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Marina: 'Brasil não deveria ser problema, e sim solução para meio ambiente'

Marina Silva - Lucas Lima/UOL/Folhapress
Marina Silva Imagem: Lucas Lima/UOL/Folhapress

Luiza Pollo

Colaboração para o TAB

28/11/2020 04h01

Vivemos uma crise civilizatória sem precedentes, que ameaça o planeta e a espécie humana. Foi com essa ideia que a ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva abriu sua palestra no Festival Path Digital nesta sexta (27).

Indicadores ambientais, sanitários, políticos e sociais, que refletem nossos valores, mostram que a mentalidade da sociedade precisa mudar do "ter" para o "ser", defendeu Marina. Por essa lógica, enquanto nossa felicidade for baseada em consumo, continuaremos extraindo recursos naturais e ampliando desigualdades, até a extinção completa. Se passarmos a valorizar mais o "ser", reduzimos o campo de disputas — o que é positivo se soma, e há espaço para crescimento.

Após a palestra, Marina falou com exclusividade ao TAB sobre a pandemia do novo coronavírus, as políticas ambientais do governo Bolsonaro, povos originários e mais. Confira a entrevista:

TAB: A pandemia mudou de alguma maneira nossa relação com o meio ambiente? A forma como a gente pensa em espaços livres, em como o ecossistema está conectado?

Marina Silva: Existe, sim, uma percepção dessa comoção para muitas pessoas no mundo todo. Mas, por outro lado, ela revelou também algo muito complicado, que é essa capacidade que as pessoas têm de criar mecanismos de negação da realidade. Uma coisa é você negar algo que ainda vai acontecer, em um futuro mais ou menos distante. Outra coisa é você negar a realidade de algo que pode estar à espreita, na maçaneta da porta da sua casa, em um amigo que você encontrou que pode estar assintomático. É muito assustador, e mais assustador quando pessoas, com certeza sem conhecimento e noção da gravidade do problema, fazem um discurso político desprovido de qualquer suporte ético, que estimula as pessoas a embarcarem nessa loucura. Quando essa visão está dentro do governo, de grandes empresas, de meios de comunicação com potencial de influência, isso é deletério. O que a gente vê hoje aqui no Brasil e nos EUA são as consequências de vivermos, em que pese a ciência, em que pese a imprensa ter feito todo um trabalho, eles conseguiram ter suporte gravitacional para agravar os problemas em lugar de resolvê-los ou ajudar a diminuir as consequências.

Marina Silva na palestra 'A crise civilizatória e os desafios do desenvolvimento sustentável' - Festival Path/Reprodução - Festival Path/Reprodução
Marina Silva na palestra 'A crise civilizatória e os desafios do desenvolvimento sustentável'
Imagem: Festival Path/Reprodução

TAB: Na palestra, a senhora afirmou que já temos soluções técnicas para sair de uma crise civilizatória, mas que ainda falta uma decisão ética para aplicá-las. O que a senhora acha que o governo e, mais especificamente, o ministro do meio ambiente deveriam fazer em 2021?

MS: Bem, o que ele deveria ter feito desde o início. Em primeiro lugar, manter as coisas que estavam dando certo, como o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento, que reduziu o desmatamento em 83% por quase uma década; as medidas de proteção das áreas protegidas, onde o Brasil foi responsável, do ano de 2003 a 2008, por 74% de todas as áreas protegidas que foram criadas no mundo. E não ser aquele que desmontou a governança ambiental, não ser aquele que foi o responsável em 2019 por um terço das florestas vivas que foram destruídas no mundo. Ele deveria fazer exatamente aquilo que qualquer ministro do meio ambiente que não é um anti-ambientalista tentou fazer, e alguns deles até em algumas agendas fizeram. Essa é uma luta de políticas de longo prazo. É a primeira vez que temos um governo que entrou com uma agenda e um ministro para operar a desconstrução do que já tinha sido construído, para impedir outras políticas que possam dar certo e para criar políticas que vão, digamos assim, na corrente da destruição. O governo fez o Plano Safra para 2020 e 2021 onde, dos R$ 230 bilhões para a agricultura, só 1% vai para a agricultura de baixo carbono. Nós precisamos fazer o dever de casa por um imperativo ambiental e ético, mas também econômico, social. Os Estados Unidos, junto com a União Europeia, o Japão e a China, já disseram que até 2050, 2070 vão fazer seu dever de casa. Se o Brasil não se ajusta, nós vamos sofrer gravíssimas consequências do ponto de vista econômico, dos investimentos. O Brasil está ficando para trás de qualquer agenda que nós já fomos protagonistas. Nós não éramos para ser um problema. Nós éramos para ser um lugar onde as pessoas iriam beber as soluções. Você é consumidor japonês, europeu, asiátIco, e você quer adquirir alimentos de base sustentável, grãos de base sustentável? O endereço deveria ser aqui no Brasil.

TAB: A senhora vê com esperança as novas gerações entrando na política, considerando que elas levam o meio ambiente como uma de suas principais causas?

MS: Com certeza é uma grande esperança os que entram na política para dar contribuição para esse novo paradigma de como daqui para frente nós vamos integrar economia e ecologia, ética e política — aquilo que é necessário ser feito para que a gente seja ao mesmo tempo economicamente próspero, socialmente justo, ambientalmente sustentável, culturalmente diverso e politicamente democrático. Esse é o desafio desse século. Agora, a sustentabilidade não é apenas uma maneira de fazer, é uma maneira de ser. E isso se traduz em leis, se traduz em novas tecnologias, se traduz em novas práticas, mas precisará sobretudo traduzir também a nossa forma de ser feliz. Hoje nós somos felizes baseados no ideal do ter. Só que nós somos mais de 7 bilhões de pessoas com capacidade infinita de desejar, e desejando ter coisas. Ora, se o planeta me limita, isso significa que para ser felizes nós vamos precisar fazer um deslocamento do ideal do ter para o ideal do ser. Se há limites para ter, não há limites para ser. Quando eu estou na lógica do ter, estou disputando recursos; quando entro na lógica do ser, estou desenvolvendo habilidades, capacidades. E isso é completamente diferente.

TAB: E em que ponto dessa equação nós estamos como sociedade, no Brasil?

MS: Nós temos que ver duas coisas como sociedade. Primeiro uma sociedade em que todos os indicadores de pesquisa mostram uma grande visibilidade para a questão ambiental. Todas as pesquisas mostram que 80%, 90% das pessoas querem preservar a Amazônia, querem preservar o Cerrado, querem preservar o Pantanal, querem preservar a Mata Atlântica. Então há uma possibilidade. Tem um terreno fértil. Por outro lado, há um grande esforço para que a sensibilidade possa ser traduzida em ação prática. E ação prática pode ser sua, individualmente. Se você quer vir a Amazônia preservada e você acaba escolhendo para fazer as leis aqueles que querem fazer titularização de terras que foram griladas na floresta, há um distanciamento entre essa sensibilidade e a efetividade. Se você quer que a gente possa reduzir os vetores que levam as desigualdades sociais e a destruição da natureza, você tem que traduzir isso quando você vai adquirir um produto para levar para a sua casa, [e escolher] aqueles que sejam compatíveis com esse objetivo. A gente viu agora o governo dizendo que iria constranger os países que importam madeira extraída de forma ilegal, quando algo em torno de 86% dessa madeira é consumida aqui no Brasil. Se todos os consumidores de madeira começarem a colocar como requerimento que não usarão mais madeira de destruição de terra indígena, destruição de unidades de conservação, que não tenha certificação, isso cria o movimento entre sensibilidade e efetividade. Não podemos dizer que as pessoas de modo geral não estão se importando. Estão se importando, sim. Agora, infelizmente o que nós temos é um governo que faz um processo de desconstrução em todos os níveis — da saúde pública ao meio ambiente, do meio ambiente aos direitos humanos, dos direitos humanos a uma política externa que esteja integrada à direção para aquela que o mundo está se movendo hoje.

TAB: A senhora vê nas eleições dos EUA, que recolocam o país no Acordo de Paris, ou em algum outro movimento no mundo, uma mudança global nessa direção?

MS: Sim. A resposta que o povo norte-americano deu ao negacionismo trumpista é algo que sinaliza uma esperança de outros caminhos nessa agenda de mudanças climáticas — e que já estão delineados desde a campanha. Em relação ao multilateralismo, que é uma agenda fundamental inclusive para os graves problemas das mudanças climáticas, e as eleições municipais aqui no Brasil também, com a derrota do presidente Bolsonaro. Porque não pode — a destruição que temos na Amazônia, as queimadas, o que aconteceu com o Pantanal, o que está acontecendo em relação à pandemia, que o governo tratou como uma gripezinha e disse que todo mundo iria morrer. Mas o bom senso sinaliza uma vitória. Porque, como diz o Gilberto Gil, em muitas coisas o povo sabe o que quer, mas também quer o que não sabe.

TAB: A senhora enxerga espaço para a incitação de um pensamento sustentabilista, como a senhora mesma definiu, entre as lideranças evangélicas?

MS: Tem muita igrejas que fazem esse debate, mas existem aqueles também que têm uma visão negacionista, aqui, nos Estados Unidos e em vários lugares. Inclusive parte de um princípio muito equivocado ao olhar só para o Gênesis 1:28 ["E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra"], sem fazer a ligação com [a ideia que] o domínio de Deus é um domínio amoroso, respeitoso e cuidadoso. Não é o domínio da lógica de subjugar nem o outro ser humano nem a criação. E sem considerar Gênesis 2, que diz que Deus colocou o homem no jardim para cultivar e guardar. A palavra guardar. Eu estou dialogando com a cosmovisão judaico-cristã, no meu caso porque eu também sou cristã-evangélica. Nem todos os evangélicos têm uma visão de simplesmente achar que é dominar de qualquer jeito. Agora, independente da fé, que precisa ser coerente entre amar o criador e respeitar a criação, nós temos também a ciência, e estamos comprometendo a capacidade de suporte do planeta. Não vejo incompatibilidade entre o que a ciência diz e aquilo que desde sempre a cosmovisão da fé a qual eu professo tem dito.

TAB: Na sua opinião, a ciência tem tido sensibilidade ao olhar para povos originários, minorias? Vimos por exemplo a dificuldade em entender as barreiras no uso de máscaras.

MS: [Os cientistas] estão aprendendo rápido em uma situação de tensão e de muito sacrifício pessoal. Infelizmente quem não leva os benefícios da ciência ao encontro das populações indígenas são os governos. Não posso exigir que o cientista vá fazer ele o trabalho. Ele disponibiliza [o conhecimento] para que os responsáveis por políticas públicas levem para as populações tradicionais. O desastre não está sendo maior entre os indígenas porque os próprios indígenas criaram protocolos, formas de organização, sistemas de alerta, meios de solidariedade, em parceria com instituições de pesquisa, com ciência, para poder se proteger diante da atitude do governo em deixá-los praticamente entregues à própria sorte. E aí teve um papel fundamental: a deputada Joenia Wapichana (Rede-RR) e a Frente Parlamentar Indígena, que tem funcionado como um parlamento indígena, e toda a ação que vem sendo feita pela mídia, no sentido de colocar às claras o que está acontecendo em relação às populações tradicionais. Mesmo assim, em função da falta de se criar uma espécie de cinturão de proteção, os prejuízos são enormes de vida e de sofrimento para essas populações.