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Ex-império da saúde privada, Golden Cross agoniza sob risco de desaparecer

Pioneira na implantação do sistema de medicina privada no Brasil nos anos 1970, a Golden Cross já foi o maior plano de saúde do país.

Por duas décadas, a carteirinha da empresa foi a garantia de acesso aos melhores hospitais.

Do apogeu, quando contratava alguns dos espaços mais caros da publicidade brasileira para se promover, praticamente só resta o nome.

Desde o ano passado, um acordo transferiu os atendimentos da Golden Cross para a Amil, em troca de 95% das receitas dos planos.

Atolada em dívidas principalmente com o fisco e acumulando prejuízos ano após ano, a empresa tomou o golpe de misericórdia em 24 de janeiro.

Nesse dia, a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) deu 30 dias para a Vision Med —razão social do CNPJ sob o qual a Golden Cross opera— vender a carteira de clientes em razão de sua "incapacidade de regularizar as anormalidades econômico-financeiras detectadas".

A decisão pode atingir cerca de 215 mil clientes dos planos de saúde e 100 mil usuários do plano odontológico.

Se não houver uma decisão judicial que anule o ato da ANS ou o surgimento de uma empresa que tope incorporar a carteira e as obrigações da Golden Cross, a empresa deve ser liquidada, e os segurados poderão usar a portabilidade para migrar para outros planos.

Levam a inexigibilidade de carência, mas provavelmente vão enfrentar altas nos valores pagos.

Procurada pelo UOL, a Golden Cross disse que tem um plano para sair da crise e que não concorda com a decisão da ANS.

A empresa afirma que já buscou reverter a decisão da ANS por meio de um recurso administrativo e ainda avalia ir à justiça.

"A operadora informa que não concorda com a decisão do órgão regulador e que já ingressou com recurso administrativo perante a Diretoria Colegiada, e segue avaliando a adoção das medidas judiciais cabíveis", disse a empresa, em nota.

"Informa também que o planejamento de adequação econômico e financeiro vem em andamento e com sucesso. Os atendimentos aos seus milhares de beneficiários seguem sendo a prioridade da administração da operadora."

Piquet e ciranda financeira

A Golden Cross foi criada em 1971, no Rio, pelo advogado Milton Soldani Afonso, que, aos 103 anos, continua como principal sócio. Com idade avançada, o fundador vive acamado em sua casa, no Rio, conforme o UOL apurou.

Antiga sede da Golden Cross na Barra da Tijuca, no Rio, antes de ser desocupada
Antiga sede da Golden Cross na Barra da Tijuca, no Rio, antes de ser desocupada Imagem: Divulgação

A empresa viveu seu apogeu entre 1980 e 1995, quando contabilizou 2,5 milhões de clientes e receitas anuais de R$ 1,7 bilhão (valores sem correção).

Atualmente, a Golden Cross acumula prejuízos operacionais de pelo menos R$ 400 milhões desde 2023.

Em paralelo, trava uma disputa judicial de mais de R$ 7 bilhões em impostos atrasados, que a Receita Federal tenta cobrar da firma e de entidades ligadas a Soldani.

Nos anos 1980, quando operava praticamente sem concorrência no país, a Golden Cross tinha como garoto-propaganda o tricampeão mundial de Fórmula 1 Nelson Piquet e era um dos principais parceiros comerciais da TV Globo nas transmissões da modalidade.

Em 1995, quando o Hotel Nacional, no Rio, fechou por problemas financeiros, a Golden Cross anunciou a intenção de comprar o icônico arranha-céu projetado por Oscar Niemeyer, no exclusivo bairro de São Conrado, para transformá-lo em hospital. O negócio não saiu.

Como outras empresas de intermediação de serviços, a opulência da Golden Cross foi em parte produzida pela inflação alta dos governos Sarney, Collor e Itamar.

Segundo fontes ouvidas pelo UOL, uma parte da mágica era simples:

  • as mensalidades dos planos eram pagas à vista;
  • o dinheiro ficava rendendo em aplicações financeiras;
  • após um prazo de 30 a 90 dias, os valores eram repassados a médicos e hospitais credenciados.
Milton Soldani Afonso, criador da Golden Cross
Milton Soldani Afonso, criador da Golden Cross Imagem: Reprodução

Venda por US$ 1

A ruína veio depois do Plano Real, lançado em julho de 1994.

Além do fim da ciranda inflacionária que turbinava os balanços, Receita e MP encontraram indícios de que a Golden Cross foi beneficiada irregularmente por uma isenção tributária graças ao uso de uma entidade filantrópica com certificado de utilidade pública.

Foi o início de uma série de acusações e processos judiciais.

Em 1997, a empresa começou a atrasar pagamentos com prestadores de serviços e as dívidas aumentaram.

Sem saída, Soldani entregou o controle da Golden Cross ao grupo Excel, o mesmo que havia assumido no ano anterior o Banco Econômico, do banqueiro Angelo Calmon de Sá.

Num setor que passou a operar sob regulação pela primeira vez e em meio ao florescimento da concorrência, o Excel Econômico conseguiu vender o negócio dos planos de saúde para a Cygna, uma firma americana de planos de saúde.

Os americanos também arregaram: sem nunca ter conseguido fazer a Golden Cross lucrar como o planejado, a Cygna saiu do Brasil e entregou a empresa, com seus clientes e pepinos judiciais, de volta a Milton Soldani.

O criador pagou um dólar para receber de volta a criatura em 2000.

'Pagamentos ínfimos'

O UOL consultou processos judiciais nos quais a Golden Cross e a Fazenda Nacional travam litígios que se estendem por décadas.

Num emaranhado de ações, recursos e liminares, a Vision Med, razão social da Golden Cross, e o Instituto Semear, uma entidade filantrópica controlada por Milton Soldani, obtiveram decisões favoráveis que permitiram excluir do cadastro da dívida pública mais de R$ 7 bilhões em débitos inscritos desde 2021.

A história começa com um Refis em 2000 em nome da AIS/Instituto Semear. Isso foi possível porque a entidade comprovou ao fisco que tinha receita própria com locação de imóveis e capacidade para pagar os débitos.

Em 2015, a Receita Federal chegou à conclusão de que a dívida nunca seria paga se as parcelas fossem de R$ 20 mil, consideradas ínfimas em face ao débito próximo de R$ 1 bilhão.

Em junho daquele ano, a entidade foi intimada pelo fisco a ajustar as prestações do Refis para mais de R$ 9 milhões por mês a fim de quitar os débitos tributários até 2050 ou cancelar os benefícios da renegociação.

13.nov.2024 - Julgamento no STJ
13.nov.2024 - Julgamento no STJ Imagem: Gustavo Lima/STJ

Contra-ataque no STJ

Alegando ilegalidade do ato da Receita, a AIS/Instituto Semear impetrou o mandado de segurança. A entidade perdeu na primeira instância e no Tribunal Regional Federal da 2ª Região.

O tribunal entendeu que "o adimplemento mensal em valor ínfimo no âmbito do parcelamento da Lei nº 9.964/2000 equivale à inadimplência, autorizando a rescisão do benefício".

Mas a sorte mudaria nas cortes de Brasília. Em 2023, o ministro Francisco Falcão, do STJ (Superior Tribunal de Justiça), deferiu o pedido do Instituto Semear para suspender os efeitos dos atos da Receita Federal.

Falcão determinou o reajuste das prestações e determinou a reinclusão no Refis.

A ação ficou sobrestada (suspensa) até o julgamento pelo STF (Supremo Tribunal Federal) da constitucionalidade de excluir contribuintes do Refis sobre o argumento de "parcelas ínfimas".

Até hoje o mérito desta ação não foi julgado pela corte suprema.

Com a vitória provisória no STJ, o Instituto Semear obteve uma nova decisão favorável no Rio para reconhecer que os débitos que a Receita já havia excluído do Refis não podiam ser exigidos —ao menos enquanto o STF não decidir o mérito.

Isso fez com que os débitos do Semear inscritos em dívida ativa, que eram de R$ 4,6 bilhões em 2021, somassem apenas R$ 57 milhões em 2024.

No caso da Golden Cross, cujas inscrições na dívida ativa da União totalizavam R$ 2,9 bilhões em 2021, fecharam em R$ 58 milhões no ano passado.

O ator Murilo Benício em propaganda da Golden Cross de 2021
O ator Murilo Benício em propaganda da Golden Cross de 2021 Imagem: Reprodução

Prejuízos recorrentes

O alívio provisório com a encrenca tributária ainda não foi o suficiente para a Golden Cross voltar aos trilhos.

A Vision Med fechou o ano de 2023 com prejuízo de R$ 295 milhões —R$ 118 milhões a mais do que o capital social.

Segundo o jornal O Globo, até setembro do ano passado a empresa havia acumulado R$ 105 milhões em novas perdas.

Analistas do mercado de saúde privada ouvidos pelo UOL disseram que a decisão da ANS de pressionar a Golden Cross a vender a carteira já poderia ter ocorrido em 2024, dada a sucessão de prejuízos enfrentados pela empresa.

Como os segurados estão sendo atendidos pela Amil desde o ano passado, o que surpreendeu o mercado foi o momento da ação da agência.

Questionada pelo UOL sobre o momento da ação, a ANS afirmou que "toma tal decisão quando avalia não haver perspectiva de que a operadora recupere seu equilíbrio econômico-financeiro".

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