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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

ChatGPT pode ser pá de cal para uma habilidade em extinção: traquejo social

Homem conversa com inteligência artificial - René Cardillo via Dall-e/UOL
Homem conversa com inteligência artificial Imagem: René Cardillo via Dall-e/UOL

Colunista do UOL

18/04/2023 04h01

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Na reunião do condomínio, um dos argumentos em favor da implementação de um sistema online de informes via app era a economia potencial com a dispensa do carteiro.

O carteiro, no caso, é o rapaz contratado pela administração para levar correspondências, comunicados internos e algumas encomendas de casa em casa. É também um dos últimos vestígios da civilização que ainda circula na vizinhança dando "bom dia", brincando com nossos cachorros e comentando a rodada do Brasileirão.

Enquanto síndico, moradores e funcionários debatiam as vantagens financeiras da eliminação de um dos muitos postos de trabalho que ficaram obsoletos com as facilidades tecnológicas, eu me lembrava do dia em que atravessei a cidade para fazer compras e, da saída de casa até a volta, não precisei conversar com nenhum representante da espécie humana.

Quando não estava em silêncio, atento apenas ao noticiário da rádio, o motorista do aplicativo desfilava apenas um monólogo do qual eu só tinha a possibilidade de ouvir e fingir concordância.

Já no supermercado, meu diálogo mais profundo veio de um totem de autoatendimento, desses que substituem os antigos caixas e agora me cumprimentam e desejam que eu volte sempre.

Com meus fones de ouvido, saí de casa quieto e calado voltei.

Depois de quase dois anos de confinamento, o cenário da vida pré-pandemia ainda parece soterrado. Um item em falta é o traquejo social.

Outro dia mesmo fiquei impressionado ao observar, do restaurante onde tomava um chope, um casal que passou duas horas na mesa ao lado mexendo no celular e sem trocar palavra alguma.

O silêncio emulava uma passagem do conto "A terra que nos deram", de Juan Rulfo: "Aqui ninguém diz o que pensa. Já faz tempo que acabou a nossa vontade de falar. Acabou com o calor".

Como pacientes que voltam à rotina após meses de internação, ainda estamos reaprendendo a falar e decodificar os sinais de linguagens corporais que por um tempo ficaram escondidas sob máscaras e câmeras desligadas das videoconferências.

Difícil saber se as relações interpessoais ficaram mais difíceis e conflituosas porque saímos da pandemia mais sensíveis ou porque, no período, perdemos o que restava dos antigos filtros das interações humanas. Os sinais de que vivemos num mundo habitado por inabilitados sociais estão em toda parte. Até em show do Roberto Carlos.

A minha impressão é que, acostumada a falar com avatares ou interlocutores anônimos durante boa parte do dia, muita gente perdeu por completo a noção modulada pelo estranhamento evidente das expressões faciais quando proferimos alguma ofensa ou absurdo.

Talvez estejamos apenas num momento de transição, que necessariamente envolve uma espécie de detox de redes sociais, essas que nos transformaram em sujeitos inabilitados ao convívio humano.

Há esperanças. Um relatório recente publicado pelo Dazed Studio mostrou que jovens entre 19 e 25 anos estão desembarcando em peso das grandes plataformas de mídias sociais.

A tendência é explicada pela desconfiança em relação a influencers e também à postura mais crítica em relação à exploração de dados pessoais pelas big techs. Mais atentos aos prejuízos da superexposição à saúde mental, muitos dessa faixa etária passaram a priorizar as chamadas conexões reais.

Ouvimos um amém?

Ainda não.

Em meio ao desencanto das redes sociais, surgiu no cenário uma novidade em forma de assistente virtual com potencial ainda mais preocupante.

O ChatGPT, por exemplo, já tem sido usado como ferramenta de psicoterapia por quem acredita que é mais fácil se abrir com uma inteligência artificial. que responde perguntas específicas com dicas práticas, do que com profissionais capacitados.

Foi o que ouviu a jornalista Gabriella Sales em uma reportagem publicada na Folha de S.Paulo.

A aparente solução para as dúvidas existenciais mais ou menos profundas suprime um dos pilares básicos da interação humana, seja entre amigos, seja entre paciente e terapeuta: a possibilidade de falar em voz alta e mensurar a dimensão real de algum pensamento obsessivo ou mau julgamento que alimentamos em silêncio.

Em troca de um olhar de estranhamento, que pode ser lido como uma temerária desaprovação, o que a ferramenta oferece é um misto de engodo com autoajuda.

Em um diálogo sobre ansiedade mostrado pela reportagem, o chat resumiu a questão da seguinte maneira: "Eu entendo que às vezes podemos nos sentir inseguros ou com medo do fracasso, mas lembre-se que esses sentimentos são normais e todos passam por ele em algum momento. O importante é não deixar que esses sentimentos te impeçam de seguir em frente e tentar fazer o seu melhor".

Ah, vá.

Se for para ler/ouvir coisas do tipo, é melhor ficar nos stories. Pelo menos lá é possível assistir aos gols da rodada.

Dos males da tecnologia, a sensação de companhia, disfarçada de frases feitas, é talvez o grande risco de quem já não interage com gente de verdade há muito tempo. O nome disso é solidão.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL