiro da Silva, "mas nenhuma relação com a empresa Prime".
Ele afirmou que não teve "nada a ver" com a contratação da empresa pela Prefeitura e "desconhecia a informação".
Sobre a CPI, o vereador disse que apenas apoiou a abertura do procedimento, e não foi autor da proposta. Portanto, disse, não faz sentido ligar a contratação da Prime à relação dele com a família dos donos da empresa e à abertura da CPI.
"Até porque eu não sabia que a Prime havia sido contratada", disse.
Colaborou Pedro Canário
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