Em cidade norte-americana, caubóis negros querem ser heróis da comunidade
Eles chegaram a cavalo à manifestação. Mas não eram da cavalaria da polícia. De correntinha dourada no pescoço, Randy Hook vinha montado em Frozen e tinha seus dreadlocks despontando por debaixo do chapéu preto de abas largas. Ao seu lado, outros também trotavam calmamente pelas ruas, levando cartazes coloridos, embalados por gritos do movimento Black Lives Matter.
Hook e seus amigos são de Compton, o mesmo lugar ao sudeste do condado de Los Angeles do "Straight Outta Compton", álbum de 1988 (e filme de 2015) do grupo de gangsta rap N.W.A. Por décadas, a cidade de 96 mil habitantes foi sinônimo de violência e rixas sangrentas entre Bloods e Crips, cenários dos raps de Dr. Dre, Ice Cube, Kendrick Lamar e muitos outros.
Mas Hook quer escrever uma nova história para Compton — embora ele mesmo seja sobrevivente do passado violento da então chamada "cidade mais perigosa da Califórnia". Hoje, ele é o líder dos Compton Cowboys, o mais famoso grupo de caubóis negros nos EUA, parte de um movimento de resgate da negritude num mundo dominado pelo imaginário de vaqueiros brancos.
"Foi lindo ser visto em nossos cavalos por tanta gente, liderando a marcha com orgulho e seriedade. Foi uma energia muito boa", disse Hook ao TAB sobre o protesto de junho em Compton. O evento reuniu centenas de caubóis e "cowgirls" das redondezas, além da prefeita Aja Brown, após protestos a galope parecidos serem organizados em Oakland (Califórnia) e Houston (Texas). "As crianças puderam nos ver como figuras positivas, lutando por nossos direitos de forma pacífica. Queremos ser como super-heróis da nossa comunidade."
O grupo é formado por cerca de dez amigos que se conheceram num programa de equitação para crianças e adolescentes na Richland Farms, uma área semi-rural de Compton. Criada em 1988, a organização sem fins lucrativos usa os cavalos para desviar os jovens das gangues — e serve de porto seguro longe dos problemas familiares, drogas e outros traumas. Quando a fundadora do programa, Mayisha Akbar, se aposentou alguns anos atrás, os ex-alunos tomaram as rédeas do espaço, em 2018. "As ruas nos criaram, os cavalos nos salvaram" é o lema dos Compton Cowboys.
Hook, sobrinho de Akbar, lembra de como tinha vergonha de usar suas botas de caubói na escola. Tudo mudou quando descobriu que ser caubói poderia ser descolado demais: a marca de cerveja Guinness contratou a turma para um comercial em 2017. Na sequência, abriram uma conta no Instagram e passaram a se conectar com caubóis negros do país todo. Comerciais de tênis, roupas de grife e feno ajudaram a alavancar a marca.
"Decidimos nos transformar em algo cool, e o Instagram foi a principal ferramenta. Mostramos nossa cultura, nossos estilos, fotos super artísticas e vanguarda", explicou Hook ao TAB. Nos posts, os vaqueiros surgem com roupas tradicionais, como chapéu e botas clássicas, mas também de Air Jordans, calças Adidas, blusas Balenciaga e, muitas vezes, sem camisa e repletos de tatuagens. "Já vi caubóis brasileiros fazendo coisas diferentes, mas não nos conectamos ainda com nenhum grupo em específico. A gente nota semelhanças com os estilos em vários lugares. De certa maneira, é sempre um escape das dificuldades e efeitos negativos da vida."
Apagão racial no faroeste
Quem ajuda a contar este novo capítulo da região é o jornalista angeleno Walter Thompson-Hernández, que cresceu numa cidade vizinha e lembra que, quando criança, costumava cruzar nas ruas com os caubóis negros de Compton. A tradição vem desde os anos 1950, quando a população branca começou a deixar a cidade e abriu espaço para a chegada dos afro-americanos do sul e imigrantes do México, a maioria de comunidades rurais. Filho de uma mexicana e um afro-americano, Thompson-Hernández só conhecia dois tipos de caubóis: os brancos dos filmes de Clint Eastwood e comerciais de Marlboro, além dos vaqueiros que trabalhavam nos ranchos da vila de sua mãe em Jalisco.
Mas os negros fizeram parte da conquista do oeste americano no século 19, como escravos livres que se mudaram para trabalhar em novas terras ou como parte de uma cavalaria responsável por combater nativos-americanos, proteger parques nacionais e controlar incêndios. "Foi uma forma de apagão cultural racial que realmente funcionou para não incluir as experiências de homens e mulheres negras da fundação do oeste americano", disse Thompson-Hernández por telefone, explicando que um em cada quatro caubóis era negro na época. "É um número expressivo. E não aprendemos isso na escola. É uma questão de quem controla a narrativa", observa.
Já adulto e trabalhando no New York Times, ele encontrou a nova turma no Instagram e passou um ano com eles para escrever o livro "The Compton Cowboys: The New Generation of Cowboys in America's Urban Heartland" (a nova geração de caubóis no centro urbano da América, ed. William Morrow), lançado em abril. "Assim como os caubóis negros que perambulavam pela fronteira no século 19, os caubóis de Compton sabem que têm melhor chance de sobreviver a cavalo do que a pé", diz o jornalista. "A polícia considera um homem negro a cavalo muito menos perigoso que um andando a pé."
Além da história de Hook, que passa maus bocados para conseguir levantar dinheiro para a organização, aprendemos no livro sobre Charles Harris — um dos caubóis mais habilidosos do rancho, mas que enfrenta diversos obstáculos para realizar o sonho de ser o primeiro afro-americano a disputar a categoria salto nas Olimpíadas. Também conhecemos Keiara Wade, única "cowgirl" do grupo, que começou a competir em rodeios aos 13 anos.
Caubóis contra a pandemia
Hoje, o programa juvenil dos Compton Cowboys conta com uma dúzia de estudantes de oito a 18 anos. Eles têm aulas algumas vezes por semana, depois da escola, onde aprendem a andar de cavalo, a cuidar dos animais e do rancho. Quem mostra interesse e habilidades, compete em rodeios e outros eventos.
Compton deixou de ser campo de batalha de gangues, mas ainda sofre com falta de recursos para saúde e educação: em 2005, pior ano de violência, foram registrados 72 assassinatos, contra 22 em 2018. "Nossa comunidade está bem melhor agora", lembra Hook. "Os jovens de hoje não têm os mesmos problemas pesados que a gente enfrentava, com gangues, drogas e problemas familiares. Eu e meus amigos éramos um pouco barra pesada."
Com a pandemia, as aulas foram paralisadas, mas algo quase mágico aconteceu. Com a possibilidade de fechamento do espaço, doações começaram a surgir como nunca antes. "Há muita manutenção a ser feita no rancho e conseguimos novos patrocinadores e doadores", disse Hook. O rancho possui 12 cavalos de raças diferentes. Alguns foram doados, outros foram resgatados ou comprados em leilão. "É uma coisa boa para ensinar às crianças. São raças, cores e tamanhos diferentes."
Sem aulas, Hook e seus amigos costumam passear de cavalo pelo bairro para crianças e alunos terem uma chance de se distraírem. "A garotada sente muita falta dos animais. É algo terapêutico para elas. E eu sinto falta delas", conta o caubói. E os cavalos, também sentem? "Parece que não! Se estão bem alimentados, os cavalos passam muito bem, obrigado."
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