Giuseppe Calvaruso, um dos chefes da organização criminosa italiana Cosa Nostra que atuava no Brasil, comprou a paternidade de um bebê nascido no Rio Grande do Norte para evitar uma possível extradição para a Itália.
A informação é confirmada por uma série de mensagens às quais o UOL teve acesso.
"Semana que vem ou ainda esta semana, nasce a criança que eu vou registrar em meu nome. Então eles [autoridades brasileiras] me dão permissão permanente", disse o mafioso em uma das mensagens enviadas a um comparsa na Sicília.
A mensagem foi enviada em junho de 2020, quando a criança estava prestes a nascer. O mafioso vivia escondido em Natal, onde comandava um esquema de lavagem de dinheiro da Cosa Nostra.
Calvaruso adulterou documentos para registrar o bebê como pai biológico e pagava uma mesada de R$ 750 mensais à mãe, uma mulher brasileira.
O plano do mafioso era obter a cidadania brasileira e escapar da prisão em seu país.
"Para os brasileiros não há extradição. Eu sou louco, eu sei."
O Ministério Público Federal e a Guarda de Finanças de Palermo, órgão do Ministério Público italiano, investigam a atuação da Cosa Nostra no Brasil.
Calvaruso conversava por WhatsApp com Giovanni Caruso, apontado pelos procuradores italianos como seu braço-direito em Palermo, cidade-sede da Cosa Nostra, mais antiga máfia do mundo.
"Dentro de dois anos, [consigo] a cidadania. Mas o problema é que eu não posso pedir antes, senão eles são obrigados a pedir informação [sobre ele] na Itália."
Na mesma conversa, Calvaruso pediu que o comparsa enviasse dinheiro para subornar funcionários de cartórios e outros envolvidos no esquema, aponta a investigação.
"Até segunda-feira você tem que me enviar 3000 euros para os papéis", afirma Calvaruso.
Caruso transferia parte do dinheiro para o Brasil por recargas de cartões de débito pré-pagos.
Bebê não era garantia contra extradição
O MPF apura quem no Brasil ajudou Calvaruso a fraudar a documentação para assumir a paternidade do bebê brasileiro.
Mas o mafioso estava enganado sobre a estratégia de assumir paternidade para evitar extradição.
Segundo a lei brasileira, um brasileiro nascido em território nacional não pode ser extraditado para outro país.
Para estrangeiros que adotam a cidadania brasileira, a regra é diferente.
"Se o estrangeiro que se tornou brasileiro naturalizado cometeu os crimes antes do processo de naturalização, a extradição é possível", explica Ricardo Macau, especialista em direito internacional.
Macau afirma ainda que casos de extradição têm suas particularidades, que são analisadas pelo Supremo Tribunal Federal.
Calvaruso nem chegou a passar pelo processo de extradição: ele foi preso ao chegar ao aeroporto de Palermo, no feriado da Páscoa de 2021, quando visitava parentes.
'Nós vamos ganhar o dobro'
Diálogos mantidos por Calvaruso revelam também detalhes do esquema de lavagem de dinheiro da máfia italiana no Brasil.
As mensagens foram descobertas depois da análise do celular encontrado com Calvaruso, no momento de sua prisão.
Procuradores brasileiros e italianos afirmam que a Cosa Nostra movimentou cerca de R$ 300 milhões no Brasil, em um esquema encabeçado por Calvaruso.
As autoridades afirmam que os crimes envolviam grilagem de terras, falsificação de documentos em cartórios, compras de imóveis e aberturas de empresas de fachada.
Nos diálogos entre Calvaruso e seu comparsa Giovanni Caruso havia constantes pedidos de dinheiro, que deveria ser obtido com mafiosos da Cosa Nostra em Palermo.
"[você] Vai falar urgentemente com meu irmão e fazer a proposta de investir 30 mil euros e garantirmos que daqui até dezembro devolveremos 150 mil euros, o que para eles é muito dinheiro, mas para nós são migalhas, pois nós vamos ganhar o dobro."
Calvaruso se referia à compra de um terreno de 65 hectares na cidade de Extremoz (RN).
O objetivo era criar um grande empreendimento imobiliário no local, cuja perspectiva de lucro era de R$ 15 milhões.
"A área é vendida, como eu já tinha dito a vocês, por 8 milhões de reais, nua e crua. Garanto que com 30 mil euros temos a possibilidade de dividi-lo, com o projeto aprovado, e obter o dobro, que é 15 milhões de reais."
Segundo o MPF, os 30 mil euros seriam para subornar funcionários da prefeitura e de cartórios envolvidos na liberação dos documentos para registro da terra e autorização de construção.
Calvaruso revela nas conversas a importância que o esquema brasileiro tinha para a Cosa Nostra.
"Concluo que só tenho que segurar [o esquema] por anos, que sempre salvo tudo e todos... mas se [o esquema] não se resolve como eu digo, também não volto de mãos vazias."
Chefe do clã Pagliarelli
Calvaruso chefiava o clã Pagliarelli, que atuava na região sudeste de Palermo, gerindo diretamente o caixa da organização criminosa.
Sua ascensão ao posto aconteceu em dezembro de 2018 e se deu após uma série de prisões de mafiosos, entre eles Settimo Mineo, o chefe anterior.
"Calvaruso é uma das figuras mais importantes e controversas da Cosa Nostra, em nome da qual desempenha um papel muito preciso e delicado", afirmam procuradores da Guarda de Finanças de Palermo, em documento enviado à PGR (Procuradoria-Geral da República) brasileira.
No passado, Calvaruso ficou preso durante dez anos, em duas ocasiões. Entre 2002 e 2006 e entre 2008 e 2014, pelos crimes de tráfico de drogas e associação criminosa.
Os procuradores italianos descrevem Calvaruso como um sujeito carismático e de capacidade empreendedora.
Ele tem relação direta com um dos maiores assassinos da máfia, Giovanni Motisi (fugitivo desde 1998) e Giuseppe Salvatore Riina, filho do lendário Totò Riina.
Totò, o "capo dos capos", foi o mais poderoso chefe mafioso da história e morreu aos 87 anos em um hospital penitenciário de Palermo. Ele foi responsável pelo assassinato de mais 150 pessoas, segundo a Justiça italiana.
Calvaruso já havia viajado várias vezes ao Brasil. A partir de 2019, fixou residência no Rio Grande do Norte.
Ele supervisionava diretamente o esquema montado por ele e seus operadores italianos e laranjas brasileiros.
Apesar da prisão do "capo", o esquema da Cosa Nostra no Brasil perdurou até agosto deste ano, quando foi deflagrada a Operação Arancia (laranja em italiano).
A ação foi realizada em conjunto por autoridades brasileiras e italianas e já prendeu cinco pessoas.
A pizzaria da máfia
Pelo menos seis empresas nas áreas de construção, venda de imóveis e com atuação no mercado financeiro foram criadas pelos operadores italianos de Calvaruso, especialmente Pietro Ladogana e Giuseppe Bruno.
Ladogana era um antigo parceiro de Calvaruso, que vivia no Brasil há muito tempo. O esquema de falsificação de registros de imóveis começou com ele, em 2009, diz o MPF.
Ladogana conseguiu convencer investidores italianos não ligados à máfia a fazer parte do negócio.
Em 2014, ele mandou matar um representante italiano que desconfiava que seus clientes estavam sendo roubados, segundo o Ministério Público do Rio Grande do Norte.
Ladogana foi condenado pela Justiça brasileira a 14 anos de prisão e cumpre pena atualmente no presídio de Alcaçuz. Ele nega o crime e a ligação com a Cosa Nostra.
Calvaruso trouxe para seu lugar Giuseppe Bruno, cujo pai era um empresário italiano associado à máfia, afirmam procuradores de Palermo.
Calvaruso e Bruno montaram uma pizzaria, que funcionou na praia de Ponta Negra, a mais conhecida de Natal. O capital era de R$ 487 mil.
Conversas de WhatsApp entre Bruno e Calvaruso mostram que a pizzaria não era apenas um negócio de fachada. Os mafiosos visavam ao lucro.
Em 10 de janeiro de 2021, Bruno enviou um relatório de despesas para Calvaruso, que respondeu:
"100 pizzas por dia por uma média de R$ 50 são R$ 5.000 por dia, o que durante 30 dias são R$ 150 mil. Em 2 meses [o negócio] já deu frutos."
Investigadores italianos afirmam que Calvaruso perguntava aos parentes que o visitavam na prisão de Palermo como andava o negócio da pizzaria de Natal.
A pizzaria chegou a funcionar, mas agora está fechada.
Calvaruso, Ladogana e Bruno foram denunciados pelo MPF no âmbito da Operação Arancia junto a seis brasileiros, acusados de participação no esquema de lavagem de dinheiro no Brasil.
As investigações da Arancia continuam aqui e na Itália.
Calvaruso cumpre pena de 16 anos e três meses por associação criminosa ao chefiar o clã Pagliarelli.