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Como estereótipos de masculinidade contribuem para a misoginia no futebol

Robinho concede entrevista ao UOL Esporte - Marcelo Ferraz/UOL
Robinho concede entrevista ao UOL Esporte Imagem: Marcelo Ferraz/UOL

Marie Declercq

Do TAB

18/10/2020 04h01

Conquistas amorosas e sexuais costumam construir a imagem dos ídolos no futebol. O estereótipo do jogador galanteador reproduz expectativas do que se deve esperar de um homem que é atleta — e garante, ao boleiro de sucesso, quase um passe livre para fazer o que quiser. A celebração desse modelo ultrapassado de masculinidade poderia estar contribuindo, de alguma forma, para a relativização de casos de violência de gênero cometidos dentro do esporte?

Essa pergunta sobre comportamentos que toleramos no futebol não parece sair de cena tão cedo. Especialmente com o longo histórico de violações cometidas por jogadores e pessoas que fazem parte desse universo.

Mais recentemente, a contratação de Robinho para jogar novamente no Santos reacendeu as discussões sobre misoginia. Robinho foi condenado à revelia pela Justiça italiana por ter participado de um estupro coletivo de uma mulher de origem albanesa, em 2013. Mesmo sob protestos e questionamentos de torcedores e torcedoras, o clube abraçou a causa e seguiu com a contratação.

A volta de Robinho ao Santos foi defendida por muitos de seus colegas, inclusive pelo técnico do time, Alexi Stival, o Cuca — ele mesmo também condenado por estupro de uma menina suíça de 13 anos, em 1987, quando jogava pelo Grêmio.

Mulherio Cuca - Reprodução - Reprodução
Trecho da reportagem da revista "Mulherio" que analisou a recepção e comemoração dos jogadores do Grêmio (um deles, atualmente, é técnico do Santos) condenados por estuprarem uma garota de 13 anos na Suíça.
Imagem: Reprodução

Os casos de Cuca e Robinho são exemplos de um passado e presente no futebol onde se ainda relativiza casos de violência contra a mulher, com a desculpa de que acusações do tipo podem acabar com a vida e a carreira dos acusados. Pela repercussão do caso, especialmente após a divulgação de trechos do processo, com a transcrição de áudios de conversa do jogador com conhecidos, colhidos pela polícia italiana, o Santos e o jogador suspenderam o contrato.

Se sua performance no futebol estiver satisfatória, a fama de pegador e festeiro é celebrada entre os jogadores. Para as mulheres envolvidas com astros do futebol profissional, qualquer suspeita de deslize serve de desculpa para desacreditá-la.

Por isso, acusações de violência contra a mulher nem sempre são definitivas para que um jogador perca prestígio. A lista de exemplos não é pequena. Além de Cuca e Robinho, houve também o caso do goleiro Jean, acusado de agredir a esposa no final de 2019; e de Bruno Fernandes, ex-goleiro do Flamengo, condenado por homicídio triplamente qualificado de sua ex-namorada, Eliza Samudio.

Ostentação de conquistas

Em fotos e entrevistas, jogadores se gabam de suas conquistas amorosas. Desde as supostas 5 mil mulheres com quem Renato Gaúcho transou quando era jogador, dos relacionamentos conturbados de Ronaldo e as aventuras surreais de Ronaldinho Gaúcho quando jogava profissionalmente.

"No futebol se celebra a masculinidade conferida ao homem hétero, pegador, que objetifica as mulheres ao seu redor", afirma Silvana Goellner, professora da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), pesquisadora e ativista do futebol de mulheres. "Por isso, são rejeitadas outras formas de masculinidade. Ridiculariza-se o jogador homossexual ou até aquele que não preenche todos os requisitos desse tipo de estereótipo."

ronaldinho gaúcho - Reprodução - Reprodução
Talento em campo, o ex-jogador Ronaldinho Gaúcho também ficou conhecido pelas festas que dava e as conquistas sexuais
Imagem: Reprodução

A vida amorosa de um jogador não deveria ser régua para determinar caráter ou talento, mas a celebração do mulherengo resiste às mudanças de comportamento na sociedade.

O interesse do público quanto à vida pessoal do profissional também é determinante para a formação desses estereótipos no meio. Segundo Diana Mendes Machado da Silva, historiadora de futebol e pesquisadora da USP (Universidade de São Paulo), arquétipos de jogadores profissionais passaram a ser mais frequentes a partir dos anos 1930, quando começou a se formar, no imaginário popular, a figura mítica do jogador — o que conhecemos hoje por "craque".

"Mas desde antes de década de 1930 e do começo dessa cultura de celebridades, já havia essas narrativas que conhecemos tão bem dos 'bons moços" e dos 'bad boys', heranças do mundo do cinema, do teatro, da política, da rádio. A dualidade do bom moço e do bad boy é mais fácil de existir nesse universo midiático", explica a historiadora.

Heróis acima de tudo

O comportamento, incluindo a dessensibilização em relação a mulheres, não reflete apenas a sociedade e o meio de onde vieram e em que vivem, mas também uma complicada relação entre dinheiro, sucesso e ascensão social que muitas vezes vem cedo para jogadores profissionais.

Para Airan Albino, jornalista e cofundador do grupo MilTons, que desenvolve ações focadas na reflexão das masculinidades negras, a exposição precoce a um ambiente de poder e status é importante para entender a origem das relações problemáticas de tantos jogadores com mulheres.

"Não há suporte educacional nenhum para o esportista brasileiro", explica o jornalista. "Existem esses padrões de comportamento machistas esperados, e as pessoas que se envolvem com esporte são muito expostas a eles. São homens, na sua maioria negros e pobres, que ascendem financeiramente e nem tiveram tempo para refletir sobre tudo isso."

O impacto cultural do futebol no Brasil também interfere na resposta da sociedade às atitudes reprováveis ou criminosas. "A dificuldade de enxergarem a mulher como um ser humano decorre do fato de essas pessoas serem colocadas em posição heroica. Eles são vistos como sobre-humanos. Isso faz com ele ache que pode fazer tudo o que quer", explica Albino. Nesse contexto, a violência de gênero é vista como um "deslize" dos jogadores pelo público e pela própria indústria do futebol.

"Futebol não é só 'boy lixo' fazendo merda" argumenta Isabela Venturoza de Oliveira, antropóloga, doutoranda e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, da Unicamp. "Mas esses jogadores estão reproduzindo a visão de mundo que aprenderam. Isso faz a gente pensar, e mostra a falta de repertório que crianças e jovens têm sobre consentimento e relações prazerosas. Essa discussão é urgente e precisa ser realizada em todos os espaços."

Homem é homem, mulher é mulher

Para os especialistas consultados por TAB, é essencial considerar que o ambiente machista do futebol não é de autoria dos jogadores. Ao lado deles há uma equipe de assessores, ajudando a desenvolver a narrativa de cada um — seja "bom moço" ou "bad boy" —, além de uma indústria milionária.

"O lugar das mulheres no futebol de elite é controlado, tanto quanto a imagem dos jogadores", explica Diana Mendes. "Interessa também pensar na seguinte hipótese: e se os assessores fossem mulheres, mais atualizadas às discussões? Como seriam esses jogadores se a imagem deles fosse gerenciada por mulheres?"

A dualidade conferida aos profissionais do futebol também se estende às mulheres que vivem nesse ambiente. Da dona de casa ideal e discreta, casada com o jogador, até a "Maria chuteira" em busca da fama. No entanto, mulheres são submetidas com muito mais frequência ao escrutínio público que seus parceiros.

As relações de poder formadas entre os jogadores e as mulheres, vistas apenas como conquistas amorosas ou oportunistas em busca de fama e dinheiro, é um dos principais elementos para entender como se dão as relações de gênero dentro desse ecossistema. Por ser um mundo de homens, muitos deles intocáveis por conta de seu talento e carisma, casos como o de Robinho e Bruno são vistos como uma pedra no caminho de um jogador.

"Status financeiro, midiático e influência fazem com que a pessoa sequer reconheça que aquilo que fez foi um ato de violência, além de conferir a certeza de que ele poderá abafar o caso. E aí a vítima que denuncia é questionada e responsabilizada, encontrando nesse processo toda uma estrutura de autoridades que tentarão deslegitimar esses abusos", diz Maurício Rodrigues, doutorando em Antropologia Social e pesquisador do NUMAS (Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença) da USP.

Goleiro Bruno em Rio Branco (AC) - Divulgação/Rio Branco FC - Divulgação/Rio Branco FC
Bruno é recebido por Neto Alencar, presidente do Rio Branco-AC
Imagem: Divulgação/Rio Branco FC

Um peso, duas medidas

Se o histórico de conquistas sexuais é tratado como um troféu para os jogadores, no caso das mulheres pode ser quase como uma declaração de culpa quando são vítimas de violência. Foi o caso de Eliza Samudio, cuja vida privada foi revirada e questionada, a fim de justificar seu assassinato, e mais recentemente a ex-esposa de Dudu, que denunciou que foi agredida pelo marido.

Justificar o injustificável no que tange à violência contra a mulher não é exclusividade só do futebol, mas a frequência com que isso acontece no esporte e a opção dos clubes em ignorar condenações e acusações graves na hora que contratar jogadores faz com que o futebol siga um ambiente nada acolhedor para o gênero feminino e para a comunidade LGBTQI+.

"O futebol é um terreno muito violento para as mulheres", explica Goellner. "Ele é violento tanto na questão do preconceito com mulheres que jogam futebol quanto em casos como o do Robinho, até a forma com que tratam jornalistas de esporte e torcedoras. É um terreno muito hostil. As mulheres nos estádios sofrem muito, porque o abuso sobre o corpo da mulher é uma constante."

Novas narrativas

Mesmo com o machismo e outros elementos serem insistentemente preservados no universo do futebol, a indústria tem cedido à pressão de grupos e coletivos de torcedores para que o esporte se adeque às mudanças sociais. Ainda assim, o que ainda fala mais alto é a palavra dos patrocinadores e a necessidade de engajamento nas redes sociais.

No caso de Robinho, a junção entre o protesto dos santistas e a perda de patrocinadores foi suficiente para que o contrato do jogador fosse suspenso. No entanto, o próprio clube fez questão de dizer que a suspensão foi feita em comum acordo para que Robinho possa se concentrar em sua defesa — a condenação na Itália foi contestada pela defesa e o jogador aguarda a retomada do processo, com o julgamento do recurso em segunda instância previsto para dezembro.

"Talvez mais do que pensar nesses casos como o do Robinho, vale pensar na produção de outra visão de mundo, numa outra cultura de respeito às mulheres. Não basta só punir. É preciso produzir e oferecer ao sujeito outras formas de estar no mundo. É um problema social, não é só problema desses caras. É uma lógica que precisa ser alterada", diz Venturoza.