Topo

Michel Alcoforado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Ganhar dinheiro enquanto dorme': a falácia dos eventos de inovação

Web Summit no Rio - MAURO PIMENTEL / AFP
Web Summit no Rio Imagem: MAURO PIMENTEL / AFP

Colunista do UOL

10/05/2023 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Quando a tecnologia se tornou a panaceia para todos os problemas, os que têm fé trocaram Roma, Meca e Jerusalém pelos escritórios divertidos do Vale do Silício. Virou moda ver gente inteligente amontoada em excursões com destino às empresas, coworkings, garagens e laboratórios de universidades para ver de perto como os inovadores reinventam todos os dias o capitalismo.

Ao longo do ano, os novos romeiros aguardam com expectativa a chegada de eventos como SXSW, Web Summit, entre outros, para saber sobre qual nova verdade vão se agarrar para sair por aí repetindo como a grande solução para os problemas da humanidade. Em 2021 foi a web.3.0 e as NFTs; em 2022 foi a vez do metaverso; esse ano, não teve quem não foi impactado com as promessas da inteligência artificial, do ChatGPT e suas variantes.

Estive na primeira edição do Web Summit, no Rio de Janeiro, na primeira semana deste mês de maio. O evento surgiu em Dublin, na Irlanda, em 2009, mas ganhou fama entre os brasileiros depois que aterrissou em Lisboa, na capital portuguesa.

Há anos, hordas de startupeiros, investidores, sonhadores, herdeiros e muitos desocupados atravessam o Atlântico para acompanhar as promessas de inovadores além-mar. O número de brasileiros foi tão grande que Eduardo Paes, prefeito do Rio, conseguiu convencer os gringos a realizarem uma edição anual do evento no balneário. Eu fui.

A exemplo da edição portuguesa, o Web Summit Rio não tem o glamour do famoso SXSW de Austin, nos Estados Unidos. O encontro é marcado por uma certa aura de precariedade. Com estandes mal acabados e iluminação precária, há pouca preocupação com design ou sinalização. Do mesmo modo, que nos sentimos perdidos no dia a dia, no evento, ninguém sabe ao certo onde está e para onde vai. Ali, vive-se em um microcosmo do mundo real.

As palestras são curtas e pouco informativas. Os palcos até abrigam figurões e executivos de grandes corporações, mas nada do que é dito por ali é inovador, disruptivo ou com força de explodir os miolos ("mindblowing") — para ficarmos aqui em algumas palavras repetidas nesse mercado.

Os participantes correm de um canto a outro, meio afobados, como se não tivessem tempo a perder. Eles precisam encontrar investidores, escutar os conselhos dos mentores, assistir às apresentações de empresas já consolidadas e selar acordos para dar tração aos seus negócios.

A grande vedete do evento são os inventores. Em geral, são todos jovens. É preciso um grau de ingenuidade para cair em ciladas. Os humores variam. Por horas, espelham um cansaço por causa da quantidade de horas trabalhadas e pela resiliência de continuar acreditando em modelos de negócios interessantes, mas sem nenhuma prova material de que darão certo, darão lucro. Em outros momentos, carregam uma animação turbinada pela ansiedade de fazer acontecer, de encontrar uma solução milagrosa e ficar milionário numa tacada só.

Mais uma vez, eles são o reflexo da bipolaridade dos nossos tempos. Nós, assim como eles, ora estamos depressivos, desiludidos e descrentes de nós mesmo; ora animados, otimistas e crentes em dias melhores.

Os olhos dos startupeiros trazem um pouco do drama dos viciados em cassinos ou de hábeis especuladores da Bolsas de Valores mundo afora. Eles acreditam que, com um pouco de sorte, com muito foco e esforço, conseguirão agarrar as melhores oportunidades e fazer fortuna. Trabalhando enquanto os outros dormem, encontrarão uma gambiarra ou solução tecnológica capaz de lhes fazer ganhar muito dinheiro enquanto eles mesmos dormem.

"Ganhar dinheiro enquanto dorme." Ouvi essa expressão repetidamente na apresentação dos "pitches". Esse é o momento de performance no qual o inventor sobe ao palco, por poucos minutos, apresenta uma solução criada pela sua startup para resolver um "pain point" (necessidade ou problema do cliente).

Em tempo: fala-se mais em dor em um evento como esse do que na emergência de um hospital do SUS.

Eles partem da ideia de que o mundo é uma caixa de problemas de difícil solução. E que, com criatividade e trabalho exaustivo, são capazes de inventar uma solução tecnológica, fácil, simples e barata, para resolver todos os dilemas e contradições da humanidade.

No "pitch", os inventores apresentam suas empresas (mesmo que elas só existam em suas cabeças) com intuito de provar à audiência que descobriram uma dor, criaram uma solução tecnológica e transformarão o mundo em um lugar melhor. Em oito, 10 ou, no máximo, 15 minutos, eles subiam ao palco e faziam o "pitch", certos de que investidores sentados na plateia colocariam a mão no bolso e comprariam suas ideias.

Uma startup nada mais é do que uma gambiarra tecnológica com força de resolver os problemas humanos de forma rápida enquanto o criador dorme e ganha pela sua invenção.

No Web Summit Rio, ouvi de tudo. Os meninos da Gávea, muito preocupados com o desperdício de comida das famílias de classe média, enfurnados nas mansões aos pés da favela da Rocinha, decidiram criar um aplicativo de compartilhamento de sobras de comida. Um outro, interessado em mostrar como a biometria ou reconhecimento facial por máquinas seria capaz de dar ainda mais velocidade nos processos de compra no e-commerce. Um último, com uma bonificação por tempo fora das redes sociais. E por aí vai.

Demorei para perceber que o tom precário, inacabado e xumbrega do evento não era um descuido dos organizadores. E, do mesmo modo, a ânsia por falar e apresentar as próprias ideias não era culpa do narcisismo desmedido dos startupeiros. Ali, o que estava em jogo era a materialização da visão de mundo, da cosmologia, do capitalismo tecnológico dos nossos tempos.

Em cada encontro, estava ali, o solucionismo tecnológico, crente de que para todos os problemas humanos haverá uma solução tecnológica, como estudou Evygeny Morozov. Estava o capitalismo da vigilância, aquele que tudo sabe e tudo vê, pesquisado pela norte-americana Shoshana Zuboff. Vi de perto a clara confusão, típica das economias digitais, entre filantropia, empreendedorismo e precarização do trabalho como investigou Alex Rosenblat. Ou ainda, a ansiedade e a crença de que o futuro vai ser melhor, típicas do mundo das startups, como bem sinalizou o antropólogo Arjun Appadurai.

Assim como acontece em Roma, Meca e Jerusalém, em eventos como o Web Summit tudo parece coisa do passado, mas o que está em jogo é o que será de nós no futuro.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL