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Michel Alcoforado

'Black is King', de Beyoncé, é mais que um filme. É um mito de origem

Beyoncé em fotografia de "Black is King" - Divulgação
Beyoncé em fotografia de "Black is King" Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

07/08/2020 04h01

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"Cala a boca já morreu! Quem manda na minha boca sou eu!"

Foi assim que a ministra Carmem Lúcia finalizou seu voto contra a necessidade de biógrafos terem autorização prévia para publicarem seus livros, em 2015. Desde então, está garantida a liberdade de falar o que se quer, quando se quer e como se quer.

Bem, nem sempre.

Semana passada, defendi aqui o direito do youtuber Felipe Neto criticar o governo sem medo das hordas bolsonaristas. Hoje, volto a lembrar que pau que bate em Chico precisa bater em Francisco. Lilia Schwarcz, historiadora e antropóloga, tem o direito de criticar Beyoncé, mesmo que nos irrite.

No último domingo (2), a pesquisadora publicou um artigo na Folha de S.Paulo analisando o filme lançado por Beyoncé. O álbum visual foi escrito, produzido e dirigido pela artista. Seguindo a mesma toada dos últimos trabalhos, o longa-metragem é um manifesto de exaltação à ancestralidade africana para um público que ainda sofre com o racismo. Lilia viu problemas ali.

O artigo escrito no ritmo da comunicação digital do século 21 peca pela qualidade do texto e das ideias. É ruim e atropelado. As citações vão de "Hamlet" a Simba. Sem deixar de lado Carlos Drummond de Andrade. Fala-se de traição, de genocídio negro, de elegia à procura, da Dinamarca, do período vitoriano, para enfim chegar à África essencial. Tudo sem qualquer costura. É um balaio de frases vazias, ideias fora do lugar, citações exageradas que mais provam que autora entende mais de livros do que filmes.

No entanto, sou contra o cancelamento e as agressões que sofreu. Lilia foi acusada de racista, de ser um exemplo nítido da opressão da branquitude e do retorno recalcado da Casa Grande num mundo onde muitos acreditam que o direito de expressão está relacionado à posição social que se ocupa. Isto é, só estão autorizados a falar aqueles que o fazem a partir do próprio lugar de fala.

Apenas parem.

Como negro e antropólogo (se for útil, vale lembrar que nesse caso tenho duplo lugar de fala), acredito que todos têm liberdade de expor, como querem, o que pensam sobre qualquer coisa. Da Anitta ao Hegel, passando pelo filme de Beyoncé.

O lugar de fala, por si só, não garante a ninguém mais entendimento sobre uma causa (vide Sérgio Camargo, atual presidente da Fundação Palmares) e a categoria não pode ser usada como um latifúndio (Leiam Jones Manoel!) Ao contrário, deve ser um artifício sempre cunhado para tornar o debate contemporâneo ainda mais plural, diverso e rico. E, subverter assim, as relações de poder no campo de conhecimento que tendem a excluir os marginalizados.

O lugar de fala precisa ser uma arma para incluir. Um artifício retórico capaz de colocar mais gente no debate com capitais intelectuais, sociais, culturais diferentes. Com ou sem diploma, com ou sem dinheiro, com ou sem sobrenome e com ou sem melanina. Como numa grande ciranda na qual ninguém pode largar a mão de ninguém — como gostam alguns.

O fato de discordarmos da antropóloga não nos dá o direito de cancelá-la. Biografias não podem ser engolidas por um tsunami de tuítes dispostos a transformar longas trajetórias pessoais em única frase. Fulano é isso ou aquilo. Ponto.

Os indivíduos são plurais e seus pensamentos têm múltiplas camadas. Até mesmo quando erram. Lilia é a prova de que uma carreira acadêmica pode coexistir com o diálogo profícuo com um público amplo. Sempre foi uma intelectual antirracista e preocupada com a pluralidade do debate, desde quando isso não era moda. É uma aliada. Não nos esqueçamos.

Sua tese de doutorado, "O Espetáculo das Raças", é uma das primeiras pesquisas a revelar o caráter racista do pensamento hegemônico das elites desde a fundação das primeiras universidades brasileiras. Além disso, ela é sócia da Companhia da Letras, maior grupo editorial do país, que há tempos publica autores negros. Seja nas obras em que organiza ou no lançamento de novos livros.

É óbvio que o fazem pela qualidade do trabalho dos autores e por interesse comercial. É do jogo. Porém, tal fato não diminui sua importância, dado que muitos intelectuais negros só conseguem espaço em pequenas editoras de nicho.

Defendo aqui que os erros de Lilia são dela, mas também da própria disciplina, a Antropologia, que, às vezes por feitiçaria, deixa muita gente cega diante da realidade.

No começo dos anos 2000, Lilia foi contra a política de cotas para as minorias nas universidades — fato lembrado por muitos essa semana, durante a chuva de ataques. É verdade.

Porém, ela o fez com os pés fincados na visão antirracista que a disciplina tinha naquele momento. Até os erros precisam ser pensados dentro de contexto.

Nos anos 2000, havia um grupo de antropólogos e intelectuais (entre eles Caetano Veloso, Yvonne Maggie, Peter Fry, Mariza Peirano, Lilia e outros) especializados nas questões raciais e no pensamento social brasileiro. Juntos, acreditavam que a inclusão da temática racial na legislação brasileira iria criar divisões perigosas no "caldeirão" do Brasil. Uma sociedade do cadinho: um cadinho preta, um cadinho índia, um cadinho branca.

Eles erraram, acreditando na concepção que tinham sobre o debate racial daquele período. Lilia já veio a público e reconheceu o equívoco.

A fatídica coluna expõe ainda um outro cacoete velho, demodé, da Antropologia que a pesquisadora carrega consigo. Em uma das poucas partes inteligíveis, a antropóloga acusa Beyoncé de recuperar uma África essencial e idílica. É quando convida Beyoncé da sala de jantar para "história começar outra vez, e em outro sentido". Desastre.

No final dos anos de 1980, vários antropólogos se dedicaram a pesquisar terreiros, religiões afro e comunidades quilombolas. Estavam interessados no binômio tradição/modernidade. Observou-se que havia nos terreiros, no movimento negro e em comunidades tradicionais a busca pela reprodução de um tempo perdido, pela idealização dos vínculos com uma África milenar, intocada e parada no tempo. Esse movimento era mal visto pelos pesquisadores. A antropóloga viu, no filme, mais um desses artefatos culturais que buscam reproduzir um continente parado no tempo.

No entanto, "Black is King" não deve ser visto como produto cultural ou adereço de pescoço. É muito mais do que isso.

Em um contexto de opressão ferrenha aos negros norte-americanos e num Brasil onde a fábula das três raças (brancos, negros, índios ergueram nosso arranjo cultural) já não diz mais nada, nem inclui mais ninguém, o álbum visual funciona como a refundação de um mito de origem.

Foi o que senti e ouvi de outros amigos negros quando vi o filme.

Isto é, uma narrativa simbólica capaz de explicar o mundo tal como ele é, conferir novas identidades aos grupos e refundar a maneira como um povo se vê e é visto.

Mitos não precisam ter conexão com a realidade ou agradar pesquisadores para existir. Eles precisam fazer sentido para o próprio grupo. Além disso, conferem narrativa a quem não sabe de onde a família veio. "Black is King" faz isso.

Não é por acaso que Beyoncé, durante o filme, usa as cores dos orixás, assume uma posição mítica e envia mensagens que reforçam a grandiosidade da ancestralidade africana, da força do povo preto e do compromisso que tem com a reinvenção da História.

Filmes são criticáveis. Mitos de origem, não. "Black is King" é um deles. Assim como a luta do quilombo dos Palmares é, a Revolta dos Malês é, a luta pelos direitos civis dos negros americanos é, Dr. Martin Luther King é e Beyoncé vem se transformando. É para ouvir, tentar entender e respeitar. Aqui começou a confusão.

Lilia errou. Já assumiu e pediu desculpas. Disse que a responsabilidade sobre o título e do subtítulo é da Folha de S.Paulo. Parece que estavam mais preocupados com os cliques do que com o conteúdo. Caso contrário, não teriam nem publicado o artigo.

Na próxima vez, peço que a pesquisadora tenha mais cuidado. Afinal, daqui um tempo, o que dirão os seus biógrafos?

Oxalá nos seja garantido o direito de falar até lá.