Uma lei federal levou a União a abrir mão de R$ 11 bilhões em recursos que eram públicos para pagar um bônus mensal para advogados e procuradores federais desde 2017.
O dado foi calculado pelo UOL.
Esse dinheiro é transferido para o CCHA (Conselho Curador dos Honorários Advocatícios), uma entidade criada pela mesma lei, ligada à AGU (Advocacia-Geral da União), mas que se define como "privada". É o CCHA que faz o rateio do bônus, sem transparência.
Graças ao pagamento, 96% dos advogados e procuradores da AGU na ativa ganharam o equivalente ao teto salarial do funcionalismo público, ou um pouco mais, em setembro de 2024 —R$ 44 mil naquele ano. É o último mês com dados disponíveis.
Em 2016, antes de a lei entrar em vigor, essa porcentagem era de apenas 1%.
Os R$ 11 bilhões têm origem em uma taxa de até 20% paga por quem quitou débitos inscritos na Dívida Ativa da União entre 2017 e 2024. São chamados de encargos legais.
Por mais de cinquenta anos, as taxas da dívida foram para os cofres públicos. Mas a lei federal definiu que a maior parte passaria a ser transferida para o CCHA.
A lei também determinou que o CCHA deveria receber os honorários advocatícios pagos por quem perdesse ações na Justiça contra órgãos da União —o INSS, por exemplo.
Antes, advogados federais —que já têm salário custeado pelo Tesouro— não recebiam honorários. Por isso, o valor não foi incluído no cálculo de quanto a União deixou de arrecadar. São mais R$ 3,4 bilhões.
Ou seja, os honorários são a menor parte do bônus. Mesmo assim, o nome oficial do bônus como um todo é "honorário de sucumbência".
Isso faz com que, no meio jurídico, muitos não saibam que as taxas da dívida também vão para o CCHA.
Somando tudo, o CCHA recebeu R$ 14,4 bilhões da União, desde 2017.
A AGU defende que o pagamento do bônus é um reflexo da eficiência dos seus membros. "O impacto econômico gerado pelo trabalho da AGU passou de R$ 496 bilhões, em 2019, para R$ 1,1 trilhão, em 2024", diz, em nota.
Já o CCHA diz que os pagamentos "provêm de recursos privados", porque pagos por pessoas e empresas, "sem impacto aos cofres públicos". Leia mais aqui.

Perda de recursos públicos
Em 2018, a Procuradoria-Geral da República ingressou com uma ação direta de inconstitucionalidade no STF contra a lei que criou o bônus.
Raquel Dodge, então procuradora-geral, avaliou que os recursos "integram o conjunto de receitas da União". Transferi-los para o CCHA era uma "renúncia tácita de receita" por parte da União, diz a ação.
Mas o STF entendeu que o bônus era sim constitucional. Na época, não foram levantados os valores que a União havia deixado de arrecadar.
A AGU argumenta que tem direito às taxas da dívida porque um de seus braços (a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional) é responsável pela cobrança.
Além disso, para a AGU, as taxas da dívida são "honorários, em razão da cobrança judicial". Porém, não é sempre que a cobrança vai para a Justiça.
Antes, são tomadas medidas administrativas, como protesto em cartório e comunicação ao Serasa e ao SCPC.
Ano a ano, os repasses de taxas da dívida para o CCHA estão crescendo. Entre 2023 e 2024, saltaram de R$ 1,8 bilhão para R$ 3,2 bilhões —alta de 56%.
Já a arrecadação de honorários está estável. Passou de R$ 634 milhões para R$ 655 milhões, no mesmo período.
CCHA acumula caixa bilionário
Dos R$ 14,4 bilhões recebidos pelo CCHA, cerca de R$ 10 bilhões foram efetivamente pagos em bônus entre 2017 e 2024.
Assim, há uma diferença de cerca de R$ 4 bilhões entre o valor recebido pelo CCHA e o distribuído em bônus.
Não se sabe o que foi feito com esse dinheiro.
O UOL questiona o CCHA a respeito desde janeiro, via assessoria de imprensa e pela Lei de Acesso à Informação, mas não obteve resposta.
Em nota, a AGU informou que parte dos recursos da entidade fica em uma conta de reserva utilizada para eventuais imprevistos ou queda de arrecadação. "Recentemente, por exemplo, o CCHA fez acordo com os aposentados, que movem diversas ações contra o fundo", diz o órgão.
Até órgãos de controle, como TCU (Tribunal de Contas da União) e CGU (Controladoria-Geral da União), têm dificuldade de acessar informações sobre a gestão do dinheiro do bônus.
Em 2024, o CCHA chegou até a ingressar com mandado de segurança no STF para não se sujeitar ao controle externo do TCU --o que foi rejeitado.
As informações disponíveis indicam que grande parte da diferença de R$ 4 bilhões esteja sendo mantida em caixa, enquanto o CCHA busca respaldo jurídico para distribuir valores maiores de bônus.
Desde 2020, o CCHA passou a ter um teto para fazer os pagamentos. Naquele ano, ao julgar a ação direta de inconstitucionalidade proposta pela PGR, o STF determinou que salário e bônus deveriam ser somados e, juntos, não poderiam ultrapassar o teto.
Mas o UOL descobriu que, desde 2022, a entidade já criou quatro subtipos de bônus que ultrapassam um pouco o teto —uma espécie de penduricalho do bônus.
Isso não foi previsto na lei. O aval para os novos pagamentos foi dado por pareceres sigilosos da própria AGU feitos a partir de demandas de entidades de classe das carreiras da AGU. Pelo menos um deles foi aprovado pelo advogado-geral da União, Jorge Messias.
Outros penduricalhos, de valores mais altos, também estavam sendo estudados pelo CCHA, como um bônus adicional retroativo desde 2017. O UOL questionou se o valor já foi pago, mas não teve resposta.

O que fazem os advogados da União
Advogados e procuradores da AGU têm a função de defender os interesses dos órgãos federais na esfera jurídica, de ações judiciais a assessoramento e cobrança de dívidas.
Atuam da Presidência da República a universidades, além do Banco Central.
São cerca de 12 mil pessoas, entre aposentados e membros da ativa, que recebem o bônus.
Na ação de 2018, a PGR considerou que advogados públicos não deveriam ter o mesmo direito a honorários que os advogados privados, pois já "são remunerados pela integridade dos serviços prestados".
Além disso, diferentemente de advogados privados, os advogados públicos não precisam bancar custos de escritório e equipe auxiliar, que são cobertos pelo Estado.
Ainda assim, 100% dos honorários das ações vencidas pela União vão para o CCHA.
Já se a União perde uma ação, tem que pagar honorários para quem ganhou. O valor não é descontado do caixa do CCHA, mas custeado totalmente com recursos públicos. A AGU não informou o montante.
Críticos do bônus também dizem que outras categorias, como juízes e membros do Ministério Público, não têm o mesmo benefício.
Pode ser só uma questão de tempo. Uma lei aprovada no final de 2024 criou um fundo de honorários para a Defensoria Pública da União. Assim como no caso da AGU, o caixa será privado.
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