
"Se quiser evitar guerras, você deve ter um filho da puta como secretário de Estado." A frase, dita ao podcast Self Centered, é do embaixador americano Richard Grenell. No fim de 2024, ele tentava convencer o recém-eleito presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de que era o candidato mais qualificado para comandar o Departamento de Estado, o órgão diplomático de Washington.
Por "filho da puta", Grenell descrevia um negociador realista e desapegado de valores morais, pronto a apertar a mão de qualquer pessoa que pudesse oferecer altos ganhos aos EUA por baixo ou nenhum custo. Com frequência, porém, em 2025, o xingamento passou a ser usado contra Grenell por críticos republicanos que o veem disposto a rifar os interesses mais profundos da base eleitoral trumpista em acordos com adversários, como o venezuelano Nicolás Maduro e, agora, o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva.
Republicano histórico e leal expoente Maga ("make America great again", ou "faça os EUA grandes de novo", o movimento trumpista) desde o primeiro mandato de Trump, Grenell perdeu o cargo de secretário de Estado para Marco Rubio, senador republicano pela Flórida que chegou a concorrer contra Trump nas primárias republicanas em 2016 e, atualmente, tenta se cacifar como seu sucessor, em 2028.
Alternativamente, porém, ele recebeu de Trump o título de "enviado presidencial para missões especiais" —um cargo híbrido, sem dedicação pública exclusiva, similar ao posto de outros enviados trumpistas, como Steve Witkoff, que recentemente ajudou a costurar o acordo de paz entre o Hamas e Israel.
Na prática, Grenell se converteu em uma eminência parda da política internacional do republicano, especialmente na América Latina. E foi nessa posição, em uma série de ao menos quatro reuniões secretas com o chanceler brasileiro Mauro Vieira e o assessor presidencial Celso Amorim, que o UOL revela agora, que Grenell ajudou a desfazer o maior nó diplomático da história da relação entre o Brasil e os EUA.
O estilo Ric Grenell de negociar
O governo Trump nem mesmo completava duas semanas quando Grenell ganhou manchetes de jornais latinos e norte-americanos. Em sua primeira missão, ele negociou com o governo venezuelano a libertação de seis americanos presos no país —e surgiu em uma foto sorridente e apertando a mão de Maduro, para aflição da diáspora venezuelana na Flórida que apoiou Trump e se opõe a qualquer tipo de negociação com o líder chavista.

Sem experiência na região (ele antes serviu na Alemanha e na Sérvia, leia mais abaixo), Grenell não se constrange em admitir que não sabe muito sobre a área. Mas isso não seria um problema.
Além de se cercar de assessores que conhecem o terreno, Grenell, segundo gosta de repetir a seus interlocutores, domina o principal: a defesa do "América First", a prioridade aos interesses dos norte-americanos, conforme o lema de campanha trumpista.
É nesta chave pragmática e realista que Grenell se senta à mesa com Maduro: ele se convenceu de que, para o americano médio, mais vale ter outros compatriotas libertos e lucro com a exploração do petróleo ali, do que defender abstratamente a democracia no país alheio.
E, se a Venezuela dominou sua atenção nos primeiros seis meses de governo Trump, a partir de julho, Ric, como é conhecido em Washington, começou a voltar sua atenção ao Brasil. Com o passar das semanas de crise, resolveu entrar em campo para destravar o diálogo entre Lula e Trump.
As conversas secretas
Sem falar uma palavra de português e sem nunca ter pisado antes no Brasil, Grenell comandou uma reaproximação que incluiu ao menos três conversas com autoridades brasileiras antes do abraço entre Lula e Trump, em setembro, na sede da ONU, e mais uma antes do telefonema de ambos no último dia 6.
Os movimentos foram narrados e confirmados ao UOL, reservadamente, por múltiplas fontes de alto nível das administrações Trump e Lula.
Agindo com a autorização do líder da Casa Branca, mas sem coordenação com Rubio e o Departamento de Estado, no dia 22 de setembro, Grenell se encontrou pela primeira vez pessoalmente com Amorim, em Nova York.
A reunião aconteceu longe dos olhares da imprensa brasileira, que se concentrava diante da residência oficial do embaixador brasileiro na ONU, onde Lula e outros auxiliares repassavam os detalhes do discurso que ele faria na manhã seguinte, e no qual denunciava os ataques dos EUA à democracia do Brasil.
No encontro, Grenell assegurou a Amorim que Trump gostaria de cumprimentar Lula pela primeira vez e ouviu do assessor presidencial que o brasileiro também desejava o encontro, que de fato aconteceria por volta das 9h45 daquele dia 23, nos bastidores da Assembleia Geral da ONU.
E, embora tenha se dito "surpreso" a posteriori, ao sair do palco da Assembleia Geral, na manhã daquela terça-feira, Lula já sabia que Trump o esperava na sala usada pelo secretário-geral da ONU, António Guterres, conforme o script repassado por Grenell e Amorim no dia anterior.

O time do embaixador americano comemorou, porém, quando soube que Lula quebrou o protocolo do mero aperto de mão e ofereceu ao americano um abraço.
Já Rubio, sentado na plenária, não esboçou nem mesmo um sorriso ao ouvir o chefe, discursando de improviso na plenária da ONU, anunciar a "ótima química" que acabara de ter com Lula.
O secretário de Estado vinha encampando o conjunto de punições ao Brasil iniciada no começo de julho. Entre as medidas, o governo Trump impôs um tarifaço de 50% que atingiu cerca de 60% das exportações brasileiras ao país, restringiu vistos a dezenas de autoridades brasileiras e acionou as sanções financeiras da Lei Global Magnitsky contra o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes e sua família.
Ao menos em parte, as ações foram motivadas pela campanha do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e do comentarista Paulo Figueiredo por medidas de Washington contra o Brasil que, segundo ambos, pudessem levar à aprovação de anistia a Bolsonaro e seus aliados.
Até a véspera do encontro entre os presidentes, valia a palavra de Rubio, que prometera que os EUA "responderiam adequadamente" ao que qualificou como "uma caça às bruxas" a Jair Bolsonaro, em referência à condenação do ex-presidente por tentativa de golpe de Estado e outros quatro crimes.
A inflexão na postura de Trump acontecia para surpresa de Rubio, que no dia anterior ao abraço presidencial havia anunciado nova leva de restrição de vistos a autoridades brasileiras, entre as quais o advogado-geral da União, Jorge Messias.
No dia seguinte ao abraço de Lula e Trump, na quarta, 24, Grenell se reuniu também em Nova York com Mauro Vieira. Mais uma vez, em segredo.
Em um primeiro momento, ambos expressaram as impressões de lado a lado sobre o positivo, ainda que breve, encontro entre os líderes. E na sequência, exploraram as possibilidades para destravamentos das negociações entre Brasil e Estados Unidos e oportunidades comerciais por setor —carnes, café, maquinários e aeronaves.
A ideia era garantir que o contato amistoso levasse a uma conversa mais substanciosa em breve, como de fato aconteceu com a chamada telefônica entre Lula e Trump, no último dia 6.
Ainda no dia 24, Grenell disse a Vieira e a seu chefe de gabinete, Ricardo Monteiro, que Trump estava particularmente preocupado com a questão das regulações das big techs no Brasil —e que gostaria de ver a rede Rumble, parceira da Truth Social, de Trump, e fora do ar desde o começo do ano, voltar a operar no país.
O auxiliar do republicano ouviu que a questão seria relativamente simples de solucionar desde que a empresa constituísse um representante legal no Brasil, como requer a legislação nacional. E que a rede X (ex-Twitter), do bilionário e ex-assessor de Trump Elon Musk, havia passado por algo semelhante e já não tinha mais contenciosos com o STF.
Sua mensagem ao Brasil era que a relação poderia entrar em uma fase mais pragmática do que jamais antes desde o início da segunda gestão Trump. Recado que o próprio Trump repetiria no último dia 6, depois do telefonema a Lula. "Vamos começar a fazer negócios com o Brasil", disse o líder da Casa Branca, no salão oval.
Era o desfecho para um movimento que ele havia detonado cerca de dez dias antes, quando surpreendeu sua equipe com uma partida relâmpago dos EUA ao Brasil, que forçou o governo brasileiro a emitir vistos ao grupo em questão de 48 horas.
