Topo

Michel Alcoforado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

PL das Fake News: se não tiver limite, tecnologia vai virar mundo do avesso

Colunista do UOL

02/05/2023 04h01

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Corre pelos corredores do Congresso Nacional o PL das Fake News. Sob relatoria do deputado Orlando Silva (PC do B-SP), o projeto de lei trata da regulamentação das redes sociais, de sites de busca ou de aplicativos de mensagem. Caso seja aprovada por deputados e senadores, as big techs (Google, Facebook, Twitter e Telegram, entre outras) terão de cuidar da própria vida — e também revelar como cuidam e impactam a nossa.

Com os mesmo afinco com que eles defendem os lucros dos investidores e com a mesma força com que defendem mesas de pinball e redes de descanso nos escritórios corporativos, eles terão de se responsabilizar pelo conteúdo compartilhado nas redes, deixar claro como seus algoritmos impulsionam posts de ódio e assumir a moderação das informações postadas, curtidas e compartilhadas nos ambientes digitais.

Ao que tudo indica, o tio do zap viverá dias difíceis daqui para frente. Esse é o Brasil que queremos.

Pelo menos, foi o que me disse Laura Moraes, diretora de campanhas da Avaaz, numa conversa recente. A Avaaz, uma organização da sociedade civil, realizou uma pesquisa que mostrou que 78% do país é a favor da regulamentação das redes sociais. As razões são simples: três em cada quatro brasileiros veem, nos recentes episódios de violência nas escolas, o dedo das plataformas digitais na vida cotidiana.

Outro dado também chama atenção. Quanto mais próximos do debate público e do centro democrático, mais certos os cidadãos ficam de que as redes sociais perturbam a paz social e desestabilizam as relações entre nós e os outros.

Os seguidores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e os eleitores que votaram em nulo no último pleito estão mais tranquilos com os desdobramentos da ação dos algoritmos nos rumos de mundo. Eles observam a geringonça a trepidar com calma, paz e tranquilidade, e defendem que o melhor a fazer é deixar as coisas como estão. Com mamadeiras fálicas voando de um zap a outro, com notícias falsas inundando os celulares de gente de boa-fé e zumbis virando baluartes da política a cada eleição.

De um modo geral, a defesa sociedade brasileira pela regulamentação é um sinal claro de que entendemos que as redes sociais são mais do que meros canais de comunicação. Elas estão mais próximas dos estridentes megafones do que dos inofensivos telefones. Como bem apontou a antropóloga Leticia Cesarino em um livro recente, juntas, as plataformas digitais têm o poder de virar o mundo pelo avesso.

Os primeiros sinais desse movimento são visíveis nas arenas políticas. Se, desde os tempos de Cabral, boa parte dos políticos brasileiros transitam na tênue linha do tragicômico, agora, as cúpulas do Congresso de Niemeyer servem como lona ao circo. É enorme o número de parlamentares mais preocupados em fazer estripulias ao gosto da plateia do que fazer política pelo bem dos cidadãos.

Na última semana, caiu nas redes uma sessão no Senado Federal no qual Sílvio Almeida era o convidado principal. Em um determinado momento, sentado ao lado de Damares Alves (Republicanos-DF), o senador Eduardo Girão (Novo-CE) se levantou para entregar um presente ao ministro dos Direitos Humanos. Nas mãos, ele tinha uma réplica de um feto de 11 semanas. Estava acompanhado de uma assessora com dois celulares a filmar cada passo do político para posterior divulgação nas redes sociais — a estratégia era gerar a espetacularização desmedida do debate sobre o aborto.

Silvio Almeida se negou a participar da cena. Bateu na mesa, evocou seu direito de pai de uma menina ainda em gestação, pediu respeito e cobrou civilidade. Estava aberto a discutir e refletir sobre os pormenores da sua pasta desde que não se visse num esquete de humor. Ele queria fazer política, mas não entendeu que a política já está do avesso. Não é feita mais de dentro para fora, mas de fora para dentro.

Explico. Vivi dentro dos corredores do Senado por dois anos durante minha pesquisa de mestrado na Universidade de Brasília. Meu interesse era entender a centralidade da fala, dos discursos e da comunicação no fazer dos políticos brasileiros. Lá, descobri que, quando eleitos, os senadores tinham de trabalhar duro para conquistar reputação e respeito dentro da Casa para só depois, com algum reconhecimento dos pares, terem a chance de fazer valer suas opiniões e projetos.

Naquele tempo pré-redes sociais, era através da fala, dos discursos na tribuna, dos apartes no plenário, da troca de elogios, da participação ativa em comissões parlamentares que eles conquistavam prestígio, selavam acordos, conseguiam defender seus projetos e levar recursos para suas bases. Era o fazer da política.

A fala era a ponte para a construção de laços internos e trilha para agir politicamente dentro da Casa. Os políticos ouviam seus eleitores, mas precisavam seguir o rito, empurrando, negociando, lutando por espaço até verem seus projetos avançarem na burocracia estatal. Era só com reputação e conhecimento dos não ditos do Senado que os parlamentares conseguiam fazer valer seus pontos de vista e responder aos anseios dos seus eleitores.

As pautas tinham uma relação dialética entre a Casa e as ruas. Isto é, um projeto deixava de ser uma ideia e ganhava força de lei quando saía das bases, mas ia sendo costurado e negociados pelos políticos — hábeis na arte do aparar das arestas e na construção de pontes com os outros, com outras visões de mundo.

A política era feita com o apertar das mãos, com as conversas no cafezinho, pelos acordos dos bastidores, mas, sobretudo, por uma intensa negociação sobre os sentidos do que era dito e sobre o tinha força de virar lei. Nesse jogo, o trabalho dos políticos era o de debater, discutir e negociar até que se chegasse a um ponto comum capaz de abarcar a visão de mundo da sociedade.

Com a onipresença das redes sociais e a invenção do político youtuber, as arenas da política viraram do avesso. Elas deixaram de se pautar pela dialética entre as Casas e as ruas e, como se não bastasse, os projetos passaram a chegar ao Congresso já como verdades absolutas, sem espaço para a discussão. Essa virada é fruto do impacto das redes sociais, da valorização das curtidas em detrimento dos debates e da crença de que só tem eleitor quem tem seguidor.

O show eloquente de gente como Damares Alves nas comissões do Senado, os arroubos violentos de Eduardo Bolsonaro (PL-SP), o circo montado por Nikolas Ferreira (PL-MG) e o teatro tosco do senador Eduardo Girão com o feto de plástico são resultado do esfacelamento da política tal como a conhecemos. É o resultado da "algoritmização" da vida pública no qual o ódio gera mais engajamento do que os acordos, pois fala-se só com os iguais, dentro da mesma bolha e não há espaço para o contraditório.

Se a civilização ocidental nasceu com os homens fazendo política na pólis grega, discutindo os rumos da sociedade, resta saber o que será de nós sem esse pilar fundamental para a vida em sociedade.

Aliás, a gente já sabe. Só falta decidirmos se fazemos política e impomos alguns limites para a tecnologia; ou se deixaremos que ela nos vire do avesso.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL