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Michel Alcoforado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Em poucos anos, em SP, fomos do 'Escola Sem Partido' ao 'Escola Sem Livros'

05.01.2023 - Tarcísio de Freitas (à esq.) na nomeação do novo secretário da Educação, Renato Feder - Divulgação
05.01.2023 - Tarcísio de Freitas (à esq.) na nomeação do novo secretário da Educação, Renato Feder Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

06/08/2023 04h00

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Quem poderia imaginar tal enredo?

Depois de esbravejar que São Paulo era locomotiva do Brasil, em seu discurso de posse como governador, Tarcisio de Freitas achou por bem dar marcha a ré no trem. Contra os especialistas em educação, sem levar em consideração o fracasso das experiências de outros países e deixando de lado o bom senso, ele vai acabar com os livros didáticos nas escolas estaduais da economia mais rica do país.

Em poucos anos, os políticos da direita radical, saudosos do fracassado projeto da Escola Sem Partido, resolveram apostar em uma nova falácia. A moda agora é a "escola sem livros". A partir de 2024, os alunos do 6º ano em diante vão ter de aprender a aprender com slides, livros digitais e outras traquitanas digitais. Do ponto de vista do secretário de secretário de educação de São Paulo, Renato Feder, é moderno, é digital, é tecnológico.

Não é a primeira vez que a sanha por inovação de Feder mostra a cara. Em 2019, cheio de boas intenções, ele deixou uma carreira de sucesso como fundador de uma empresa de informática para assumir a secretaria de Esporte e Educação do Paraná. Lá, uma de suas ideias foi pagar R$ 38,4 milhões a uma faculdade particular por um pacote de videoaulas. A sacada resolveria o imbróglio da grade de disciplinas profissionalizantes do novo Ensino Médio. Afinal, cada professor, sozinho, conseguiria ensinar para mais de 800 alunos. A economia o permitiria duplicar a oferta de vagas no ensino técnico em um ano.

A ideia cai bem no ouvido dos tecnocratas, funciona nas planilhas de Excel e ludibria quem enxerga a vida por slides, pelo vidro de carros blindados ou pelas telas de celular. Na vida real, foi um fuzuê. Os alunos paranaenses odiaram o remake do Telecurso 2000. Os professores protestaram e o projeto teve de ser remodelado.

Quando o assunto é educação, nem sempre corte de custos, tecnologia e digitalização é inovação. As vezes, atrapalha mais do que ajuda.

Dessa vez, o projeto de extermínio de livros nas escolas paulistas não deve dar bom caldo de novo. Renato Feder vem se mostrando um craque em bolas fora quando o assunto são políticas educacionais. As razões são muitas.

Cada vez mais, os cientistas do planeta vêm debatendo sobre o impacto da onipresença das telas na formação do processo cognitivo dos humanos e nas interferências no relógio biológico de crianças e adolescentes.

Já falamos aqui sobre como os dispositivos tecnológicos emitem a chamada luz azul, um tipo de luminosidade muito próxima da solar. Quando muito expostos às traquitanas, nossos corpos entendem, independente da hora, que é dia e nos coloca em um eterno estágio de vigília. É como se tivéssemos de estar terminantemente dispostos ao próximo desafio, sem chance de repouso ou descanso.

A sensação de prontidão tem mostrado seus reveses. Os casos de ansiedade e problemas com saúde mental crescem absurdamente entre os mais jovens e nos fazem questionar se as inovações tecnológicas servem mais como remédio ou veneno. E os problemas não param por aí.

Pela primeira na História, estamos diante de uma geração com um QI (quociente de inteligência) menor que a anterior. Segundo o pesquisador francês Michel Desmurget, autor de "A fábrica de cretinos digitais", a culpa é das telas.

O intenso uso das plataformas digitais afeta o desenvolvimento de faculdades cognitivas fundamentais, como o da linguagem, da capacidade de memorização e de concentração — pontos fundamentais no desempenho escolar de qualquer jovem.

Um dos principais problemas está em como o meio transforma a mensagem. Ler um livro didático ou texto acadêmico em tablet não é a mesma coisa de ler o mesmo documento no formato físico.

A disposição das palavras, a tipografia, o ritmo de leitura e apreensão do conteúdo funcionam de maneiras distintas. Muito dentro daquilo que Roger Chartier, historiador francês, vai chamar de "fragmentação do digital", um contexto no qual os textos são fragmentados e geram compreensão fragmentada da realidade. Aqui mora o problema.

Gente treinada exclusivamente por plataformas digitais não tem como dar unidade, construir longas narrativas ou inventar soluções complexas para os problemas do mundo. Eles são treinados por pedaço, só entendem o sentido das coisas em si, nunca em relação. Quando pegamos um livro físico para ler ou folheamos as páginas de um jornal (como faziam os antigos), a todo tempo, somos instigados a refletir como a parte compõe o todo e como o todo ressignifica as partes. Tal movimento desenvolve nossa capacidade reflexiva e nos dá chance de pensar sobre o pensar. A leitura fragmentada do digital nos tira desse jogo.

Em um mundo dominado por toda sorte de inteligências artificiais, senso crítico e a capacidade de conexões criativas serão umas das principais habilidades requeridas dos novos entrantes no mercado de trabalho. No entanto, o digital impede o desenvolvimento dessas habilidades e inventará indivíduos pouco aptos a lidar com a horda de problemas oferecidos pelo mundo.

Sem compromisso com o erro e com apreço pela verdade dos dados, o governo de centro direita da Suécia voltou atrás na decisão de digitalizar todo e qualquer material didático em suas escolas. Depois de ver uma queda vertiginosa no Estudo Internacional de Progresso em Leitura, a ministra da Educação, Lotta Edholm, culpou a virada digital no ensino proposta pelos burocratas. De uma hora para outra, os jovens perderam o hábito da leitura, os professores ficaram sem acesso aos livros e os pais não conseguiam ajudar os filhos nas tarefas escolares. Fracasso.

O mundo pós-pandemia é híbrido. Cobra de nós habilidades on e off e desenvoltura para ler, escrever e pensar dentro e fora das telas. A escolha por um só perfil de formação acirrará ainda mais as desigualdades entre alunos de escolas particulares e públicas e, em outras camadas, dificultará ainda mais a inserção dos jovens periféricos no mercado de trabalho.

Aos duvidosos, deixo uma pergunta final: se tais medidas são maravilhosas (como vendem os defensores), por que raios a novidade não começou pelas melhores escolas de São Paulo?

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL