Mercado brasileiro precisa mudar para atender e lucrar com público negro
Cada vez que um caso de racismo ocorre no mercado brasileiro, o país fica ainda mais distante de fortalecer um segmento que movimenta anualmente R$ 1,7 trilhão no país. A cifra foi divulgada pela pesquisa "A Voz e a Vez - Diversidade no Mercado de Consumo e Empreendedorismo", encomendado ao Instituto Locomotiva, no final de 2018.
A percepção de que o mercado ainda não está totalmente preparado para receber o público negro estimulou o carioca Carlos Humberto Silva a criar, há três anos, a startup Diáspora.Black. Atualmente, ela possui uma base de quatro mil integrantes conectados à rede, presente em mais de 100 cidades em 18 países, como Uruguai, Argentina, Colômbia, Estados Unidos, Portugal, Itália, Inglaterra, Guiné Bissau, Cabo Verde, Moçambique, Angola e Tanzânia.
A inspiração de um negócio lucrativo, pautado por um propósito consciente e voltado para suprir as lacunas deixadas pelo racismo será tema da palestra que Carlos dará no Festival Path, apresentado pelo TAB em 2019. O principal evento de inovação e criatividade do Brasil ocorre nos dias 1 e 2 de junho, em São Paulo.
Por ser um problema de natureza estrutural de várias sociedades, o racismo burla o nosso consciente e pode ocorrer a qualquer momento, nos mais diversos ambientes comerciais: de restaurantes a companhias aéreas, redes de supermercados e hotelaria. Na era das redes sociais, casos de racismo já não passam despercebidos.
Foi o que constatou, por exemplo, a rede de cafés Starbucks, que teve de fechar no ano passado as portas de 8 mil lojas, na Filadélfia (EUA), para dar um treinamento contra discriminação racial a cerca de 175 mil funcionários, após um episódio de preconceito viralizar na web.
Um dos serviços oferecidos pela plataforma a estabelecimentos como pousadas e hotéis é um treinamento específico para atender viajantes negros de maneira qualificada e igualitária. "Estamos falando de um problema que é cognitivo. As pessoas precisam primeiro se dar conta da existência para depois então lidar com o racismo na sociedade e perceber que ele se reproduz em todas as nossas relações: desde o campo afetivo, acadêmico e também no comercial", explica Carlos.
De acordo com ele, após a percepção de que o racismo pode estar presente em determinado serviço, existem maneiras de combatê-lo, preventivamente, sem, que o treinamento recorra à militância. "No treinamento voltado à prática do turismo, trabalhamos para reconhecer o perfil desse consumidor, que tem especificidades e que precisa também de um serviço de qualidade. Treinamos o setor hoteleiro a perceber a existência do problema, a lidar com o problema e ensinamos como combater estereótipos e pensamentos inconscientes, capacitando as equipes para receber, de maneira qualificada, o hóspede negro", detalha o CEO.
Um negócio que vai além do "exotismo"
Um dos diferenciais da plataforma é oferecer ao mercado produtos e serviços que vão além daqueles já bem conhecidos da maioria do público, seja negro ou não, já familiarizado com iniciativas nos segmentos de gastronomia, cosméticos, beleza e moda afro - uma das justificativas para este cenário é também a ausência de crédito e estímulo a outros segmentos do chamado black money.
Diferentemente da maioria dos empreendedores negros que ainda encontram muitas limitações para se lançar ao mercado, entre elas a visão exótica da cultura de raiz africana, Carlos investiu em uma plataforma focada em turismo consciente e lazer, com uma rede global que conecta viajantes e anfitriões interessados em valorizar, fortalecer e vivenciar a cultura negra por meio de roteiros turísticos, hospedagens e experiências culturais.
Os serviços são abertos a negros e demais pessoas interessadas na oferta de acomodações compartilhadas e em conhecer a riqueza, história e cultura de raízes africanas, em experiências turísticas imersivas, como roteiros guiados em locais de memória e cultura negra. Há passeios por locais como o parque memorial do Quilombo dos Palmares, em Alagoas; um percurso afro-religioso pelas principais casas de terreiro da Bahia; e uma visita à região que concentra o maior número de comunidades remanescentes de quilombos, em São Paulo.
Qual a cor da classe C?
Não há como lidar, de forma definitiva, com as consequências da desigualdade social no Brasil, sem resolver a questão da desigualdade de oportunidades. É o que defende Renato Meirelles, pesquisador e presidente do Instituto Locomotiva.
Coautor de "Um país chamado favela" (2014), uma radiografia das favelas brasileiras, Meirelles defende que a questão racial é um grande limitador para que a chamada meritocracia exista de fato, no país. Ele afirma que, enquanto negros não estiverem ocupando espaços de poder, em diferentes esferas, a questão do racismo não será superada.
Da mesma forma, é preciso que esse grupo se veja representado em produtos culturais, como novelas, filmes e na publicidade.
"Quando alguns empresários me perguntam como conquistar esse mercado de R$ 1,7 trilhão, eu respondo: contrate um negro. Isso não tem a ver com as intenções do profissional, que podem até ser as melhores, mas com a sua vivência, com a sua realidade", afirma.
O pesquisador sugere que o desafio de decodificar esses números é também um exercício de empatia, de se colocar no lugar do outro. "É não se calar em um país onde 70% da população declaram já ter visto um caso de discriminação racial, mas apenas 9% dos brancos assumem já ter tomado uma atitude racista uma vez na vida", pontua.
Além das barreiras do racismo e da representatividade, o empreendedor negro encontra outro obstáculo: a escassez de linhas de crédito. Segundo um estudo elaborado pelo grupo Itaú Unibanco, não faz parte da realidade desse grupo o relacionamento com instituições financeiras, que é praticamente nulo.
Entre os motivos estão o desconhecimento, a falta de educação financeira ou mesmo falta de dinheiro para oferecer garantias. Ainda segundo o estudo, outras dificuldades que têm raízes mais profundas e particulares a esse grupo são a desvalorização de seu produto por questão de raça e gênero; a percepção de uma maior burocracia para conseguir uma linha de crédito quando comparado com uma pessoa branca nas mesmas condições e o olhar da comunidade e familiares que não enxergam empreendedorismo como trabalho - um fator relacionado com a baixa autoestima.
Ausência de dados oficiais prejudica o setor
Um dos fatores determinantes para o desenvolvimento de políticas públicas, concessão de investimento e iniciativas de crédito de fomento a este mercado está na ausência de informações. Não há um número preciso levantado pelas instituições e órgãos oficiais sobre os empreendedores negros no Brasil. Os dados sobre esse grupo, ainda hoje, não são mensurados da forma ideal, com o devido recorte racial.
Isso representa uma grande lacuna, segundo o analista sócio econômico do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), Jefferson Mariano. Ele explica que, até o censo demográfico de 2010, a variável raça e cor estava no questionário básico, que é aplicado a todos os domicílios, na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). Esses números são cruzados pelos analistas com variáveis sócio econômicas e de mercado de trabalho, para se chegar ao número de empreendedores negros.
Esse levantamento é importante para o desenvolvimento de programas do governo que vão da inserção do negro no mercado de trabalho até projetos de empreendedorismo voltados a esse grupo.
Mas com a sinalização, pelo atual governo do Brasil, de algumas mudanças na metodologia de coleta de dados do censo demográfico do IBGE, excluindo o fator raça do questionário, o trabalho de mapeamento poderá sofrer um retrocesso. "Se esse dado for retirado do questionário básico, como já foi sugerido, perderemos essa dimensão [de empreendedores negros]. E perderemos em termos de qualidade também, se a mostra for reduzida", justifica.
Além de iniciativas nos setores público e privado, como linhas crédito, programas de qualificação e redes de apoio, a chave para o sucesso do empreendedorismo negro precisa passar por uma descolonização do pensamento e uma lógica de atuação em que o negócio caminhará de mãos dadas com o ativismo e a militância. "A militância ainda é fundamental", destaca Adriana Barbosa da Feira Preta. Mas para ela, os negros não poderão estar sozinhos nessa luta. "Temos de ser ativistas, mas não dá para falarmos só para nós mesmos. A gente precisa trazer os não negros para serem nossos aliados nessa causa. Se um grupo de mais de 50% da população está com dificuldade para se desenvolver e consolidar no mercado, então esse é um problema de toda a sociedade, não apenas dos negros".
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