'Ninguém protege o atleta que se posiciona', diz ex-goleiro Aranha
De joelhos, enfileirados, atletas da NBA (a liga norte-americana de basquete) protestaram contra o racismo e a violência policial nos Estados Unidos, pouco antes do início de uma partida no último 29 de agosto. Dias antes, os atletas se recusaram a entrar em quadra, também como forma de protesto. Desde a morte de George Floyd, o debate sobre racismo está presente em diversos setores da sociedade norte-americana.
Na mesma semana da morte de Floyd, o Brasil também foi palco de crimes contra pessoas negras. João Pedro, menino negro de 14 anos, foi morto dentro de casa por policiais. O levante de protestos nos Estados Unidos trouxe à tona o debate: por que não protestamos da mesma forma? Agora, com os protestos na NBA, o questionamento se volta para o esporte: por que atletas brasileiros não se posicionam? Em termos de tamanho e importância de cada esporte em cada país — o basquete nos EUA e o futebol no Brasil —, a comparação é válida. Mas e a cobrança pelo posicionamento?
Durante os protestos de junho de 2020, a bandeira antifascista foi levantada pelas torcidas organizadas. A Gaviões da Fiel, do Corinthians, e a Mancha Verde, do Palmeiras, estiveram à frente dos protestos na avenida Paulista, em São Paulo. "As torcidas hoje são conscientes de que elas têm papel político. Já os clubes têm mais dificuldade de reconhecer isso", afirma a historiadora Diana Mendes. Nos últimos anos, torcidas também têm se levantado contra a LGBTfobia, com as torcidas queer, por exemplo. Mas o racismo, seja no campo ou na arquibancada, ainda é uma questão truncada, e, como fora do estádio, estrutural.
Em 2014, Mário Lúcio Duarte Costa, o goleiro Aranha, do Santos, foi chamado de macaco pela torcida gremista durante uma partida contra o Grêmio. No mesmo ano, na Espanha, torcedores jogaram uma banana para Daniel Alves, que jogava pelo Barcelona. Em reação, Daniel comeu a banana. Fora de campo, Alves comentou que, por lá, as coisas "são assim". "Temos que rir de gente atrasada", declarou. "Ele poderia ter parado a partida", opina Flávio de Campos, professor de história na USP (Universidade de São Paulo).
No caso de Aranha, quatro torcedores do Grêmio foram punidos. Mas o ex-goleiro se aposentou cedo dos estádios, aos 38 anos, por causa de uma lesão. Ao contrário dos atletas da NBA, a questão racial é latente entre os brasileiros, seja no campo de futebol ou outras práticas esportivas. "Perdi tudo ao me posicionar", relatou o ginasta Ângelo Assumpção, à Folha de S.Paulo.
"A partir do momento em que eu me posicionei, arrumei muitos inimigos", afirma Aranha, que é colunista do UOL Esporte. "Quem se posiciona no Brasil vai ser perseguido ou cancelado, como é a moda agora. Ninguém protege o atleta que se posiciona; todo mundo cobra, mas ninguém banca. Ele fica abandonado, como eu fiquei."
A raiz do problema do racismo, segundo historiadores, está na formação da identidade racial dos brasileiros e na herança que a escravidão deixou para o país. Nem mesmo o esporte escapou dos efeitos do período escravocrata. "A estrutura do futebol é racista", diz Marcelo Carvalho, diretor executivo do Observatório da Discriminação Racial no Futebol. "Há total falta de apoio ou do pensar na diversidade. A diretoria dos clubes é branca", completa.
Desde 2014, o Observatório monitora casos de discriminação no esporte. Em 2018, no último relatório disponível, de 79 ofensas, 52 foram de cunho racial. "Existe aumento do número de denúncias de racismo e não tem campanhas efetivas de combate ao racismo e iniciativas de propor diversidade", observa Carvalho. "Existem ações que acontecem a partir de um incidente, mas campanhas duradouras, institucionais, não."
"Nós temos uma cultura política diferente da norte-americana. O fim da escravidão lá foi marcado por uma guerra que teve consequências para a população negra, e a subsequente luta pelos direitos civis. Há uma tradição política da população negra em relação a seus direitos e ao reconhecimento", explica Mendes. "Aqui, as rebeliões pelo fim da escravidão foram abafadas, a libertação foi um acordo, é outra cultura política. Ninguém sabe direito quem é negro no Brasil", completa.
No jogo entre Palmeiras e Inter no último dia 2 de setembro, durante um bate-boca, Matheus Jussa, do time gaúcho, disse a Luiz Adriano, da equipe paulista: "Honra sua cor". Em postagem no Instagram, Jussa defendeu sua fala e reafirmou seu orgulho de ser negro. "No Brasil, é difícil se conhecer como um homem negro, uma pessoa negra. Existem várias tonalidades, variações. Nos Estados Unidos, ou você é negro ou é branco", diz Aranha. "Muitos negros não gostam de falar sobre isso, se sentem envergonhados e não conhecem sua história. Como posso cobrar posicionamento de uma pessoa que não sabe nada sobre o assunto?"
A confusão sobre quem é negro e quem é branco no Brasil é fruto do mito da democracia racial e de políticas de embranquecimento, que também afetam o campo esportivo. "O futebol é espelho da democracia racial. Em 1950, havia a possibilidade política de mostrar isso. Mas, naquela final de Copa do Mundo, o Brasil perdeu em campo [para o Uruguai] por 'culpa dos negros'. De novo, em 1970, o esporte foi usado como uma questão política. Hoje, diversos dirigentes de clube estão na vida política e o atual presidente é muito próximo do futebol, é uma coisa muito popular", diz Carvalho. "Futebol e política sempre se misturaram."
Mas, para se afirmar como negro, principalmente no campo esportivo no Brasil, é preciso ser muito politizado, afirma Mendes. Um exemplo frequentemente levantado quando se fala do assunto é o caso do jogador Neymar. "Se você olha uma fotografia dele, você diz que ele é negro. Mas isso não tem significado. Ser negro é ser pobre no Brasil, é não ter visibilidade", reflete a historiadora. Apesar de a maioria dos jogadores de futebol serem negros, muitos negam o racismo e procuram se embranquecer à medida que ascendem socialmente.
Após pressão, especialmente vinda do youtuber Felipe Neto, em junho, o jogador postou em seu Instagram uma foto em defesa do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam). Antes de Neymar, Pelé também foi muito cobrado por um posicionamento sobre a luta antirracista no país, mas a declaração de apoio formal nunca veio. "Isso tem a ver com a diferença de chão cultural e político de cada país. Não dá para pensar em posicionamento de atletas sem pensar na história", diz Mendes.
Novamente comparando com o histórico dos atletas norte-americanos, o processo é diferente. Tudo relacionado à NBA sempre foi tensionado. Nos anos 1940, os negros não podiam entrar em quadra. Nos anos 1950, era permitido apenas três atletas negros por equipe. "Eles tinham que se posicionar e entendem onde estão pisando. Isso fez com que criassem uma consciência racial muito mais forte", explica Carvalho. Para Mendes, eles não têm dúvidas em relação à negritude. "A NBA concentra a maior parte dos atletas negros, eles sabem do prestígio que têm e do gosto que os norte-americanos têm pelo basquete. O esporte representa o lugar de sucesso dos negros nos Estados Unidos e concentra os negros ricos. Eles juntam esses símbolos e se manifestam."
Processo mais ou menos semelhante acontece no futebol feminino no Brasil, mas não no masculino. A luta no futebol feminino, diz Mendes, é em dobro, uma vez que elas sempre enfrentaram proibições e machismo. "O futebol feminino por definição já é resistência", diz Campos. "As mulheres têm que ocupar um espaço que a sociedade enxerga como indevido a elas. Além da questão de gênero, também têm as questões de raça, de diversidade sexual. É um terreno mais otimista para se pensar em formulações e em enfrentamento contra a intolerância."
Para Carvalho, há uma mudança no curso dessa história entre as gerações mais novas de atletas. "É uma geração que tem posicionamento mais forte, talvez por estar nas redes sociais. E a geração tem ficado mais atenta às tensões que a gente vive. Os jovens estão mais por dentro das questões raciais."
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