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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Anitta esbanja coragem ao se posicionar num país onde se mata por política

Antes isenta, Anitta vem se posicionando sobre temáticas políticas nos últimos anos                              - Rock in Rio/Divulgação
Antes isenta, Anitta vem se posicionando sobre temáticas políticas nos últimos anos Imagem: Rock in Rio/Divulgação

Colunista do UOL

13/07/2022 04h01

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Não faz muito tempo, durante uma viagem para o enterro de minha avó, entrei com minha família no único restaurante aberto na cidade àquela hora.

Dois dias antes, no feriado de 7 de Setembro, o presidente Jair Bolsonaro havia ameaçado botar fogo no país em duas manifestações de apelos golpistas em Brasília e em São Paulo. Quanto mais andávamos em direção ao interior, mais encontrávamos outdoors e adesivos de automóveis com o rosto do presidente e suas palavras de ordem.

Como se fossem tempos de Copa do Mundo, o restaurante onde entramos estava decorado com as cores da bandeira.

A proprietária conhecia minha mãe e lamentou nossa perda. No minuto seguinte, enquanto trazia os pratos, puxou papo sobre política.

As folhas da nossa salada já ressecada começaram então a ser temperadas com a saliva de uma pregação. A receita tinha raiva, desinformação e um toque de intimidação. Tinha também um tanto de insensibilidade pelo luto da minha família.

A todo instante a mulher conferia no celular as mensagens sobre uma falsa tomada de poder em Brasília com tanques e caminhões. Ela dizia ser necessário lutar de todas as formas para evitar a volta do comunismo no Brasil. E que estava disposta a reforçar aquelas fileiras com a própria vida. Por seus filhos, pelo Brasil, pela liberdade — aquela coisa toda.

Forçar o estômago a engolir qualquer coisa para não desmaiar no intervalo de um velório já não é das tarefas mais digestivas. O medo de que alguém sacasse uma arma ao identificar um inimigo declarado à mesa não ajudou nem um pouco (para a turma, qualquer um que não levante as mãos para a saudação de seu messias é inimigo e pode ser um alvo; no balaio de "comunistas" que só existe nas cabeças mais apavoradas cabe um pouco de tudo, inclusive meus pais, que nunca apertaram 13 na vida).

Não devo ser o único que no Brasil de Bolsonaro evita entrar em estabelecimentos comerciais cobertos com as cores sequestradas da bandeira onde se lê nas entrelinhas: "Cuidado, cão bravo".

Outro dia dei meia volta em frente a uma floricultura. Não é exatamente um boicote. É medo e instinto de defesa.

Desde 2018, não consigo mais saber se atrás daquelas cores e mensagens está um fã do Pelé ou uma pessoa armada e disposta a "fazer justiça" contra quem cruzar as suas convicções.

Alguns vizinhos fazem questão de mostrar que estão em campanha. Alguns mantêm as bandeiras em frente de casa desde o 7 de Setembro. Outros desde a divulgação da reunião de 22 de abril.

Direito deles.

Quem passa em frente e não pretende dar ao atual presidente mais quatro anos de viagens e passeios de moto com tudo pago provavelmente balança a cabeça, enruga a testa e se esforça um tanto para dar bom dia aos vizinhos bolsonaristas. Mas duvido que algum desses moradores da bandeirinha temam acordar num belo dia com a casa vandalizada com terra, ovos ou excrementos por definirem seu lado nessa história.

(Para não dizer que, mesmo onde moro, um reduto que votou em peso em Jair Bolsonaro em 2018, ninguém está livre de revide, um outdoor de apoio ao governo bancado por um empresário local amanheceu outro dia com as palavras "fora, fascista").

Meus vizinhos e conhecidos de vista podem tentar o quanto quiserem. Não vão conseguir falar sobre política comigo até outubro.

De novo, não é um boicote. É instinto de sobrevivência.

Não quero correr risco de descobrir que o interlocutor com quem até ontem só trocava bons dias mantém um arsenal legalizado em sua casa. Nem pretendo descobrir na pele o que ele entendeu da mensagem do presidente quando ele disse que seus eleitores sabem o que precisam fazer antes das eleições. Tenho filho para criar e pretendo pelo menos assistir à Copa com ele logo ao fim da eleição. Talvez não seja pedir muito.

Entre uma casa enfeitada para a eleição e outra, não sei exatamente o que pensa nem como vota a maioria silenciosa.

Sei que um desses vizinhos mais discretos, durante uma festa infantil, me confidenciou, dias atrás, olhando para os lados e falando para dentro, que vai apertar 13 em outubro e sair correndo. O mais importante, para ele, era tirar Bolsonaro de lá. Falou isso enquanto testava um terreno, como se quisesse saber se ainda poderia frequentar nossa casa depois de tal confissão.

Esse vizinho, dava para ver, nunca fez campanha para partido ou candidato algum. Mas se quisesse não poderia ostentar a escolha, em cores e bandeiras. A chance de ser xingado, constrangido, provocado, atacado é considerável.

Não digo que ele deve nutrir amores e bons sentimentos por quem defende tudo aquilo que ele deplora e o coloca em risco. Mas certamente ele não acredita que uma "granadinha" basta para tirar o inimigo de campo. Nem que os moradores da casa ao lado precisam ser exterminados e/ou despachados para a Venezuela para pagar pela discordância.

Os ataques com drone e bomba em manifestações petistas e o assassinato de um membro do partido em Foz do Iguaçu (PR) mostram que o temor não é paranoia.

Hoje é preciso ter a coragem de uma Anitta para se posicionar sem medo das bombas de excrementos que podem ser arremessados em shows, palanques e residências. Quem ostenta bandeiras ou toalhas do inimigo declarado do regime assume um risco à sua integridade.

Não é por menos.

O outro lado está com raiva. E faz da defesa do armamento um sentido para a vida. E talvez tenha mais apreço por uma barata do que pelo direito à divergência.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL