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Michel Alcoforado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Luxo silencioso': como dizer que você é rico, sem dizer que você é rico

Kaia Gerber no desfile da Prada na Semana de Moda de Milão - Tiziana FABI / AFP
Kaia Gerber no desfile da Prada na Semana de Moda de Milão Imagem: Tiziana FABI / AFP

Colunista do UOL

28/05/2023 04h01

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"Devagar com a louça que eu conheço a moça. Devagar. Devagar."

É com um trecho sucesso de estreia de Elza Soares que acompanho o frisson dos sabichões com as recentes transformações no mundo da moda e a repentina surpresa com o comportamentos dos multimilionários mundo afora.

O desespero é tão grande que eles não cansam de inventar nomes para dar conta de explicar o básico. Semanas atrás, era tudo culpa do "quiet luxury" — o tal do luxo silencioso. Agora, estão agarrados ao "recession core", um jeito menos ostentatório no vestir, mais adequado aos tempos de vacas magras como são os nossos.

As duas expressões dão conta de uma virada no estilo das passarelas. De uma hora para outra, abandonou-se o uso de cores fortes, tons neons, fluorescentes como apregoava o "dopamine dressing" (outra baboseira repetida por aí). Assim como ficaram para trás os logos, o dourado, a maquiagem montada e o desejo por mostrar, por meio das coisas, o dinheiro que se tem.

De novo, os consumidores passaram a valorizar o pretinho básico, cortes clássicos em tecidos de boa qualidade, atemporais, com longa vida útil, sem qualquer do preço pago ou da quantidade infinita de parcelas no cartão crédito para sustentar o look.

Os especialistas apontam uma repentina consciência socioambiental dos milionários. Diante da recessão econômica prometida pelo mercado financeiro, do desespero com a pressão inflacionária sobre a vida cotidiana, do aumento vertiginoso das desigualdades sociais e da temida bancarrota ambiental, os endinheirados, como num passe de mágica, passariam a se preocupar com as contradições da realidade brasileira. Pera lá.

A moda é o império do efêmero. Quando saem às ruas para comprar uma blusinha, os indivíduos carregam dentro de si, um desejo contraditório. Ao mesmo tempo em que sonham em se vincular a um determinado grupo com a ajuda das compras, eles buscam, incessantemente, se diferenciar dos outros.

Esse impasse embala a efemeridade nas tendências de moda. Tudo muda o tempo todo. Os grupos sociais também se valem da moda para marcar o quanto são diferentes uns dos outros. Nos últimos anos, com a invasão de novos consumidores no cercadinho das marcas de luxos, os ricos tiveram de apostar em outros estilos para continuarem parecendo ricos. Afinal, eles morrem de medo de serem confundidos.

O acesso ao crédito, ao conhecimento sobre o que é o luxo feito pelos influenciadores, a profusão de cópias chinesas dos itens mais variados e, por fim, uma mistura das grifes com streetwear gerou uma confusão danada no "quem compra o quê" e no "quem é quem".

De súbito, os pobres e as camadas médias se jogaram de cabeças no mundo das marcas, com gana de comprar produtos de luxo (sejam eles falsos ou originais) com logos enormes para não deixarem dúvidas do que vestiam.

Em fuga de uma invasão bárbara, as elites econômicas migraram rapidamente para outras marcas. Com os armários abarrotados de bolsas com logos enormes, de um luxo a gritar quem é quem com megafone, passaram a dizer a criticar o mau gosto dos novos consumidores e apostar em outras grifes. O "quiet luxury" e o "recession core" são reflexos desse processo.

Apesar de ter um nome, o movimento não é novo e revela o modo da operação da diferença entre os ricaços. Diferentemente dos novos ricos, ansiosos por marcar logo de cara, com rapidez, as coisas compradas para gritarem a todos quem são, os bem-nascidos ostentam a própria diferença mais para os "de dentro" do que para os "de fora".

Presos às mansões, aos carros blindados, aos elevadores privativos, às escolas de elite e reuniões em restaurante exclusivos, os ricos tradicionais têm menos contato com indivíduos de outras classes sociais do que os emergentes. Desse modo, quando precisam operar a diferença, os quatrocentões brasileiros estão mais interessados em ser reconhecidos pelos seus do que pelos outros. E, por conta disso, se valem de objetos, conversas, assuntos e amizades só entendidas por quem nasceu e viveu nos mesmos círculos.

Ainda hoje acho graça quando alguém, na tentativa de valorizar os bons modos de um rico tradicional, exalta a simplicidade de um endinheirado.

A aparente simplicidade revela uma camada ainda mais perversa da opressão de classe. Ou o ricaço sabendo da estrangeirice do interlocutor nem se deu ao trabalho de ostentar seus hábitos de vida e bens de consumo. Ou ele ostentou marcas, amigos e viagens, e você não teve a capacidade de perceber o que estava em jogo porque faz parte de outro mundo. Nos dois casos, revelou-se que você pertence às altas rodas. É um luxo que sussurra para os "de fora", mas grita para quem precisa gritar.

É uma tolice acreditar que o "quiet luxury" e o "recession core" são novos ou revelam alguma preocupação social das elites.

Elisa Reis, socióloga com larga trajetória no estudo das desigualdades, ao comparar as elites de vários países emergentes, chegou a uma conclusão custosa. Ao mesmo tempo em que os milionários brasileiros reconhecem a pobreza e os problemas educacionais como entraves ao desenvolvimento do Brasil, eles colocam a solução no colo dos políticos e do Estado. Eles lavam as mãos para os problemas dos mundanos como recessão, crise, desigualdade, fome etc.

A recente preocupação dos ricaços com temas sociais não é bom samaritanismo. É estratégia de sobrevivência. Desde o começo dos anos 2000, as elites vêm se dando conta de que precisam fingir que lutam de todas as formas em prol da igualdade e da justiça para que as coisas continuem como são.

Em "Os Vencedores Levam Tudo", Anand Giridharadas chama o ciclo de "A Nova Era Dourada". No livro, mostra como as elites vêm patrocinando e recompensando generosamente movimentos, trends, ONGs, formadores de opinião que defendem a "mudança" desde que não ameace a ordem social ou as suas posições no topo da pirâmide. Isto é, eles estimulam o surgimento de uma gente capaz apontar uma grande transformação no status quo, nas relações de poder na sociedade, mas, fracas o suficiente para não alterar nada.

"Quiet luxury" e "recession core" são então estratégias de diferenciação e formas de inviabilizar uma vida permeada por excessos de gastos, dinheiro e luxo em um mundo marcado pela falta de tudo. É como se, ao se agarrar à novidade, os ricos enfiassem a cabeça no buraco como os avestruzes. Eles tão lá, do mesmo jeito, mas buscando disfarces para a própria existência certos de que as coisas vão melhorar.

As estratégias de dominação de classe são sofisticadas ainda mais atravessadas como abissais desigualdades sociais como é o caso do Brasil.

É preciso calma. Eu conheço bem as moças.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL