Topo

Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Único defeito de 'manual de instruções' com regras para festa é ser um só

Legenda autoexplicativa - Getty Images
Legenda autoexplicativa Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

27/07/2022 04h01

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Levei anos, talvez algumas décadas, para conseguir manter contato visual ou modular minha expressão facial às situações apropriadas — tipo sorrir quando alguém conta uma piada.

Reconhecer o que alguém está pensando ou sentindo sempre foi um transtorno. Os conceitos de ironia e sarcasmo levaram um bom tempo a serem assimilados e replicados. Talvez, no princípio, como traço de ecolalia (repetir mecanicamente palavras ou frases).

Aí vieram os filmes do Woody Allen e a coisa começou a andar sozinha.

Até que chegou um momento em que, além de piadas, já conseguia iniciar ou manter uma conversa que não girasse em torno apenas de meus interesses incomuns, restritos e intensos a respeito de músicas, futebol, placares, números e eventos históricos. Comportamentos estereotipados, como beliscar os cabelos e coçar os olhos quando não coçavam, foram aos poucos se dissipando.

Sobraram, teimosos, a sensibilidade a ruídos e o apego quase doentio a rotinas e rituais — o que seguia me afastando de festas, música alta, e lugares fechados que todo adolescente deveria frequentar quando eu queria apenas estar no escuro do meu quarto à meia-noite, à meia-luz, sonhando.

E então chegou a pandemia e voltei a ser o esquisitão de 14 anos de idade.

O retrocesso pessoal em tempos de retrocessos sociais me fez perder algumas manhas que pensava já ter assimilado.

O nível? Bem. Digamos que se eu estivesse na primeira fileira de um show do Roberto Carlos eu teria uma dificuldade considerável tanto em lidar com os desordeiros a falar em voz alta durante o refrão quanto de perceber a irritação do Rei com alguma mancada minha. Tipo atender o celular na hora do refrão.

Como lembrou minha amiga Luiza Sahd em uma crônica recente aqui no TAB, não está fácil a vida de quem passou dois anos trancado em casa e perdeu completamente a noção de como viver em sociedade e manter as habilidades mais simples, como não conversar no cinema, no show do Rei ou manter a concentração em atividades do dia a dia.

Para minha sorte (ou azar), não estou sozinho nesse exercício quase fisioterapêutico para reaprender a andar em grupo.

Se está difícil ser um dito cidadão respeitável nos ambientes mais sóbrios, imagina quando envolvem multidões (mais de 20 é multidão, tá?) e orgias etílicas.

O que sei é que, após dois anos e tralalá, meus primeiros passos em direção à luz do sol foram um misto de coragem movida a álcool e vergonha no dia seguinte. Não recomendo.

Por isso é possível dizer que, depois da pandemia, uma festa nunca mais será uma festa. Entre tantos sintomas sociais causados indiretamente pelo vírus, um efeito rebote foi desativar uma habilidade dupla capaz de evitar exageros diante de qualquer marola de liberdade e de tolerar as estripulias de quem afogou na primeira dose o que existia de noção e superego na alma.

Em outras palavras: saímos do confinamento menos capazes de viver em bando e também menos tolerantes com quem não sabe. O cálculo da reabertura é uma conta que não fecha.

Dias atrás, viralizou no Twitter um manual de instruções para a festa de aniversário de uma rara representante da espécie humana capaz de vislumbrar e evitar tragédias em ambientes onde se reúnem mais de dois quarenteners recém-libertos pela vacina.

A preocupação tinha sentido: da última vez, vasos de planta foram usados como cinzeiro, houve excesso de bebida, um convidado arrancou a porta do freezer e outro tentou subir no telhado.

Desconheço material mais útil para tempos de noções avariadas pela falta de uso.

O manual deixava claro o que cada um deveria levar — sempre esquecemos dessa parte quando queremos bancar o anfitrião generoso e só percebemos o erro depois que chega a fatura da falência.

Na dita festa, cada um deveria levar sua caixa térmica com gelo para as próprias bebidas. Deveria também levar a própria blusa em caso de mudança climática. Era uma medida de proteção contra os imprudentes que sempre desfalcam nossos guarda-roupas quando esfria.

O manual deixava claro quanto haveria de comida e orientava os convidados carnívoros a priorizarem os salgadinhos de carne para não deixar os convidados veganos na mão. A empatia, naquela festa, era uma porção intacta de risoles de creme de milho.

O dono da festa pedia para que todos chegassem até certo horário para que ninguém precisasse perder parte da festa abrindo portão. Também detalhava até que horas iria a bagunça e em que momento o volume da música seria reduzido até ser desligada. E avisava de antemão: ninguém iria dormir na casa ao fim da noite, como sempre pedem os desarrazoados de sempre.

O documento alertava ainda que, se alguém exagerasse nas substâncias psicoativas, legais ou ilegais (havia uma lista do que seria permitido), estaria assumindo o risco de ser largado morto no chão. O aniversariante, afinal, tem direito a celebrar a passagem dos anos em paz sem precisar fazer bico de babá de adulto mal comportado.

Ah, sim: ele proibia os bobos alegres de sempre de alimentar os animais da casa (não sei vocês, mas isso sempre, sempre acontece quando alguém me visita e nunca sei como pedir para não fazer — obrigado, manual).

O missivista dizia ainda que toda regra estava ali por algum motivo, inclusive o pedido encarecido para os convidados não arrancarem a porta do freezer da casa. O pedido era autoexplicativo.

Enquanto escrevo, o manual já havia sido compartilhado por quase 13 mil pessoas. Que sirva de inspiração e possibilite o surgimento de outras cartilhas do tipo sobre, por exemplo, como devemos nos comportar ao esbarrar em conhecidos no supermercado (damos a mão?, pode abraçar?, eu nunca sei) ou como botar para correr sem parecer rude aquela visita surpresa animada com a quarta dose (de álcool ou da vacina, tanto faz) que infringiu a regra dos dois dias de antecedência e parou buzinando na frente de sua casa sem aviso prévio com uma música do Roberto Carlos ("eu volteeeeei") no carro.

Nunca achei que fosse dizer isso. Mas nunca precisamos tanto de manuais como esses para voltar a ser gente e reconstituir o que havia aqui de lastro civilizatório.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL