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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Tem coisa pior do que artista usar seu espaço para falar de política? Tem

Roger Waters, fundador do Pink Floyd, em show no estádio Couto Pereira, em Curitiba - Theo Marques/UOL
Roger Waters, fundador do Pink Floyd, em show no estádio Couto Pereira, em Curitiba Imagem: Theo Marques/UOL

Colunista do UOL

19/07/2022 04h01

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Todo mundo esperava alguma coisa de um sábado à noite naquela virada dos anos 1990 para os 2000. Menos que a baladinha com a ala "good vibes" da turma, aquela que bebe a mesada dos pais num fim de semana, se transformasse numa reunião do grêmio estudantil ao som de "As Meninas".

Lembrando agora, fica difícil entender como a galera repetia sem grandes constrangimentos, com os passinhos ensaiados e os braços erguidos para o alto, a análise da cadeia hereditária e da precarização das relações de trabalho em um país onde o rico ficava cada vez fica mais rico e o pobre, cada vez mais pobre.

O motivo todo mundo já conhece, berrava o professor para uma turma formada por jovens de feições bovinas e baba escorrendo no canto da boca nas aulas de História. Mas bastava tocar "Xibom Bombom" para o discurso ganhar força em ritmo de axé.

Eram ousados os doutrinadores do fim do século 20 — ou estávamos menos atentos aos apitos de cachorro de quem não parecia muito preocupado em preservar as fronteiras sagradas da política com o entretenimento.

De duas décadas para cá, futebol e religião viraram palanques para todo tipo de proselitismo político, mas por alguma razão o campo da diversão e da arte passou a ser entendido como um reduto que deveria ser preservado e imune de qualquer querela política. Assumir posição era desagradar metade da plateia, e ninguém queria perder dinheiro com engajamento.

Fosse nos dias de hoje, um militante da alienação, desses que não querem pensar na vida enquanto mexem as cadeiras num sábado à noite, talvez tivesse razão em pedir o dinheiro de volta numa balada onde o hit "Xibom Bombom" é a atração principal. O figurino e o ritmo festivo da música de fato induziam ao erro.

Mas desconfio que ninguém foi exatamente enganado ao comprar ingresso para o show de uma banda chamada Rage Against the Machine e receber em troca um produto de entretenimento altamente politizado.

Pois a banda voltou a se apresentar no último fim de semana e aparentemente deixou chateada parte dos fãs que manifestaram, ao fim do espetáculo, a saudade de quando os músicos não misturavam acordes com política. Não era difícil encontrar, nas redes, protestos do tipo. Difícil era encontrar na trajetória de um grupo musical que usa o símbolo do Exército Zapatista algum momento da carreira em que resolveu dar uma pausa para descanso em suas posições.

Reclamar disso é como se queixar das rosas arremessadas por Roberto Carlos à beira do palco (não estou falando — ainda — da boa vontade do Rei). Ou esperar que Ivete Sangalo passe um show inteiro num banquinho sentada com um violão.

Pois em suas redes sociais a modelo, apresentadora e mãe adotiva do Pluft, Ellen Jabour, fez coro à reclamação dos clientes insatisfeitos com o show do Rage Against the Machine. Ela relatou que também não gosta de shows que falam de política e transformam um "momento de unificação" em "segregação".

Quando isso acontece, segundo ela, o clima fica péssimo e as pessoas que pensam diferente começam a se estranhar. Foi o que ela descobriu durante um show do Roger Waters.

Justo. Eu também, a certa altura da vida, fiquei espantado ao descobrir que uma das músicas mais conhecidas do Pink Floyd não era uma tradução de "atirei o pau no gato" e que ela não defendia a liberdade do jovem empreendedor ao pedir aos professores que deixassem as crianças em paz. Mas aí fiz 18 anos e o espanto passou.

O post da apresentadora, ao que parece, pegou mal, já que ela precisou voltar para explicar que não tinha nada contra as letras com fundo político. A bronca era com o "climão" que impregna a plateia cada vez (leia-se "sempre") que gente como o Roger Waters fala sobre política nos países onde se apresenta. Talvez ela não desconfie que, na maioria desses países, inclusive o nosso, a segregação não começa nem termina exatamente na plateia.

Reações do tipo têm se tornado cada vez mais comuns nas redes onde tentamos tirar a poeira de anos de alienação política com discursos que muitas vezes acusam nossa falta de treino, orientação e leitura da realidade. Felipe Neto que o diga.

Por aqui passamos tanto tempo pensando que a guerra estava ganha ao fim da ditadura que só agora percebemos que direitos básicos, como o de votar e fazer campanha sem correr risco de morte, não eram conquistas "dadas", como parte da paisagem natural pela qual não precisamos lutar.

Durante anos, pudemos chamar de ecochatos e outros nomes quem se mobilizava por alguma causa que não fosse o direito ao mindfulness num sábado à noite.

O medo da politização (aquele processo em que começamos a entender o mundo e lutar por justiça e direitos) é a origem da "tiagoleiferização" da vida, aquele processo segundo o qual uma bola é só uma bola e um microfone é só um microfone — sem qualquer conexão com o que acontece dentro ou fora das arenas.

Houve um tempo em que até para respirar o artista precisava se posicionar. Não tinha letra que não passava pelo escrutínio da censura. O risco era morrer asfixiado.

Quem entendeu a gravidade da situação atual, como a cantora Anitta, já percebeu também que falar de política a essa altura do jogo já não é questão de preferência, mas de vida e morte. Às vezes a mensagem chega truncada, esvaziada e tomada de contradições. Tem hora que o revide mira o presidente, acerta a cantora rival e vira uma outra coisa. Faz parte do jogo.

A vertigem de quem acaba de levantar com sono da cadeira não acontece por causa de uma suposta hiperpolitização da vida, mas de anos de acomodação, esvaziamento do debate e silenciamento.

Artistas como Roger Waters se posicionam, e não é de hoje, justamente para incomodar. Isso não deveria causar estranhamento. Estranho é que parte dos incomodados esteja justamente na plateia pedindo o dinheiro de volta. É como se, transformada em meros clientes, parte do público quisesse pagar por um serviço (uma experiência imersiva?) cuja garantia é poder se divertir sem ter nenhuma convicção abalada — nem mesmo pelo suposto ídolo.

A bronca de Ellen Jabour em um momento em que tantos artistas tomam posição revela uma inversão do dilema filosófico segundo o qual é preciso entender o mundo para depois transformá-lo. Quem não quer que as coisas mudem quase sempre não quer entender quase nada. Inclusive das músicas que gosta de cantar em voz alta para ficar apenas confortavelmente entorpecido

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL