'Branquitude não se compromete com luta antirracista', diz Tiganá Santana
O compositor Tiganá Santana, 38 anos, seria diplomata se não fosse a paixão pela música. Sua mãe, Arany Santana, sonhava que o filho pudesse entrar para o Itamaraty. Negro, ele desconstruiria ali o racismo enraizado na história do país que é "o grande paraíso do segregacionismo", como afirma o cantor.
Na família de fundadores do Movimento Negro da Bahia e dirigentes do bloco afro Ilê Aiyê, Tiganá encontrou, aos 14 anos, outra trincheira na luta antirracista: a musicalidade.
Considerado o primeiro compositor brasileiro a gravar um disco nos idiomas africanos quicongo, quimbundo, wolof e mandinka ("Maçalê", de 2009). Tiganá conecta música e filosofia em suas canções. Com dois novos álbuns recém-lançados - "Vida-Código", em fevereiro, e "Milagres", de julho — em que faz uma revisita a "Milagre dos Peixes", de Milton Nascimento, censurado pela ditadura militar em 1973 —, o compositor também se debruça sobre os escritos do congolês Bunseki Fu-Kiau, num estudo sobre os sentidos das palavras e as suas traduções.
Crítico à "hegemonia branca euro-ocidental" da filosofia no Brasil, área em que é doutor pela USP com a tese "A cosmologia africana dos Bantu-Kongo por Bunseki Fu-Kiau", de 2019, Tiganá Santana conversa com TAB sobre música como uma "forma-conteúdo" convergindo ancestralidade, pertencimento e identidade.
TAB: Quando veio a sua percepção de que queria ser músico?
Tiganá Santana: A música, com sua força, apresentou-se a mim como a expressão mais genuína à qual eu poderia servir. Ninguém me havia pedido ou me pensado na música. Mesmo eu me surpreendi quando me dei conta da sua centralidade em meu corpo. Foi exatamente por isto que a segui: pareceu ser, e ainda é, uma demanda da minha própria existência, um determinado modo de ocupar o mundo.
TAB: Como a relação familiar com o Movimento Negro da Bahia e com o Ilê Aiyê contribuíram na sua identidade artística e na construção de sua pesquisa?
TS: Na Bahia especificamente, o Movimento Negro Unificado inicia-se com o Ilê Aiyê, em novembro de 1974. Tudo isso está na minha formação. Meu fazer artístico, produção intelectual ou tudo o que venha a fazer, certamente, decorrem dessa fundação. As reivindicações políticas, sociais, históricas e epistemológicas, alicerçadas no fato de ser negro, configuram-se de modo estético sob influência da atuação do Ilê Aiyê: cantar, dançar, tocar, performar enquanto vetores de força para propor, gerar e questionar dimensões do que se chama comumente de realidade.
TAB: Sua música é atravessada por silêncios e calmaria. Mais do que estética, essa é uma característica que está intimamente ligada ao pensamento banto. O que está presente nessa construção de tempo?
TS: É uma imensa admiração pelo não visto, pelo que se segreda na vida, pela pausa que faz tudo ser catapultado ao movimento transformativo. Os silêncios e calmaria, conforme você destacou, são o que são, ao tempo em que são agentes dos movimentos que fazem viver. É importante se dar conta de que nem tudo está sob transparência racional, e que nem todos os buracos das paisagens podem ser tapados pelo conhecido.
TAB: Como se enxerga dentro da historiografia da música brasileira?
TS: Imagino trazer em mim tudo aquilo que absorvi de artistas que me antecederam. Tenho dois elos principais com a música: a escuta e a composição. O que me fez querer estar na arte foi a possibilidade de inventar com base em um inventário, como rezam as palavras do saudoso poeta Jorge Portugal em diálogo com a música de Roberto Mendes: "Primeiro, o inventário; depois, o inventar". Na música brasileira, sou um artista negro que se utiliza de tecnologias e dispositivos ancestrais para estabelecer conexões com os mais diversos pertencimentos culturais e as mais diversas temporalidades.
TAB: E essa prática também inclui um senso de criação - como sua parceria com Virgínia Rodrigues, por exemplo.
TS: Música, no Ocidente, é uma prática de pensamento. Ela advém e ruma a um coletivo complexo que podemos chamar de comunidade. Só posso fazer o que faço por uma inescapável aliança entre a singularidade criativa e o conjunto de referências provenientes de pessoas e comportamentos. Virgínia é uma dessas pessoas fundamentais, sem dúvida, ao lado de tantas outras.
TAB: O que a compreensão das línguas - e das suas variações - te ensinou e pode nos ensinar sobre o mundo?
TS: As línguas não são instrumentos que podemos dominar, até porque não se destacam da experiência, em muitos tempos e espaços. A ideia moderna de dominar objetos e natureza é uma tragédia. Estamos, aliás, há muito tempo, colhendo frutos podres desse antropocentrismo. As línguas africanas atravessam todas as pessoas aqui no Brasil e são o aprimoramento de certas frequências/vibrações a nos propor um determinado encontro com o mundo.
TAB: Você faz críticas à hegemonia eurocêntrica no estudo da filosofia no Brasil. Você acha que há uma tendência a descolonização do pensamento, a ouvir vozes menos vozes eurocêntricas?
TS: Modos de ver o mundo que foram subalternizados pelo racismo são profundos, complexos e podem trazer ao contemporâneo outras possibilidades de interpretação, de existir. Outras ciências, outras poéticas, outros seres podem nos enriquecer, no sentido absolutamente oposto ao neoliberal. A hegemonia branca euro-ocidental tem sido questionada irreversivelmente, mas isso ainda não implica, na prática, seu deslocamento. Só nos anuncia algo que devemos continuar a urdir, como estamos, há muito, colocando em pé.
TAB: O percussionista Naná Vasconcelos dizia que ele era um Brasil que o próprio Brasil desconhecia. É uma afirmação que joga luz no distanciamento do país em relação à musicalidade de matriz africana e nordestina. A gente continua sem conhecer esses Brasis?
TS: O Brasil é o grande paraíso do segregacionismo. O que se institucionaliza ou se coloca como modelo é sempre o que irá manter esse modus operandi estrutural. Determinadas expressões de cultura popular, indígena e negra, incluindo manifestações de musicalidade, que são também comportamentos culturais, desestabilizam aquilo que ocupa lugar de importância ao "Brazil que não conhece o Brasil", para mencionar os termos poéticos desse outro grande construtor, Aldir Blanc, que, assim como Jorge Portugal, deixou-nos este ano. É preciso um grande trabalho para que o Brasil desvele-se a si mesmo.
TAB: Recentemente, a gente acompanhou as discussões em torno da narrativa afrofuturista do filme de Beyoncé. Quais os reflexos da construção de narrativas negras por artistas norte-americanos na identidade afro-brasileira?
TS: Há muitas e muitos de nós, felizmente, tecendo saberes com abrangência. Não penso haver uma definição das narrativas negras no Brasil a partir das edições afro-americanas. Historicamente, identificam-se absorções, trocas e criações. A diáspora negra é uma complexa rede, gingando entre a autonomia e a interdependência -- porque é uma comunidade sempre expandida e movente, respondendo, orgânica e estrategicamente, às marés da vida e da morte.
TAB: Qual sua opinião sobre os desdobramentos da crítica da historiadora Lilia Schwarcz ao filme de Beyoncé? Lilia foi bastante criticada por fazer uma análise com referencial branco.
TS: Acho importante que se discuta, com profundidade, demora, rigor e complexidade, a branquitude, o seu lugar, o seu repouso e a capilaridade da sua atuação e alcance. Tenho reservas diante do pensamento de que a historiadora e outras pessoas incorporem, isoladamente, atitudes aterradoras e que o problema acabaria a partir da saída de cena dessas pessoas. Estamos a tratar aqui da real e mais abrangente questão deste país, que não se encerra em pessoas específicas, mas existe (e existirá sempre) como virtualidade incessante. Numa profunda e inescapável crítica à branquitude, evidentemente, os lugares de pessoas brancas não conhecidas ou conhecidas, bem como os apagamentos promovidos pela esquerda branca brasileira e por intelectuais progressistas brancos (já que nem se vislumbra um deslocamento possível de perspectiva por parte dos eixos assumidamente conservadores) deverão ser, no mínimo, fortemente desestabilizados.
TAB: Você acha que a gente importa pautas dos movimento negros norte-americanos?
TS: Não concordo com a ideia de que a luta e as formulações estético-sócio-político-epistemológicas negras brasileiras sejam meras emulações das estadunidenses. A Frente Negra Brasileira, por exemplo, foi referencial para a luta organizada afro-estadunidense em tempos posteriores à década de 1930. Como disse, anteriormente, houve trocas e algumas absorções importantes, claro, do Brasil em relação às proposições negras nos Estados Unidos. Não se podem, entretanto, anular as batalhas e relevantes construções que se fazem desde o início das presenças africana e afrodescendente no Brasil. Quilombos, terreiros, irmandades, aberturas de fendas promovidas pelas rodas de samba e de capoeira, toda a força das periferias, comunidades (as mais diversas), morros, as ladeiras íngremes habitadas por quem resguarda códigos e inteligência de resistência.
TAB: Por que, de certa medida, algumas dessas discussões, sejam culturais ou sociais, ganham maior relevância aqui no Brasil depois que acontecem nos EUA?
TS: As grandes mídias elegem os seus vendáveis assuntos de conveniência, os seus critérios de noticiabilidade. Deste modo, dada a repercussão internacional do caso George Floyd, que não se distingue dos inumeráveis casos que sempre estiveram nas narrativas, gritos, poéticas, políticas e reivindicações de pessoas e organizações negras, de várias partes do mundo, efetivamente comprometidas com as questões raciais --, pessoas brancas e veículos de comunicação espantaram-se, ao que parece, pela primeira vez, com o fato de a espinha dorsal ideológica da escravatura, em sua continuidade, matar pessoas negras (inclusive, de modo normativo e tecnocrata). Deram-se conta, com um imperdoável déficit de tempo e consciência, de que o racismo mata e elimina pessoas sistematicamente. A "banalidade do mal" atinge, todos os dias, em potência e ato, 56% da população brasileira, alicerçada em bases fenotípico-raciais. Eu diria que essa gente neófita no espanto, tal qual os aludidos meios de comunicação, é que credita aos Estados Unidos e às hegemonias o endosso dos acontecimentos que são dignos de nota. Acho, sinceramente, também, que quem mimetiza, de maneira grotesca, os referenciais de consumo (material e imaterial) estadunidenses é um certo grupo de endinheirados, no Brasil, que aspira a viver em sítios da Flórida, como Miami e Orlando, ou os entreguistas oficiais do governo federal que cedem a um alinhamento automático com os EUA não visto há muitas décadas pela antes respeitada diplomacia brasileira.
TAB: Recentemente, o governo federal excluiu o movimento negro do Conselho da Igualdade Racial. Vieram a público ainda falas do presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, que é negro, negando o racismo - inclusive chamando o movimento de "escória maldita". Quais são os impactos dessas ações e posicionamentos na luta antirracista no país?
TS: Nunca se poderia esperar desse grupo qualquer posicionamento que se aproxime de alguma justiça, decência ou dignidade. A luta antirracista não merece e nem teria mesmo essa gente por perto. Agora, é preciso que se saiba que a luta antirracista, no Brasil, é uma luta de pessoas negras e devida aos movimentos negros, em todo o seu múltiplo espectro. Qualquer conquista, nessa direção, deve-se a tais movimentos. A branquitude brasileira, tanto na esfera progressista quanto na esfera conservadora, é, na prática, quase totalmente descomprometida com o antirracismo. Além da política de cotas, aliás, não houve qualquer política efetiva de inclusão, até hoje. A luta por democracia, as lutas ecológicas, pela educação, pela saúde, devem todas ser perfiladas pela luta antirracista, e nomeadamente, antirracista (não estou a tratar aqui de antifascismo nem de qualquer outra causa), ou esse país permanecerá como um grande colaborador dos fracassos da experiência humana.
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