Só para assinantes

Como crime organizado contrabandeia e também falsifica cigarros no Brasil

O cigarro contrabandeado do Paraguai agora disputa mercado com um forte concorrente local: comandada por grupos criminosos, a fabricação de cigarro ilegal explodiu nos últimos anos.

Milicianos, chefes do jogo do bicho, facções como PCC e CV e quadrilhas "copiam" os cigarros paraguaios contrabandeados, os mais baratos do mercado.

Em dez anos, a Polícia Federal fechou 61 fábricas. Próximas a grandes centros urbanos, a maioria se concentrava em São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Quase metade foi fechada entre 2022 e março de 2025.

Em apenas uma oficina fechada em janeiro, em Agudo (RS), criminosos faturavam R$ 300 mil por dia.

Segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o tabaco já é a quinta fonte de renda do crime organizado, com receita que ultrapassa R$ 10 bilhões ao ano.

Facções e milícias impõem o consumo de cigarros falsificados nas comunidades que controlam —vendidos por unidade e para menores de 18 anos, práticas vetadas pela Anvisa.

Apreensão de cigarro em Mato Grosso do Sul, vindo do Paraguai, em 23 de março de 2025
Apreensão de cigarro em Mato Grosso do Sul, vindo do Paraguai, em 23 de março de 2025 Imagem: PM Mato Grosso do Sul/Reprodução

Produzidos sem controle sanitário ou fiscal, cigarros ilegais correspondem a 4 de cada 10 cigarros vendidos no país e são um risco à saúde pela presença comprovada de metais pesados e pesticidas proibidos.

Segundo o Fórum Nacional Contra a Pirataria, o Brasil deixou de arrecadar R$ 8,3 bilhões em 2022 com a sonegação decorrente desses crimes.

Fabricas fechadas pela PF desktop
Fabricas fechadas pela PF desktop Imagem: Arte/UOL

Parece, mas não é

Eight e Gift são as duas marcas paraguaias contrabandeadas mais consumidas no país. São também as mais falsificadas.

Pouco a pouco, quadrilhas têm deixado o contrabando de lado para investir na falsificação.

A operação é mais vantajosa para o crime organizado porque evita perder dinheiro com as apreensões, que se intensificaram nos últimos anos.

Os criminosos chegam a buscar mão de obra no país vizinho com know-how na fabricação de cigarros. Há denúncia de tráfico de pessoas e registros de imigrantes trabalhando em regime análogo à escravidão.

Por aqui, o Eight paraguaio vira os similares "Eity" e "Egipt" —esses fabricados com aval da Anvisa— e mais uma dezena de outros, falsificados indiscriminadamente em várias partes do país.

Em São Paulo, a reportagem encontrou maços de cigarros falsificados a R$ 4. Um maço legal é vendido por no mínimo R$ 6,50, segundo a tabela.

Como o cigarro paraguaio chegou no Brasil
Como o cigarro paraguaio chegou no Brasil Imagem: Arte/UOL

Controle de território em área de bicheiros

A fabricação local é peculiar porque reúne oficinas irregulares e empresas legais, mascarando irregularidades.

No Rio, onde o Gift é mais consumido, a confusão impera. É possível encontrar na cidade o Gift paraguaio contrabandeado, o Gift fabricado clandestinamente pelo crime organizado e o Gift legal da empresa Quality In Tabacos, de Duque de Caxias (RJ).

"Como se permite que uma marca nacional tenha o mesmo nome de uma marca do Paraguai?", diz o pesquisador André Szklo, do Inca (Instituto Nacional do Câncer).

"A 'cópia' de cigarros paraguaios ocorre em outros lugares, mas no Rio isso vira alavanca econômica para grupos ligados ao jogo do bicho", afirma Daniel Hirata, coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da UFF (Universidade Federal Fluminense).

Laboratório clandestino reproduz marca paraguaia Gift no Rio
Laboratório clandestino reproduz marca paraguaia Gift no Rio Imagem: Polícia Civil/Reprodução

Sobre os nomes registrados no Brasil, a Anvisa informou apenas que eles devem respeitar as regras do Inpi (Instituto Nacional da Propriedade Industrial).

Nas favelas, os comerciantes são extorquidos para vender apenas as marcas de grupos criminosos. Comercializados por unidade, os cigarros alcançam preço superior ao do atacado ou do varejo.

A semelhança entre nacionais e paraguaios é proposital, ressalta Ivana.

"O PCC chega a trazer do Paraguai o papel e o selo usados nas embalagens dos cigarros de lá para aprimorar a falsificação feita em seus laboratórios."

Investir em tabaco é vantajoso para o crime organizado. David Marques, coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, destaca que o contrabando e a falsificação rendem punição leve.

A pena para contrabando no Brasil é de um a quatro anos de reclusão; já para o tráfico, o risco é pegar de 5 a 15 anos.

Imagem
Imagem: Arte/UOL

Apreensões crescem, fabricação local também

As apreensões da PRF (Polícia Rodoviária Federal) de cigarros contrabandeados e falsificados aumentaram 425% de 2019 a 2024.

O tenente-coronel Vinícius de Souza Almeida, comandante do Batalhão de Polícia Militar Rodoviária de Mato Grosso do Sul, explica que o modus operandi dos criminosos mudou devido aos prejuízos constantes reforçados pelo programa Vigia, do Ministério da Justiça.

Hoje em dia, os criminosos investem mais em olheiros e distribuem o cigarro de forma mais pulverizada.

Allyson Simensato, coordenador-geral de combate ao crime da PRF, afirma que o mapeamento das rotas do contrabando explica a alta das apreensões, mas o efeito rebote foi justamente o crescimento da produção ilegal no país —com menos intermediários e logística facilitada.

Algumas fábricas são instaladas no meio das cidades, eliminando a distribuição por rodovias. Em vez de caminhões, os criminosos usam carros menores e vans, o que chama menos atenção.

"Esses laboratórios de cigarros falsos são um desafio para a fiscalização, que está mais organizada para atuar nas fronteiras. Muitos casos só são descobertos a partir de denúncia", afirma a desembargadora Ivana David, do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Imagem
Imagem: Arte/UOL

O tamanho do problema

Estimativas indicam que 41% do mercado de tabaco no Brasil é ilegal, resultante de contrabando, falsificação ou proveniente de empresas irregulares.

Um exemplo é a Congo Indústria e Comércio de Cigarros, que teve sua licença revogada em janeiro após acumular dívida de R$ 2,2 bilhões.

Apesar da redução do consumo nas últimas décadas, cerca de 12% da população adulta brasileira ainda fuma, com maior incidência entre negros e pardos, segundo a Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição de 2019.

Especialistas apontam que o preço dos cigarros no país permanece baixo em comparação à média global, facilitando aos jovens o acesso ao produto.

O cigarro eletrônico, que é ilegal e também chega contrabandeado, tem contribuído para a reemergência do uso de tabaco.

Em 2022, a UEPG (Universidade Estadual de Ponta Grossa), em colaboração com a Polícia Federal, analisou 30 marcas de cigarros apreendidos na região.

A pesquisa revelou que os contrabandeados continham até 11 vezes mais chumbo em relação aos legais, além de altas concentrações de cádmio e arsênio —metais pesados que causam problemas neurológicos, renais e hepáticos.

Pesquisadores também detectaram altos níveis de pesticidas cancerígenos proibidos, como Aldrin e Dieldrin, nos cigarros clandestinos.

Embora haja pouca pesquisa sobre cigarros falsificados no Brasil, estudos sugerem que eles compartilham características com os contrabandeados.

Para o pneumologista João Paulo Becker Lotufo, coordenador do projeto antitabágico do Hospital Universitário da USP, fumar cigarro sem procedência equivale a "tomar um uísque falsificado ou fumar um cigarro eletrônico: você nunca vai saber o que vai dentro", diz.