Em 15 de setembro, Grenell e mais cinco pessoas desembarcaram no Rio para uma parada de menos de 24 horas. Ali, o embaixador norte-americano conversaria pela primeira vez com o chanceler Mauro Vieira. O encontro, único até então já tornado público, foi revelado pelo jornal O Estado de S. Paulo poucos dias depois do abraço de Lula e Trump às margens da Assembleia Geral da ONU.
Esta é considerada a conversa crucial em toda a estratégia de Grenell, porque não apenas destravou contatos bilaterais como coreografou a sequência de passos que viria depois.
Do Rio, Grenell seguiu para Assunção, no Paraguai, onde esteve com o presidente Santiago Peña, um aliado de direita na região, e participou da Conferência Conservadora CPAC, o encontro mais importante para a direita trumpista.
O americano não embarcou à capital paraguaia sem antes apresentar, numa ligação telefônica desde o Rio, suas credenciais a Amorim. O brasileiro não esteve no Rio, mas a conversa telefônica, secreta até agora, fluiu de modo cordial e serviu para Grenell repetir a ele a mensagem que passara a Vieira: de que Trump via uma oportunidade de dialogar.
De ambos, Grenell ouviu a perspectiva do governo brasileiro sobre os acontecimentos políticos de 2022 e a reafirmação de que o Brasil se via como um aliado estratégico dos EUA com o Sul Global e os demais países dos Brics (o bloco que inicialmente incluía, além de Brasil, China, Rússia, Índia e África do Sul).
A condição de Bolsonaro, em prisão domiciliar, foi brevemente mencionada na reunião com Vieira, no dia 15. E Grenell se satisfez em ouvir de Monteiro que a questão cabia ao Judiciário —sem interferência do Executivo.
Diplomata, gay, Maga
Diplomata de carreira, Grenell serviu como titular de diplomacia pública na missão permanente dos Estados Unidos da ONU no começo dos anos 2000, sob a administração de George W. Bush. Em 2012, atuou como porta-voz de política externa do então candidato republicano Mitt Romney —que acabou derrotado.
Assumidamente gay, foi celebrado até mesmo por democratas por ser o primeiro homossexual a ocupar cargos tão proeminentes quanto o de diretor de Inteligência Nacional, ainda que interinamente, no primeiro mandato de Trump.
Em que pese o posicionamento contrário de Trump a movimentos identitários e suas tensões com a comunidade LGBT, Grenell é um ativista no assunto. Em 2013, ele atuou como amicus curiae na Suprema Corte, no caso batizado de Hollingsworth versus Perry, que levou à legalização do casamento gay na Califórnia, onde Grenell passou boa parte da vida.
Presença ativa nas redes sociais, em 2016, Grenell teria chegado a qualificar Trump como "perigoso" em uma postagem no Twitter, de acordo com o site americano Político. Com 1,8 milhão de seguidores na rede, seu histórico não pode ser checado, porque seus (muitos) posts são deletados a cada 30 dias.
Mas, se um dia foi crítico ao atual presidente, esse momento ficou no passado. O ideólogo Maga Steve Bannon chegou a dizer ao jornal New York Times que Grenell representava para Trump "um par de mãos seguras para confrontar e desmontar o establishment em Washington".
Na primeira gestão do americano, ele já se mostrou um auxiliar tão leal quanto polêmico. Destacado para embaixador na Alemanha, gerou desconforto no governo alemão ao fazer comentários públicos sobre a política interna do país e foi acusado de manter laços estreitos com a AfD, partido de extrema direita alemã.

Grenell atuou ainda na costura de um acordo entre Sérvia e Kosovo por ordem de Trump, cujo interesse em finalizar conflitos já era claro desde o primeiro mandato.
Na campanha de reeleição perdida por Trump, em 2020, coube a ele impulsionar narrativas de fraudes eleitorais no estado de Nevada. As contestações não prosperaram na Justiça.
Nos quatro anos seguintes, o embaixador seguiu na órbita trumpista, com uma firma de consultoria internacional que com frequência atuou em parceria com Jared Kushner, genro de Trump.
A atuação de Grenell na iniciativa privada levantou questões sobre conflito de interesse, que ele sempre negou.

Na campanha de 2024, quando Trump batalhava para garantir os estados-pêndulo centrais para sua vitória no sistema de Colégio Eleitoral que define a disputa eleitoral nos EUA, Grenell foi crucial para virar os votos da comunidade árabe em favor do republicano, e garantir a vitória em Michigan, estado natal do embaixador.
Com tais contribuições, era dado como certo que ele ocupasse um cargo no novo governo Trump, embora não tenha ganhado o posto que esperava. Por outro lado, como enviado especial, ele segue livre para manter negócios na iniciativa privada.
Grenell e Joesley
Sua atuação na Venezuela tem gerado críticas públicas de apoiadores de Rubio, que tem optado por uma via menos diplomática: sob estratégia do Departamento de Estado e do Departamento de Guerra, as forças armadas dos EUA já bombardearam ao menos quatro barcos no Caribe supostamente pertencentes a narcotraficantes venezuelanos.
Grenell diz a interlocutores que vê na estratégia radicalização ideológica —e risco de guerra, o que não interessa aos eleitores trumpistas, críticos das chamadas "guerras sem fim", como ficaram conhecidos os conflitos no Iraque e no Afeganistão.
De maneira menos frontal, ele também se convenceu que o caminho da administração Trump sobre o Brasil estava ideologicamente contaminado. Até a condenação de Bolsonaro, quadros do governo republicano expressavam a ideia de que o julgamento poderia ser paralisado e que Moraes poderia sofrer impeachment graças às ações detonadas por Trump.
O desfecho do julgamento e as ações de Grenell, entre outros fatores, ajudaram a operar uma reversão de rota da Casa Branca, inicialmente à revelia de Rubio.
Em contraste com seu estilo abrasivo nas redes sociais, os movimentos de Grenell em suas missões diplomáticas são tão discretos que alguns membros da administração Trump chegaram a sugerir que as notícias de sua atuação junto ao governo brasileiro seriam "fake news", pela ausência de rastros do negociador.
A discrição é a marca também de parte dos interlocutores de Grenell. Há algumas semanas ele recebeu um contato dos empresários da carne e irmãos Joesley e Wesley Batista, do grupo J&F, a quem já conhece há anos. Eles relatavam que o tarifaço americano estava custando caro aos interesses americanos e brasileiros. Joesley não se contentou apenas em fazer a mensagem chegar a Trump via Grenell.
Enquanto Jair Bolsonaro era julgado pelo STF, o empresário brasileiro fez um tour pelo Congresso americano e pela Casa Branca, onde se reuniu com Donald Trump.
Ao menos duas fontes na diplomacia americana afirmam ao UOL que a reunião causou uma forte impressão no republicano. O grupo JBS tem plantas de processamento de proteína animal em diversos Estados do país e planos de investimento da ordem de US$ 800 milhões nos EUA. Uma subsidiária da JBS foi a maior doadora para a festa de posse de Trump em janeiro -com uma contribuição de US$ 5 milhões. O empresário não faz comentários públicos sobre sua atuação.
A mesma mensagem de Joesley, Grenell —e Trump— ouviu de outros gigantes do PIB dos dois países, incluindo big techs. Os empresários com interesses dos dois lados se fizeram ouvir, de acordo com uma fonte diplomática americana, que vê perspectiva de acordos comerciais em breve.
Na última segunda, quando os presidentes tiveram uma nova conversa positiva, o trabalho de Grenell mostrou resultados concretos.
Com o sucesso da aproximação, Trump designou Rubio como o ponto de contato para tratar de acordos formais. A escolha foi vista como natural por diplomatas americanos e brasileiros, já que cabe a Rubio a política internacional em termos institucionais.
Havia, porém, dúvida se Rubio, crítico histórico a Lula e até recentemente na contramão do novo movimento, imporia alguma resistência ideológica à reaproximação dos países. Mas o telefonema entre ele e Mauro Vieira na última quinta dissipa ao menos por ora questionamentos dessa ordem.
Qualificado como "positivo" por ambos os lados, o diálogo entre os chefes diplomáticos de Brasil e EUA foi encerrado com o acerto de uma reunião de negociação entre eles, em Washington, já na próxima semana.
Diante dos sinais de normalização, e a julgar pelo histórico de sua atuação, este é possivelmente o momento em que Grenell deverá submergir outra vez. Sem, porém, deixar de contabilizar o novo momento entre Brasil e EUA como uma "missão especial" cumprida.
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