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Já dá para comprar 'vida eterna' de parentes via IA; você compraria?

"Mãe, te peço do fundo do meu coração: viva por mim, por meus irmãos e por você."

Esse foi o último pedido que Jéssica Ramos, 42, ouviu do filho, em janeiro de 2024.

Vitor morreu em março de 2023. Mas ele não gravou o vídeo. A mensagem foi criada por IA (inteligência artificial), que copiou a voz, o rosto e os trejeitos dele.

O que parecia ficção virou tendência: pessoas estão tentando superar a dor da perda de entes queridos com "chats fantasmas".

Esse tipo de app, que é pago, faz simulações complexas de conversas baseado em características pessoais fornecidas pelos compradores.

O serviço é oferecido por startups — empresas inovadoras baseadas em tecnologia — que estão de olho no bilionário mercado da inteligência artificial.

Num futuro muito próximo, vamos precisar decidir: queremos interagir assim com nossos familiares? E vamos querer virar, nós mesmos, "avatares" digitais póstumos?

Psicólogos ouvidos pelo UOL alertam sobre o risco de ignorar o luto real. A lei brasileira ainda precisa definir melhor até onde vão os direitos sobre pessoas mortas.

O problema, que já existe em perfis de redes sociais, deve aumentar com os programas de IA. Enquanto a tecnologia avança, os vivos precisam se preparar para as implicações dessa "segunda vida".

Jéssica Sales Ramos (à esq.) com a irmã Gisele Sales Ramos de Assumpção veem vídeo feito com IA de Vitor, filho de Jessica, morto em 2021
Jéssica Sales Ramos (à esq.) com a irmã Gisele Sales Ramos de Assumpção veem vídeo feito com IA de Vitor, filho de Jessica, morto em 2021 Imagem: Keiny Andrade/UOL

'Tem mensagem para você'

"Depois de perder o Vitor, eu não conseguia fazer nada, nem limpar a casa nem cuidar dos irmãos dele", diz Jéssica, paulistana que trabalha como segurança em casas noturnas.

Gisele, sua irmã, teve uma ideia ao notar a moda de se "recriar" famosos por IA, de Elis Regina na TV a Marília Mendonça no TikTok.

Ela seguia um criador de vídeos desse tipo no Instagram e resolveu perguntar: dava para fazer o mesmo com o sobrinho?

"Ela me pediu um vídeo com mensagem de conforto. Reunimos todas as informações sobre ele e pedimos para a IA criar essa despedida", diz Bruno Sartori, dono da Sintetica AI.

"Quando ficou pronto, chamei minha irmã e falei: 'Senta aí que tem uma mensagem para você'. Ela começou a ver sem acreditar", narra Gisele.

"Foi muito especial aquele momento. O vídeo me fortaleceu a continuar. Respeito quem achar que é pesado, mas para mim valeu muito", diz Jéssica.

Gisele e Bruno dizem que o texto foi revisado por uma psicóloga, para que não piorasse a depressão da mãe em luto.

Bruno, que ainda não repetiu o serviço, diz ter feito o trabalho de graça.

Ele queria mostrar como o "deep fake", modelo de reprodução ultrarrealista de imagens, pode ser usado para o bem.

'Pai-robô'

Melissa e Jason Gowin posam com o filho de oito anos
Melissa e Jason Gowin posam com o filho de oito anos Imagem: Reprodução

Jason e Melissa Gowin tinham três filhos e problemas sérios de saúde. Ela teve um derrame, e ele, um tumor no estômago.

"A gente não sabia o que ia acontecer conosco e como nossos filhos ficariam", diz Jason, ator e roteirista da Pensilvânia, nos Estados Unidos.

Até que ele encontrou um site chamado You, Only Virtual (em português, "Você, Só que Virtual").

"Contei nossa história e pedi para ser usuário de teste."

O site pediu "textos de mensagens, vídeos, áudios, tudo para colocar no algoritmo".

Assim foram criadas as versões virtuais do casal, cada uma delas chamada de "versonas".

O resultado é uma tela de chat em que os filhos podem conversar com as "versonas" de Jason e Melissa.

As respostas chegam em texto e em áudio, na voz dos pais.

"Se o pior acontecer, quero que eles tenham esta opção", diz Jason. A saúde do casal melhorou, mas eles ainda treinam os filhos no chat.

"Minha 'versona' faz piadas rápidas como eu. Meu filho de oito anos conversa com ela como se fosse um super-herói. Ele chama de 'pai-robô'. Acha a coisa mais legal do mundo."

Justin Harisson, criador do You, Only Virtual
Justin Harisson, criador do You, Only Virtual Imagem: Reprodução

A corrida dos chats com mortos

O You, Only Virtual foi criado em 2021 por Justin Harisson, empresário da Califórnia.

Ele cobra US$ 399 (R$ 2.200) para criar uma "versona". O serviço funciona em inglês.

Justin diz que o site já tem mais de mil usuários. Metade dos clientes cria suas próprias versões para a posteridade. O restante busca reproduzir parentes que já morreram.

O empresário não diz quanto investiu, mas afirma que "daria para comprar uma casa" — em cálculos feitos pela reportagem, algo em torno de US$ 1 milhão.

"Ainda é um negócio em busca de investidores."

O mercado de IA já vale US$ 137 bilhões no mundo, segundo estudo da Bloomberg Intelligence publicado em 2023. O relatório prevê que o valor chegue a US$ 1,3 trilhão em 2032.

Mas há uma ansiedade pelos retornos dos investimentos.

No primeiro semestre de 2024, este retorno decepcionou investidores. Isso levou o índice da Nasdaq, dominado por estas empresas, a cair 11% entre o início de julho e de agosto.

A corrida das startups de "chatbots fantasmas" é uma das frentes para impulsionar a colheita de lucros deste mercado.

Há outras startups dos EUA, como Storyfile, HereAfter e Project December, todas com a promessa de eternizar pessoas em IA.

Um concorrente é o Seance.AI. O projeto também é norte-americano, mas tem brasileiros na equipe.

O criador é Jean Mayer, engenheiro de software de Florianópolis. Ele diz que usou o ChatGPT, ferramenta de IA mais popular do mundo, como base para o site.

"O usuário descreve como era a pessoa falecida. O sistema manda isso ao ChatGPT e pede para que ele assuma aquela personalidade na conversa."

Nesta versão, apenas em chat de texto, o uso é gratuito e o resultado é menos personalizado que o do You, Only Virtual.

A versão paga do Seance.AI, de US$ 10 (R$ 55), dá respostas em áudio. São 3.000 usuários das duas versões somadas, diz Jean.

Agora, o brasileiro trabalha com protótipos de respostas em vídeo.

O objetivo de Justin com o You, Only Virtual é permitir conversas em tempo real, como se fossem ligações telefônicas, a partir de 2025.

Jéssica Sales Ramos vê vídeo feito com IA do filho Vitor, morto em 2021
Jéssica Sales Ramos vê vídeo feito com IA do filho Vitor, morto em 2021 Imagem: Keiny Andrade/UOL

O risco de se negar a perda

O impacto psicológico destes chatbots pode ir de "benéfico'' a "desastroso", avalia o psicanalista Christian Dunker.

"Em casos em que faltou uma despedida ou reconciliação, pode ter extrema utilidade", ele explica.

"Por outro lado, esse uso pode fazer a pessoa negar a perda, que é irreversível, e ficar se enganando. O luto vai se estender, se tornar infinito."

Dunker prevê um período de experimentação e ressalta a importância de haver um mediador, "alguém que acompanhe o momento da pessoa e a função da IA nisso".

Jason diz que explica ao filho que o "pai-robô" não é ele. E o próprio chat dá esse alerta.

"Se ele diz coisas como 'eu te amo', a 'versona' avisa que é apenas uma versão virtual de mim, coloca um freio na relação."

Gisele Sales Ramos de Assumpção, sentada, com Jéssica Sales Ramos, de pé, com imagens de Vitor, filho de Jessica, morto em 2021
Gisele Sales Ramos de Assumpção, sentada, com Jéssica Sales Ramos, de pé, com imagens de Vitor, filho de Jessica, morto em 2021 Imagem: Keiny Andrade/UOL

'Herança digital' indefinida

A lei brasileira não deixa claro quem tem direito de acessar registros de pessoas que já morreram.

No caso de famosos, a solução é mais fácil, pois o material póstumo é considerado um bem, dividido entre herdeiros.

Mas, para a maioria, o valor é apenas sentimental. A Justiça se divide entre o direito à herança da pessoa viva e o direito à privacidade de quem se foi.

"Cada juiz tem interpretado do seu ponto de vista, já que não temos uma lei ou decisão em alta instância", diz o advogado Marcos Ehrhardt Jr.

O problema já foi sentido por quem briga na Justiça para acessar redes e celulares de parentes falecidos.

As plataformas só abrem acesso com ordem judicial — a não ser que a pessoa tenha autorizado o acesso em vida.

"O pedido é quase uma loteria, depende do juiz", diz Laís Lopes, advogada que representou uma mãe de Barueri (SP) que processou a Apple para acessar o celular da filha de 24 anos, que morreu de covid-19 nos EUA.

Na primeira instância não houve autorização, sob a justificativa de que violaria a privacidade da filha.

Na segunda, com o mesmo argumento, reverteram e disseram que a mãe tinha direito.

Se antes já era necessária uma norma sobre acervos digitais, agora a regra é urgente para tratar da IA, que pode criar conteúdos novos e infinitos.

Se a IA for alimentada por todo o histórico de conversa em vida de uma pessoa no WhatsApp, por exemplo, o "chatbot póstumo" pode ficar muito mais personalizado.

Outro exemplo: acesso a todos os vídeos e fotos do familiar no Google Fotos ou outro serviço de nuvem pode criar vídeos cada vez mais realistas.

O direito dos herdeiros a este acesso hoje é indefinido.

O projeto de reforma do Código Civil, em análise no Senado, trata sobre essa herança.

"Estamos sempre atrasados. Já era para estarmos discutindo o 'neurodireito', o uso disso por robôs", diz Ana Carolina Brochado, autora do livro "Herança digital".

'Não me faça de robô'

Se a regra póstuma é duvidosa, o jeito é deixar o desejo claro em vida.

Nos EUA, advogados já recomendam registro em testamento caso a pessoa não queira ser recriada em IA.

Já deram até apelido à cláusula: "do not bot me" (não me faça de robô).

No Brasil, a empresária Camila Leães criou o site Quando Eu Partir. É um sistema para organizar os últimos desejos que não sejam sobre bens materiais do testamento.

Ela diz que as duas áreas mais preenchidas pelos 6.000 usuários são a sobre quem vai ficar com os pets e a da herança digital nas redes.

Imagem de divulgação do site Quando Eu Partir
Imagem de divulgação do site Quando Eu Partir Imagem: Reprodução

52% dos usuários pedem que os perfis virem páginas "in memorian", indicando a morte, mas mantendo a lembrança de relações e legado.

Um terço deseja perfis totalmente excluídos, com rastros e histórico deletados. 16% querem que as contas sigam ativas normalmente, sem intervenção da família.

Enquanto as pessoas começam a discutir se querem ou não "virar robôs", a IA avança.

Gisele não pensa, por enquanto, em pedir mais mensagens póstumas do sobrinho. Mas também não apagou a pasta com o material que alimentou o primeiro vídeo.

"O Bruno me falou: 'Guarda com carinho. Essas tecnologias estão evoluindo dia a dia.'"

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