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Capitalismo trata pessoas como mercadoria a ser destruída, diz filósofa

A escritora Sayak Valencia, autora de "Capitalismo Gore" - Arquivo pessoal
A escritora Sayak Valencia, autora de "Capitalismo Gore" Imagem: Arquivo pessoal

Lidia Zuin

Colaboração para o TAB

25/10/2020 04h00

Sayak Valencia não vê diferença entre a lógica de uma empresa e o narcotráfico. Quando pensa no México, país onde nasceu, conclui que, como na famosa máxima, o crime compensa. Senão, vejamos: o enriquecimento através do crime é "quase instantâneo", e o preço a ser pago por isso é "apenas" a necessidade de matar e morrer — um custo que, segundo ela, "nem é tão elevado quando a vida não é uma vida digna de ser vivida, senão em uma condição ultra precarizada em torno de uma frustração constante, e em um empobrecimento irreversível por outras vias", escreve ela em "Capitalismo Gore", livro lançado em 2010.

Filósofa transfeminista, doutora pela Universidade de Madri, Valencia ficou conhecida por fazer uma leitura crítica do capitalismo aliando feminismo e referências da cultura pop. Busca do cinema a definição de "gore" — subgênero dos filmes de terror em que entranhas e corpos explodem pela tela — para analisar a vida contemporânea. Para ela, nosso sistema político e econômico não difere de um imaginário do terror gore ao também tratar corpos (e indivíduos) como pedaços de carne, mercadoria passível de ser destruída e contabilizada a partir da lógica do que o filósofo camaronês Achille Mbembe chama de necropolítica.

Consumidores consumidos

Valencia nomeia os membros do narcotráfico como "sujetos endriagos" -- sujeitos monstruosos, em português --, uma vez que aceitam se tornar "ativos em sua relação com a morte", seja a própria ou a alheia.

Não é à toa que a santa padroeira dos narcotraficantes mexicanos é uma versão cadavérica de Nossa Senhora, a Santa Muerte. Por outro lado, Valencia ainda vê essa lógica de funcionamento do narcotráfico (mas também do capitalismo) como um sistema patriarcal e machista enraizado na própria formação da sociedade mexicana.

Em entrevista ao TAB, a autora explica que esse aspecto violento da cultura patriarcal é próprio de uma afirmação binária de gênero masculino, mais marcante nos espaços pós-coloniais, mas que pode ser encontrado em todo o mundo. Esse binarismo transparece em instituições como narcotráfico, governo e corporações e também no imaginário popular — basta pensar na construção das personagens de séries de sucesso como "Breaking Bad", "Better Call Saul" ou "Narcos", por exemplo.

O livro "Capitalismo Gore", de Sayak Valencia - Divulgação - Divulgação
O livro "Capitalismo Gore", de Sayak Valencia
Imagem: Divulgação

Vivemos em um sistema de hiperconsumo que se retroalimenta: para ser alguém no capitalismo, é preciso ter poder aquisitivo e status, dois ativos passíveis de serem conquistados no crime organizado ou através da política e no empreendedorismo.

"O empreendedorismo é algo que busca romper com a memória histórica, com os processos de liberação da América Latina. Isso acontece também com os sujeitos monstruosos no México", diz a escritora. "Rompe-se o tecido social para que se capturem esses sujeitos e sigam reproduzindo os valores e as ideologias tanto de poder quanto de consumo, e que o aparato siga funcionando a favor do sistema estatal, neoliberal, capitalista e, nesse sentido, cada vez mais fascista."

Liberalismo autocrítico

A publicidade atual já incorporou o discurso da inclusão em campanhas e ações. Se, por um lado, termos como pink money ou greenwashing ganharam conotação negativa por uma suposta artificialidade, por outro esse tipo de agenda virou assunto nos meios de comunicação.

Para Valencia, causas não devem ser apropriadas pela publicidade e transformadas em produto, mas pensar nesses assuntos é uma forma de estimular o diálogo, desde que as pessoas não sejam "coisificadas" e que a própria comunidade possa produzir e ser beneficiada pela iniciativa.

A escritora vislumbra com otimismo a maneira com que coletivos feministas e antirracistas têm usado as redes sociais, por exemplo, como formas de resistência e amplificação do diálogo.

O mesmo vale no feminismo liberal. Diante de grandes franquias, como os filmes "Mulher Maravilha" ou "Capitã Marvel", que vêm adotando um discurso feminista como estratégia de venda e engajamento, Valencia acredita que o feminismo liberal traz à tona todos os outros feminismos — isto é, uma sensibilidade feminista que permite com que pessoas que outrora não se considerariam feministas consigam se identificar com essa agenda.

"O que me preocupa é a polarização do discurso liberal e sexista contra o discurso transfeminista ou outros discursos feministas que incluem as diversidades", argumenta a filósofa. "O feminismo liberal tem a tarefa de fazer uma autocrítica, de ser um feminismo cuja agenda não se limite a querer ser igual em direitos e obrigações aos homens apenas em nível jurídico, mas incluir discussões muito mais complexas e que saem do binarismo."

Pandemia de colonialismo

A Covid-19 fez todo mundo encarar a morte — algo com o qual as populações vulneráveis já convivem todos os dias e que, nessa crise pandêmica, se intensificou. A filósofa argumenta que, na realidade, a necropolítica que se instaurou nos países de primeiro mundo persiste nos países pós-coloniais — só se repetiu o que já conhecíamos, mas em inglês e com sotaque europeu.

Quando questionada se sua opinião estaria mais próxima da perspectiva de Slavoj Zizek ou de Byung-Chul Han a respeito de possíveis desdobramentos pós-pandêmicos, Valencia diz que não concorda com nenhum dos dois. "Ambos falam a partir de um privilégio absoluto masculino e também europeu", explica ao TAB. "Não há uma crítica direta à figura do autoritarismo vinculada a da masculinidade e da necropolítica, que é o que temos visto, de Trump até Bolsonaro, mas também com o golpe de estado na Bolívia e outros autoritarismos proliferando no leste europeu e no resto da Europa."

Valencia é pessimista. O mundo pós Covid-19 não irá revelar o fim do capitalismo, mas uma maior precarização do trabalho, com o fim da modalidade assalariada e o incremento dos modelos de vigilância que fomentam autoritarismos nos Estados democráticos. "Vemos o fascismo dando as mãos ao neoliberalismo e trabalhando com o medo e o terror, com um argumento biopolítico e sanitarista, para nos deixar confinados. Então, aqueles que sonhavam que a Covid-19 seria um divisor de águas, na verdade, só estavam vivendo o privilégio de forma fantasmagórica."