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Michel Alcoforado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Partiu? Como as elites de hoje cultivam o risco e a imagem de exploradores

O submergível OceanGate: mística da prontidão para a aventura foi incorporada ao ideal workaholic das elites - Divulgação/OceanGate
O submergível OceanGate: mística da prontidão para a aventura foi incorporada ao ideal workaholic das elites Imagem: Divulgação/OceanGate

Colunista do UOL

28/06/2023 04h01

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Tragédias têm força para descortinar verdades apagadas sob a névoa do cotidiano.

Nos últimos dias, a Guarda Costeira norte-americana, especialistas franceses e a guarda do Canadá se juntaram para salvar cinco ricaços perdidos nas profundezas do Oceano Atlântico. Foram mobilizados robôs de última geração, navios, aviões, helicópteros e o conhecimento dos maiores especialistas do planeta para encontrar os exploradores. As buscas custaram mais de R$ 30 milhões.

A expedição do submersível OceanGate tinha o objetivo de ver de perto os destroços do Titanic — o navio "inafundável" que virou um amontoado de aço e ferro, em maio de 1912, depois de se chocar com uma montanha de gelo. Mais de 1.500 pessoas morreram.

O espanto aumenta quando descobrimos que, à exceção do piloto, cada um dos passageiros pagou US$ 250 mil para entrar numa geringonça guiada com um joystick de videogame e descer 4.000 metros em direção ao fundo do mar. Assim como aconteceu com o transatlântico, a traquitana dos milionários também não conseguiu chegar a seu destino. Virou pó. Explodiu por não conseguir suportar o peso de 35 elefantes da pressão subaquática sobre si.

Mas, por que raios alguém se mete numa furada dessas por livre e espontânea vontade? Uma das saídas para entender a loucura é se debruçar sobre a forma como homens trilhardários se valem dos excessos do dinheiro para dizer quem são. Stockton Rush, Hamish Harding, Shahzada Dawood e seu filho, e o francês Paul-Henri Nargeolet, tripulantes da OceanGate, eram bons exemplos desse grupo.

As tradicionais narrativas do "self-made man", comum nas capas de revista dos anos 1990, ficaram para trás. Não interessa mais os ternos sisudos, a intensa rotina de mandos, gritos e ordens no escritório ou os encontros de trabalho até na hora do almoço. Agora, os homens de negócio querem ser conquistadores em todos os campos da vida. O sonho é ser aquilo que chamo de "conquistador bon vivant" — aquele que batalha para conquistar um padrão de vida exclusivo às elites e proporcionar conforto à família, mas que tem tempo para usufruir do dinheiro que tem.

Sem renunciar a nenhum campo da existência, os workaholics desistiram de ser os melhores apenas no trabalho para serem os melhores em todos os campos. Para isso, agem com pleno esforço para oferecer aos outros a ideia de que estão sempre em busca de uma versão melhor de si. É nessa onda que os ricaços entraram de cabeça nas maratonas mundo afora, são apaixonados pelas competições de IronMan, se metem a disputar partidinhas de luta com outros bilionários etc.

Boa parte dessas aventuras se apoiam numa prontidão para viver novas experiências. Ao contrário dos reles mortais, sempre preocupados com o novo sonho de consumo, os ricaços privilegiam o consumo de novas formas de viver. Como eles têm dinheiro para comprar qualquer coisa, apostam em viagens, cursos, vivências para mostrar aos não ricos que não se importam com coisas e deixar claro aos outros endinheirados como a própria vida é marcada por momentos únicos.

Nas minhas pesquisas com os ricos brasileiros, essa aptidão para novas experiências sempre aparecia junto de uma categoria nativa, o "Partiu?".

"Partiu?" é mais do que um convite à experiência, é uma arma a serviço da construção da distinção. Quando usada, os ricos buscam mapear a disponibilidade financeira e o quanto os impeditivos de tempo, os compromissos com a rotina, com o trabalho e com a família são capazes de brecar a liberdade de alguém. No manejo da diferença, ela serve como expressão de um modo de pensar que acredita que, quanto mais rico alguém é, menor é a distância entre o desejo e a realização.

As conversas se concentravam no dia a dia do grupo, até que o papo entrou na onda do "Partiu?" Partiu Londres no Carnaval? Partiu Paris no Natal? Partiu Trancoso no Réveillon? Partiu Bali nas férias? Partiu jantar no Fasano amanhã à noite? Partiu andar de barco no navio? Partiu quarta-feira em Angra, na ilha de Beltrano? Partiu pedir uma caixa de Veuve Clicquot? Partiu, partiu?

No caso das elites mundiais, o "Partiu?" é uma forma de colar os bilionários ao arquétipo do explorador. Os exploradores são aqueles dotados de doses extras de coragem, com grana para arriscar e suportar doses extras de risco, mas também são os que gostam de ostentar que foram os primeiros a "chegar lá". Chegar antes dos outros é uma estratégia antiga de diferenciação dos ricaços mundo afora.

Não é por acaso que, ainda hoje, os ricos tradicionais da Califórnia fazem questão de lembrar a todos o pioneirismo na ocupação da região, os inovadores do Vale do Silício não perdem tempo em marcar que foram os primeiros a ver grandes oportunidades, os quatrocentões de São Paulo, muito deles falidos, lembram com saudades dos tempos antes da invasão bárbara dos recém-chegados e, se tivessem sobrevivido, os viajantes da OceanGate estariam por aí a ostentar aonde foram e o que viram.

Saber operar a diferença em vida é fundamental também para ter um cuidado especial na hora de morrer. Os esforços milionários para encontrar os cinco tripulantes são fruto da capacidade delles de marcar que eram diferentes de gente comum. Sem titubear, decidiu-se não medir esforços para encontrá-los vivos.

Fica fácil entender (mas, não aceitar!) o porquê de as centenas de balsas lotadas de refugiados em busca de uma vida melhor na Europa não mobilizam um músculo da cara das elites mundiais.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL