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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Ópera 'Don Giovanni' no Rio retrata nobre abusivo: mais atual, impossível

Justiça do Rio manteve a prisão de Giovanni Quintella - Reprodução/Instagram
Justiça do Rio manteve a prisão de Giovanni Quintella Imagem: Reprodução/Instagram

Colunista do UOL

15/07/2022 04h01

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No mês em que celebra 113 anos, o Theatro Municipal do Rio de Janeiro será o palco de uma versão atualizada de "Don Giovanni", famosa ópera de Lorenzo Da Ponte com músicas de Mozart apresentada pela primeira vez, em Praga, em 1787.

Com direção e concepção cênica de André Heller-Lopes, o espetáculo em cartaz até o fim de julho conta a história de um "nobre abusivo, incapaz de se preocupar com o sofrimento alheio e apto a destruir quem cruzar seu caminho". A descrição faz parte do texto de divulgação na página do Municipal.

(A obra original, vale dizer, é uma releitura de "Don Juan", escrita por Moliére, encenada pela primeira vez em 1665).

Em entrevista ao jornal O Globo, Heller-Lopes classificou a ópera como uma obra-prima que deveria fazer parte da educação básica. O libreto, segundo ele, mostra que nada mudou desde sua primeira apresentação.

"Todo mundo conhece um homem como Don Giovanni, que é perverso e imoral, um abusador de mulheres", disse o diretor.

Bem. O Theatro Municipal, onde a história de um sujeito que mata e estupra com a cumplicidade de um parceiro e a convicção de que jamais seria punido, fica a cerca de 30 quilômetros de São João de Meriti, na região metropolitana do Rio.

Foi lá que outro Giovanni, um nobre de seu tempo com diploma de doutor, anestesiou e estuprou uma mulher durante um parto em um hospital da rede pública. Giovanni Quintella Bezerra foi preso em flagrante.

A ópera sobre um abusador homônimo volta a ser apresentada no Theatro Municipal do Rio, após quase três décadas, em um momento particular da história brasileira.

O abuso no hospital do Rio foi registrado por uma câmera escondida montada por uma equipe de enfermeiras que sabiam: seus relatos seriam certamente desacreditados caso não fossem gravados.

Assim como o abusador homônimo da ópera de Mozart, o médico de São João de Meriti só fez o que fez porque entre ele e a vítima havia uma relação desproporcional de poder e a garantia implícita de que qualquer menção ao crime seria encoberta não só pelo lençol azul, mas por seu status social.

Como nos tempos de Mozart, no Brasil de 2022 o dinheiro ainda compra (quase) tudo.

Filho de um médico proprietário de uma clínica de ginecologia, o Don Giovanni versão carioca era descrito como uma pessoa "normal", que vivia acompanhado de mulheres, era vaidoso e um dos últimos clientes a sair da academia onde treinava na Barra, bairro nobre do Rio onde morava.

A delegada do caso acredita que ele era um criminoso serial.

O Giovanni da Barra não anda só em um país onde se empilham criminosos como Roger Abdelmassih, Saul Klein, João de Deus e grande elenco — todos ricos, sociáveis, "normais" e impunes até suas vítimas quebrarem o silêncio e virem a público.

O diretor da ópera tem razão quando diz que clássicos como Don Giovanni deveriam fazer parte da educação básica.

Se o silêncio é cúmplice, o espelho apresentado pela obra de arte poderia ao menos constranger e provocar reflexões mais profundas sobre a forma como são criados os meninos que agirão como predadores na vida adulta.

Abusadores como Giovanni Quintela caminham juntos e agradecidos a todos os movimentos dispostos a criminalizar a classe artística e a educação sexual nas escolas.

Na adaptação da ópera para os dias atuais, três personagens femininas conduzem as cenas, representando o passado, o presente e o futuro — só esta, como num estágio seguinte da tomada de consciência, está livre dos abusos.

De certa forma, a atualização dessa elaboração artística é o que se observou, na quarta-feira (13), durante os protestos protagonizados por mulheres, no Rio e em São Paulo, para pedir a cassação do registro médico do anestesista.

Um dos cartazes levantados na frente do hospital onde ele trabalhava dizia: "Não aguento mais ter medo de ser mulher".

Em meio à revolta, chama a atenção o fato de que o médico anestesista que estuprava sua(s) paciente(s) tenha se tornado uma celebridade nas redes sociais, com direito a perfis fakes criados por pessoas (fãs?) em busca de curtidas e engajamento, como alertou minha amiga Luciana Bugni em uma coluna recente aqui no UOL.

Homero Pérez-Miranda, intérprete de Don Giovanni, é sempre aplaudido ao fim das apresentações. "Gostaria que (os espectadores) pensassem se os aplausos são apenas para a minha interpretação e, se não forem, que fascínio é esse por tanta maldade", contou o artista ao jornal O Globo.

Esses aplausos na plateia ou nos likes das redes servem como uma fábrica de produção de novas perversidades, como a reproduzida por um estudante de medicina que pensou estar abafando ao debochar, em suas redes, de um doloroso texto viral sobre estupro.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL