Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Como imaginar o futuro nas periferias? O caso 'Banlieue du TURFU'
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No final de 2020, organizei junto a Envisioning um painel intitulado "Decolonizing Futures" (futuros decoloniais ou decolonizando futuros, no português). Na ocasião, tivemos a oportunidade de conversar sobre outros gêneros e narrativas de ficção científica que vão além de Hollywood e das recorrentes distopias. Para isso, contamos com a presença do Prof. Dr. Alexander Meireles do canal Fantasticursos, Prof. Dr. Bodhisattva Chattopadhyay (University of Oslo/CoFutures), Monika Bielskyte (Protopia Futures), Sarena Ulibarri (World Weaver Press), e Lauren Klein (Aesthetic Autonomy Virtual Salon and Aesthetic Futures for Social Wellness). Temas como sertãopunk e amazofuturismo, solarpunk, afrofuturismo e protopia foram debatidos ao longo da conversa (em inglês).
Foi baseado no diálogo que criamos ali que Makan Fofana e Hugo Pilate, dois empresários, designers, ativistas e pensadores franceses entraram em contato comigo para apresentar seu projeto Banlieue du TURFU. A expressão francesa diz respeito ao futuro ("turfu" é uma gíria para "futuro" que também foi popularizada pelo músico Booba) das periferias (banlieue) ou, mais especificamente, como imaginar uma "quebrada" do futuro. Em entrevista para a The New New, instituição que patrocinou o projeto em 2020, Makan conta que a ideia surgiu de sua própria experiência como um morador da periferia parisiense.
No Brasil, temos aquela piada que diz que sofrer em Paris é muito melhor do que estar sofrendo aqui. Mas, na realidade, enquanto essa expressão põe o Brasil como periferia, o que ocorre é que mesmo nos centros do norte global há também regiões e populações marginalizadas. Paris é, na verdade, um exemplo frequentemente trazido em discussões sobre gentrificação.
Depois de sofrer um período de depressão, Makan resolveu subverter alguns de seus valores (que incluíam religião, hip-hop, cultura periférica e de esquerda) para direcionar suas ideias às proposições feitas por filósofos como Sócrates, Platão e Nietzsche. No caso do último, Makan se inspirou principalmente no conceito de "vontade de poder" (Wille zur Macht), mas não um poder que fosse relacionado à política, influência social ou mesmo força bruta, e sim algo "mais suave" e que levasse em consideração sua "vulnerabilidade".
Enquanto funcionário de uma das maiores incubadoras do mundo, Makan gastava uma hora e meia de trem até chegar ao centro, onde o escritório estava localizado. Foi no trajeto que o designer se questionou: "Por que tenho que viajar 1h30 para chegar no futuro? Por que meu futuro não pode estar no meu bairro?" O pensamento certamente já passou pela mente dos milhares de paulistanos que gastam horas se deslocando na capital todos os dias. Ou será que, talvez, o mais recorrente questionamento não seja aquele de que o sucesso só se dará quando essas pessoas puderem morar nos bairros centrais?
Essa foi a provocação feita por Makan ao longo de seus workshops usando Design Fiction e também em seu projeto junto a The New New. Entre os moradores da periferia e do centro parisiense que participaram das oficinas, houve também essa dificuldade de desconstruir a ideia de futuro e de periferia. Makan conta que a pergunta "O que são os subúrbios do futuro para você?" paralisou os participantes. Quando finalmente uma pessoa se manifestou, disse que imaginava um lugar com apartamentos ou casas maiores. "Então o futuro das banlieues é seu oposto: um bairro de classe média. O futuro dos subúrbios era um ponto cego na cultura urbana", diagnosticou o designer.
Aqui no Brasil, a futurista Rosa Alegria frequentemente questiona sua audiência sobre a ideia de que precisamos decolonizar o futuro, no sentido de repensar nossas imagens sobre o futuro para além do imaginário do norte global. Será que prédios espelhados entremeados por plantas são sinônimo de futuro, ou será que estamos falando sobre casas construídas por impressão 3D usando concreto reciclado?
Para tornar esse futuro mais tangível, Hugo sugeriu usar o jogo "Fortnite" como plataforma de criação de um cenário, espécie de intersecção entre a Banlieue du Turfu e Marte — ou o que um subúrbio afro-cyber-feminista do futuro se pareceria. Durante nossa conversa, cheguei a mencionar tanto os subgêneros sertãopunk e amazopunk aqui do Brasil, bem como o romance "O Caçador Ciborgue da Rua 13" de Fábio Kabral, que imagina um futuro afrofuturista entremeado por referências de religiões brasileiras de matrizes africanas. Isto é, com artistas como Fábio e empresárias como Morena Mariah (Afrofuturo), já estamos aqui, no Brasil, pensando em outros futuros periféricos em que esse adjetivo não mais se associe a um sentimento negativo ou de inferioridade.
Comentei com Hugo e Makan que era interessante essa perspectiva deles, ainda mais pelo fato de eu ser brasileira e, portanto, originária de uma ex-colônia europeia. Enquanto Makan fala da divisão entre periferia e centro, bárbaros e civilizados, negros e brancos, aqui no Brasil também discutimos a colonização ou, mais especificamente, os processos decoloniais pelos quais passamos e estudamos nas ciências sociais através de conceitos como política de reconhecimento.
Filmes como "Bacurau" foram um respiro no imaginário brasileiro, ao apontar uma reflexão sobre nossa relação com estrangeiros e tecnologia. A crítica feita no longa é justamente essa: não é porque aquelas pessoas vivem em uma cidadezinha no meio "do nada" que elas são ignorantes e facilmente se subjugam à influência do "centro". Por outro lado, os personagens sudestinos fazem questão de se associar aos estrangeiros e, inclusive, reforçar em um inesquecível diálogo que eles advêm da "região mais rica do Brasil" e que possuíam ascendência europeia, que eram brancos. Só que, para os "gringos", só o fato de eles serem brasileiros já os torna "menos brancos".
Trago essa referência porque nos encontramos em um momento complexo no Brasil. Durante a pandemia, observou-se uma intensificação da chamada "fuga de cérebros". Segundo o Departamento de Imigração norte-americano, entre 2019 e 2020, a busca pelo visto permanente dos tipos EB1 e EB2 cresceu 40% em comparação aos anos de 2017 e 2018, e 135% quando se compara com 2015 e 2016, quando o país estava em recessão. É possível conquistar o futuro em nossa "periferia" ou isso é dar murro em ponta de faca? O conceito de resistência, mais uma vez, ganha peso e urgência.
Nas recentes manifestações de 12 de setembro, um dos organizadores chegou a comentar do alto do carro de som: "A saída para o Brasil não é o aeroporto, é 'Fora Bolsonaro'". Mas, enquanto um impeachment ou as eleições não chegam, milhares de brasileiros têm optado pelo aeroporto. Na periferia do mundo, países latino-americanos como Venezuela, Bolívia, México e mesmo Haiti vêm confrontando múltiplas crises que culminaram em golpe de Estado e até assassinato de um presidente.
Em um contexto como esse, fica difícil imaginar o futuro. Mas, assim como ressaltado pela filósofa mexicana Sayak Valencia, a América Latina sempre esteve em crise e a necropolítica sempre fez parte de nossas estruturas. O resto do mundo sentiu um gostinho disso durante a pandemia, mas o que ocorre nessa reta final é o que Valencia já destacava no início da crise sanitária: "Aqueles que sonhavam que a covid-19 seria um divisor de águas, na verdade só estavam vivendo o privilégio de forma fantasmagórica".
Estamos cada vez mais necessitados de projetos como La Banlieue du TURFU, de modo que processos criativos nos façam romper com essa desesperança esmagadora criada pelo presente. O projeto se desdobra em livro (em francês) e website, que convida mais pessoas ao redor do mundo a se juntarem ao projeto.
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