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Michel Alcoforado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Como Tieta do Agreste, Barbie volta cobrando que esqueçam seu passado

Ryan Gosling e Margot Robbie, protagonistas do filme "Barbie" - Warner Bros/Divulgação
Ryan Gosling e Margot Robbie, protagonistas do filme 'Barbie' Imagem: Warner Bros/Divulgação

Colunista do UOL

22/07/2023 04h00

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Grandes problemas podem sim ser resolvidos com pequenos atos ou ações. Afinal, quem poderia imaginar que as feministas ansiosas em correr com os lobos por aí, no meio do caminho, se misturariam ao bando de tresloucados de Damares Alves, a ex-ministra? O mandamento unificador da nação voltou com tudo: meninas vestem rosa e ponto. Aceitem.

A culpada pela apaziguamento dos ânimos é a boneca Barbie. Com mais de 60 anos de uma rotina de trabalho dura, a boneca sempre foi capaz de tirar o sono de pais ansiosos por realizar o sonho de consumo das filhas, das feministas tensas com os valores transmitidos às menores de idade, e de intelectuais revoltados com a opressão semiótica provocada pela loira, alta, magra, esguia e consumista. Pois Barbie voltou e voltou como Tieta do Agreste — cobrando de todos que esqueçam seu passado.

O retorno triunfal deve-se ao lançamento do filme de Greta Gerwig, diretora queridinha de Hollywood. Na história, Barbie percebe que não se encaixa nos padrões rígidos da Barbielândia e é obrigada a se mudar para a vida real, onde o mundo não é cor-de-rosa, as mulheres não usam salto alto 24 horas por dia e os Kens são tão idiotas quanto na ficção.

A ansiedade é tanta que a Mattel, dona da marca e fabricante da boneca, espera faturar mais de 1 bilhão de dólares este ano. As razões são fáceis de compreender. Deu match! Barbie precisa da gente tanto quanto a gente precisa dela. Para continuar a existir, a boneca precisa virar um duplo de si e nós precisamos dessas histórias para inventar quem somos.

Desde meados de 2015, os relatórios publicados pela Mattel apontavam uma queda vertiginosa nas vendas. As mães millennials (nascidas em 1980 e 1995) se recusavam a comprar o item para suas filhas com medo dos traumas, do sofrimento e das caras sessões de psicanálise a serem pagas para que jovens adultas se dessem conta do básico: gente é gente, boneco é boneco e ninguém jamais terá a cara e o corpinho da Barbie.

O tombo foi enorme. No final de 2014, as vendas caíram em torno de 21%. Quase 10 anos depois, o cenário seguia o mesmo. Ano passado, vendeu ainda menos.

Os mitos, para se manterem vivos, precisam ser constantemente atualizados para que se mantenham conectados ao centro nervoso de uma sociedade. Se os tempos mudam, eles precisam mudar também.

De 1959 até pouco tempo atrás, Barbie conseguiu se conectar ao espírito do tempo com invejável habilidade. Em 1961, arrumou o Ken quando o sonho das meninas da época era se apaixonar por alguém com cara de astro. Um ano depois, vestiu-se com a elegância de Jackie Kennedy quando o mundo admirava os novos moradores da Casa Branca. Em 1968, na onda do poder jovem, ganhou cílios longos, olhos azuis, roupas floridas e estampas psicodélicas. Nos 1970, virou hippie. Na década seguinte, yuppie. Dez anos depois, ganhou profissões. Foi médica, dentista, bombeira, DJ. Por pouco, não acabou como Loira do Tchan. Na virada do milênio, saía no seu carro rosa de computador e celular a tiracolo, antevendo a onipresença das invenciones do Vale do Silício.

O imbróglio chegou com o crescimento das ditas pautas identitárias: como se reinventar quando saiu de moda querer ser branca, loira, magra e rica? A Mattel até tentou, mas a história não colou. Apesar dos esforços da empresa de tentar incluir outros padrões de beleza, a mudança nunca teve verdade e cheirava a fraude. A metamorfose parecia ser só uma estratégia para ficar bem na cena contemporânea. A loira das antigas (agora com outros tamanhos, tons de pele e manequins) vestia uma carapuça modernosa para esconder os privilégios pelos quais lutara por anos e anos.

Além de treinados com o padrão caucasiano, eurocentrado do mundo das bonecas, os consumidores, sempre que se viam diante de uma variante, tinham dúvida se aquela era uma Barbie mesmo e se valia pagar uma fortuna pela bugiganga. Barbie era mais do que um nome, era uma cara e um estilo de vida nababesco. Como mudar e continuar sendo a mesma?

O dilema se resolverá por agora. O filme recém-lançado atualiza o mito com eficácia. A história consegue conectar o mundo rosa ao mundo real com maestria e faz com que acreditemos que a Barbie sempre foi legal, o inferno eram os outros. Ela está perdoada.

A narrativa está na moda. Segue na mesma toada o esforço do documentário de Xuxa, ao mostrar que teria sido perfeita, não fosse a temida diretora Marlene Mattos. Da Angélica a nos contar que, apesar da viagens de táxi, sempre foi a favor do prazer e do empoderamento feminino. Dos empresários brasileiros, preocupados com a desigualdade e a exploração imposta pelo sistema do qual são as estrelas. E dos racistas, a culparem o racismo estrutural quando mostram quem são.

Tá todo mundo perdoado, desde que se prove que se foi mais vítima do que as vítimas. E pode isso? Na pós-modernidade, vale tudo!

Fredric Jameson, crítico literário norte-americano, nos lembra que a pós-modernidade é marcada pela dissolução de fronteiras e divisões fundamentais do cotidiano. De uma hora para outra, ninguém sabem mais o que é passado, presente ou futuro, quem é vítima ou algoz, o que se pode ou não fazer. Também somos tomados por uma sensação de que tudo já foi criado e só resta copiar e misturar referências — sem qualquer lógica, apenas com o intuito de construir nossa própria singularidade.

São tempos nos quais as imagens valem mais do que qualquer conteúdo, os temas precisam ser chocantes o suficiente para capturar a atenção dos outros e o real é um caleidoscópio vivo, sempre a mudar, sem compromisso com a lógica.

Nesse contexto, a vida se transformou numa paródia sem humor, um pastiche barato. Nos conectamos com os outros e nos inventamos com a ajuda de imagens soltas, dancinhas inteligíveis, "trends", virais chocantes e filtros da moda sem qualquer compromisso com o tempo, com ideologias ou a realidade. A sanha alucinada pelo rosa Barbie é um reflexo desse movimento.

As feministas, os marmanjos de academia, os hipsters do MST, os "faria limers" e até mesmo o tradicional acarajé das baianas de Salvador viraram rosa fanáticos, "pink lovers". Quem critica não entendeu, quem cobra sentido também não. O apego pela cor em nada tem a ver com a defesa da submissão das mulheres ao rígidos padrões de patriarcado ou uma saudade dos tempos de infância; é só uma brincadeirinha besta mesmo. É só mais uma forma de chamar atenção, de copiar uma referência do filme, colar na própria identidade e aumentar o engajamento ou mostrar que sabe das novidades. Nada mais além disso.

São tempos duros. Cada vez mais, os humanos se satisfazem com a camada mais superficial da vida.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL