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Maior seca registrada no Brasil faz milhões respirarem a crise climática

Mais de 2.700 quilômetros separam o rio Madeira, no Amazonas, do rio Taquari, no Rio Grande do Sul. Não havia nada semelhante na paisagem em torno dos dois rios.

Até setembro.

Desde o início do mês, o horizonte ficou enevoado. O sol, vermelho. O Brasil se uniu em torno da fumaça.

O cenário é resultado da maior seca registrada no país e dos maiores incêndios em mais de uma década, acentuados pelo aquecimento global.

Milhões de brasileiros, em 60% do país, passaram a respirar as mudanças climáticas.

Névoa das queimadas toma conta de cidades brasileiras
Névoa das queimadas toma conta de cidades brasileiras Imagem: Folhapress e agências

A crise, que começou na região Norte, caminhou para o sul, juntando a fumaça da Amazônia à queima do Cerrado, do Pantanal e da Mata Atlântica.

Essa é uma novidade da crise atual: os biomas estão pegando fogo, muito acima da média, ao mesmo tempo, algo inédito desde o início das medições.

A grande nuvem das queimadas chegou ao sul do Brasil em setembro. No vale do rio Taquari, finalmente choveu.

Mas a água caiu preta, suja pela fuligem carregada por milhares de quilômetros.

No caminho, a nuvem escura encobriu toda a cidade de São Paulo, já acostumada à poluição urbana. A fuligem deixou a garganta dos moradores seca e os móveis sujos.

No Rio, até praias ficaram esfumaçadas.

Em Brasília, o presidente da República, ministros, senadores, deputados e magistrados também respiraram o ar das queimadas, principalmente do Parque Nacional.

As chamas atravessaram um rio, cruzaram por debaixo da terra e varreram 2.000 hectares - vinte vezes a área da Esplanada dos Ministérios até a Praça dos Três Poderes.

Os prédios do Congresso Nacional ficaram encobertos.

A névoa escura que tomou conta do Planalto chegou a outras cidades do Distrito Federal.

Adriana Alves, moradora de Taguatinga (DF), teve crise de sinusite por causa da fumaça.

Em seu bar e tabacaria, ela diz que "chegou ao ponto de o vento levar fuligem para o copo do cliente".

"Todo ano tem fogo, mas esse ano foi muito pior. Nunca tinha visto isto: acordar e ver fumaça na cidade. No dia seguinte, mais fumaça. Eu escuto o barulho do fogo. É terrível".

Sandra de Oliveira, também de Taguatinga, ficou com rinite. "Até o sol ficou com cor estranha. O fogo chegou muito perto".

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Imagem: Arte/UOL

Foco dos incêndios em SP

Em São Carlos, que tem o maior número de focos de incêndio em SP, alunos de uma escola municipal tiveram de ser evacuados às pressas. Uma mata próxima pegava fogo.

A escola foi salva pelos bombeiros, mas o prédio ficou cheio de fuligem.

Pais de alunos relataram que os filhos não voltaram de imediato devido a dificuldades respiratórias.

"Ela (filha) ficou doente uns dias, porque tem sinusite e atacou, né? Aí ficou sem ir para escola por uma semana", diz o operador de manufatura Rafael Pereira de Araújo.

"As crianças vieram até a escola, ficaram debaixo da sombra e logo foram embora. É perigoso lidar com criança no meio de fumaça", conta Antônio Souza de Oliveira, 80, vizinho da escola.

Oliveira tem 80 anos. Sentiu falta de ar nos primeiros dias após o incêndio

Edmundo Vieira do Vale, 73, foi internado três vezes com problemas respiratórios desde o início das queimadas.

Quem não vai ao hospital tenta escapar da necessidade de um. É o caso da autônoma Rafaela Costa, mãe de duas filhas pequenas.

"Tive que levar minhas filhas para minha mãe porque, mesmo fechando a porta, vinha fumaça e fuligem. A garagem e o quintal ficaram pretos. Tem que lavar tudo, e mesmo assim a poeira fica", afirmou.

Agricultores na região contabilizam prejuízo de R$ 2 milhões por causa das queimadas.

"A natureza está reclamando. Teremos dificuldade para respirar, para nos alimentar. Foram muitos alqueires devastados só nesta região.", afirma Vera Campos, uma das representantes da fazenda Santa Maria do Monjolinho.

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Imagem: Arte/UOL

Rios de fogo

A seca recorde fez o rio Madeira, um dos maiores do Brasil, ficar com menos de 50 centímetros de profundidade na altura de Porto Velho (RO).

Ele podia ser atravessado a pé, com água na altura dos joelhos. O normal para esta época do ano são 3,5 metros.

Os caminhos feitos de barco são hoje percorridos a pé por ribeirinhos que precisam achar água para abastecer suas casas.

O cenário se repete em dezenas de rios amazônicos.

A floresta está queimando ao redor deles desde janeiro. Os incêndios na região costumam ganhar força no segundo semestre, mas este ano começaram meses antes.

A situação se agravou em agosto. Sem chuva, a fumaça da queima na Amazônia não conseguiu se dissipar e começou a migrar para o resto do país.

As nuvens percorreram um corredor atmosférico que antes levava chuva do Norte para as regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul.

Os cientistas chamam o fenômeno de "rios voadores" — agora rebatizado de "rio de fogo".

"É uma seca que nunca tínhamos vivido", diz Ruth Ozenir, que vive na Reserva do Mamirauá, no coração do Amazonas. Ex-pescadora, ela montou uma pousada ecológica na região.

Vegetação de área de cerrado em chamas
Vegetação de área de cerrado em chamas Imagem: Jacqueline Lisboa/Agências

A Reserva do Mamirauá está em desequilíbrio climático desde o ano passado. No segundo semestre de 2023, enfrentou uma seca severa, que aumentou a temperatura das águas e provocou a morte em massa de botos.

No primeiro semestre de 2024, mal a seca tinha começado a diminuir, a situação voltou a ficar crítica.

Os episódios seguidos de seca são um reflexo das mudanças climáticas.

Um estudo internacional com participação do Inpe concluiu que a alteração no clima, especialmente o aumento das temperaturas médias, fez com que eventos extremos como esses se tornassem mais prováveis na Amazônia.

A seca, que reduziu o nível dos rios e prejudicou plantios, contribuiu para que a Amazônia pegasse fogo.

Este ano, 62 mil quilômetros quadrados já queimaram, equivalente a cerca de quarenta cidades de São Paulo. É a maior área destruída pelo fogo desde 2005.

Fogo no Pantanal

O fogo chegou ao Pantanal dois meses mais cedo este ano, em junho. Os focos se alastram tradicionalmente em agosto.

Isso nunca havia ocorrido desde o início das medições de queimadas. Até agosto, 16 mil quilômetros quadrados de Pantanal viraram cinzas.

"A gente tem que pensar como o fogo", diz Alexandre Fernandes Anchieta, bombeiro do Maranhão que está atuando junto com a Força Nacional no Pantanal, Mato Grosso do Sul.

Se o fogo é muito extenso, apagá-lo é muito difícil. "Pensar como o fogo" é tentar prever qual é o próximo ponto para onde as chamas irão.

Uma estratégia é remover parte da vegetação para que, quando o incêndio chegar, não consiga avançar além daquele limite.

Os animais estão desesperados e não sabem para onde fugir.

"Os jacarés estão cercados de fogo. As onças são bem inteligentes, conseguem sair da área do incêndio, mas sofrem de fome porque vários outros animais morrem no fogo."

O maior território indígena do Pantanal, Kadiwéu, perdeu um terço da sua área para os incêndios deste ano. A área queimada é maior que a cidade de São Paulo.

Em 21 de agosto, um dos focos de incêndio ameaçou engolir uma das seis aldeias, a Barro Preto, que tem cerca de 60 moradores.

"Quando o fogo chegou perto da aldeia, foi aquela correria e desespero. Eu fui batendo nas portas, casa por casa, para avisar as pessoas para saírem", diz Silvana Derriune.

"Muitos choravam, mas eu dizia para terem fé, não era hora de chorar".

A aldeia foi cercada pelo fogo no final da manhã.

Um brigadista levou idosos e crianças para outra aldeia. Já os adultos ficaram para lutar contra as chamas. O fogo só foi contido no final da tarde.

"Ainda estamos contando as perdas, mas já vimos que morreu muita árvore importante para o nosso sustento e muitos animais", diz Silvana.

A mãe de Silvana, de 73 anos, ficou uma semana de cama, com falta de ar, por causa da fumaça que respirou enquanto era retirada da aldeia em chamas.

Solo quente no Cerrado

O fogo também chegou no Cerrado mais cedo este ano.

A partir de maio, começou a se alastrar em larga escala. Foi o pior maio dos anos já medidos. Este é o terceiro ano de seca severa no bioma, o que contribuiu para os incêndios.

"Estamos acostumados a receber o calor de cima, mas o de baixo a gente não esperava. A terra ficou tão quente que começou a cozinhar as sementes e as mudas", conta Robemário Ribeiro de Souza, que produz orgânicos em um assentamento em Planaltina (DF).

Não bastasse a seca, um incêndio em 21 de agosto consumiu a agrofloresta da família de Robemário, com cerca de 2.400 árvores frutíferas.

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Imagem: Jacqueline Lisboa/Agências

"Não sabemos como o fogo começou. Ficamos ilhados em casa. O fogo estava muito alto. Só apagou depois de duas horas, quando não havia mais o que queimar."

107 mil quilômetros quadrados de Cerrado pegaram fogo até agosto.

É a maior área desde 2012. Naquele ano, porém, a crise foi concentrada no bioma. Não houve crise simultânea na Amazônia e nem no Pantanal, como agora.

Em Santa Cruz de Minas (MG), não chove há mais de cem dias. Cachoeiras secaram, algo inédito para moradores. O número de queimadas também é o maior desde 2007.

"Os incêndios estão por todos os lados, em Minas Gerais toda. O céu está embaçado há semanas", fala Ana Paula Sena, condutora de trilhas na região.

A Mata Atlântica também está em chamas. A extensão destruída este ano é a maior já medida. São 29 mil quilômetros quadrados.

Chuva preta no Sul

As cinzas dos incêndios na Amazônia, no Pantanal, no Cerrado e na Mata Atlântica foram parar no Rio Grande do Sul.

"Quando cheguei em casa para almoçar, percebi algo estranho: a água da chuva, que a gente costuma coletar para regar plantas, estava preta e tinha um cheiro de cinza molhada. Foi apavorante", conta Eloisa Cervi, servidora pública e moradora de Boqueirão do Leão.

Era a chuva preta. A fuligem das queimadas fica suspensa no ar e depois cai junto com as gotas da chuva. Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná presenciaram o fenômeno.

Boqueirão do Leão faz divisa com o Vale do Taquari. A região foi uma das mais afetadas pelas cheias que mataram pelo menos 183 pessoas e afetaram outras duas milhões entre abril e maio.

"A gente já está em um momento de grande vulnerabilidade ambiental", avalia a bióloga Patrícia Aguiar, presidente do Conselho de Defesa do Meio Ambiente na cidade de Arroio do Meio, no Vale do Taquari.

"Ouvi pessoas surpresas: como o efeito de um incêndio tão distante pode chegar aqui? Isso só mostra a conexão direta entre biomas. Não é porque acontece longe que não irá nos atingir."

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