Topo

Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Selfies em Higienópolis, relatos de terror no Alemão: um Brasil, dois CEPs

Curiosos acompanham abordagem da polícia no casarão de Margarida Bonetti na rua Piauí, em Higienópolis (SP) - Eduardo Knapp/Folhapress
Curiosos acompanham abordagem da polícia no casarão de Margarida Bonetti na rua Piauí, em Higienópolis (SP) Imagem: Eduardo Knapp/Folhapress

Colunista do UOL

22/07/2022 04h01

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Atrás da fita de isolamento, dessas usadas para preservar um local de crime, um jovem de camiseta branca estende os braços e aciona o celular para uma selfie com os amigos. A pequena multidão atrás dele sorri. Ao lado, uma senhora de roupa listrada e feição séria digita algo em seu smartphone, como se atualizasse as cenas de um capítulo de novela para alguém distante.

A imagem, capturada pelo fotógrafo Eduardo Knapp, da Folha de S.Paulo, parecia flagrar a empolgação do público diante de um palco em Higienópolis, bairro nobre de São Paulo. O espetáculo logo à frente era conduzido pela Polícia Civil de São Paulo.

Quem ligasse a TV no fim da tarde de quarta-feira (20) poderia se questionar que país era aquele onde as pessoas, em vez de correr e se proteger, se aglomeram para ver de perto uma operação policial.

Aparentemente era o mesmo país onde, a 450 km dali, uma outra operação policial, esta no Complexo do Alemão, no Rio, levava moradores a relatar nas redes sociais momentos de terror no meio do tiroteio entre barracos balançando pelos rasantes de helicópteros.

A ação do Bope, que matou ao menos 20 pessoas —entre elas uma mulher atingida por disparos em seu automóvel— mirava uma quadrilha de roubo de veículos, e a condenação era uma conta paga e dividida entre todos os vizinhos com os corpos expostos à bala. Paz ali é licença poética.

Em Higienópolis, a operação policial também mobilizava agentes, viaturas e helicópteros, mas nenhum residente corria riscos. O alvo era Margarida Bonetti, personagem retratada no podcast "A Mulher da Casa Abandonada", do jornalista Chico Felitti. A popularidade da série tirou o sossego da vizinhança.

Em um cenário descrito como insalubre, com telhas quebradas, rachaduras, infiltrações, lixos espalhados e restos de comida, os agentes precisaram arrombar a porta e negociar uma espécie de rendição da moradora acusada de manter durante anos uma pessoa em situação análoga à escravidão.

Irritada, a anfitriã perguntava, diante das câmeras, onde estava o mandado judicial. Sua advogada teve de ser acionada para mediar o conflito.

Além da plateia presencial, milhares de pessoas acompanhavam a transmissão da cena pela TV. O mundo do podcast furava a bolha e chegava a outras muitas casas de homens e mulheres abandonados.

Todos pareciam ansiosos como quem acompanha os lances finais de uma novela. A vilã vai se atirar da janela? Vai sair da mansão algemada? Vai pagar finalmente pelo crime cometido? Vai contar como consegue viver num casarão caindo aos pedaços num dos pontos mais nobres da capital paulista? Estará pronta, finalmente, para seu close-up?

A releitura do "Crepúsculo dos Deuses", bem na cena em que Norma Desmond deveria descer as escadas escoltada pela polícia, ficou pela metade.

Contrariado, o delegado informou na saída, com ares de derrota, que a moradora decidiu permanecer no local e nada poderia ser feito.

Ao longe era possível ouvir um "ooooohhh" decepcionado dos vizinhos, que se mobilizaram nos últimos dias para telefonar a diversas delegacias da cidade e denunciar que no interior da residência havia uma mulher com transtornos mentais, abandonada pelos familiares e que precisava de ajuda.

A mulher morava naquele local e naquelas condições havia anos. Poucos na vizinhança desconheciam sua história.

A comoção repentina coincide com a peregrinação de curiosos até o local descrito em detalhes pelo podcast. A multidão em fúria não queria só justiça — ou o que entendia por justiça. Em uma sociedade refém da imagem, buscava ali a materialização dos rostos e das fachadas descritos em uma trama feita para os ouvidos, não para os olhos. Como uma radionovela produzida no auge dos tempos da selfie.

Os holofotes levaram para lá todo tipo de astros em busca de luz, inclusive a influencer defensora dos direitos dos animais Luisa Mell. Ali os tempos de humanização dos bichos e animalização de humanos dobravam a mesma esquina.

Se eram imagens que os espectadores e José Luiz Datena queriam, imagens não faltavam mais. O rosto até então encoberto por creme, observados ao longe e em imagens trêmulas, era agora observado ao vivo e em cores. A "bruxa", assim descrita por vizinhos e fãs da minissérie, finalmente tinha rosto.

Como se os agentes fossem acionados para derrubar a quarta parede de um teatro, ninguém ali sabia se a polícia estava lá para proteger os vizinhos da mulher ou se para proteger a casa (e sua solitária habitante) de uma plateia em fúria. Os xingamentos dirigidos a ela enunciavam um spoiler.

Parte da audiência, ao que parece, viu ali apenas uma novela como tantas em um país que borrou as fronteiras da ficção e da realidade desde o assassinato de Daniella Perez, atriz e filha da roteirista da trama "De corpo e alma" que foi morta pelo intérprete de seu par romântico na ficção.

Na época até os jornais confundiam os nomes dos personagens reais e fictícios. Por uma dessas coincidências macabras, a história está prestes a ser reconstituída em um seriado documental da HBO Max.

Ali um outro país se revela, e não estamos assim tão longe de 1992.

"A Mulher da Casa Abandonada" deveria conduzir seus ouvintes a uma reflexão profunda sobre como a mentalidade escravista, intacta como um edifício sólido da formação nacional, sobrevive entre ranhuras e atravessa o século 21.

Parte dessa história pode ser contada pelos descendentes de escravos alvejados no complexo do Alemão. Uma história contada hoje em tom de um déjà vu que se repetirá amanhã. O que muda?

Longe dali, como se fosse mesmo um outro país, é possível que, passada a comoção, muito em breve a mansão de uma velha representante da casa grande venha abaixo, dando lugar a empreendimentos mais de acordo com o tempo e o design. Quem passar à frente poderá apenas dizer: ali estava o casarão daquela minissérie famosa.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL