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Michel Alcoforado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Na 'rinha do Rolex', o que muda é o que se ostenta, mas todo mundo ostenta

Rolex Daytona modelo "Eye of the Tiger" - Divulgação/Sotheby"s
Rolex Daytona modelo 'Eye of the Tiger' Imagem: Divulgação/Sotheby's

Colunista do UOL

12/04/2023 04h00

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De que parte do intestino grosso alguém puxa pelo ânus uma cretinice dessa monta com tamanha soberba, "Cyanara"?

Entre potes de canjica, ovos de chocolate e travessas de bacalhoada dos festejos do domingo de Páscoa, vi pelo Twitter a provocação da jornalista Barbara Gancia com interesses médicos. Por causa das estripulias gastronômicas, tive certeza de que alguém do outro lado da rede sofria de dramas intestinais. Não era.

Minutos antes, Cynara Menezes, jornalista de foice e machado, tuitara: "a única utilidade de um Rolex é ostentar. Ninguém precisa de um Rolex. Primeiro porque é possível ver a hora no celular. E mesmo que você queira de fato usar um relógio, há zilhões de modelos mais baratos".

Barbara, com conhecimento de berço, saiu em defesa da marca suíça. Defendeu a tradição, as centenas de modelos lançados a passear por aí no braço dos endinheirados e a capacidade criativa do empreendedor Hans Wilsdorf de juntar um punhado de peças e inventar um dos relógios mais precisos do mundo.

Desde o último domingo (8), a briga tem desdobramentos, mais ou menos escatológicos, entre as duas jornalistas e suas hordas de seguidores enlouquecidos. Faço um pedido de apaziguamento dos ânimos com ganas de passarmos à próxima polêmica do Twitter. É importante ficar claro: ter um Rolex é sim uma ostentação. Mas o que não é?

Não importa a classe social, a posição política, o tom do vermelho da bandeira ou os quilates do berço de ouro: nós, de alguma forma, estamos sempre preocupados em ostentar sinais de diferença.

Michèle Lamont e Manuel Fournier, sociólogos franceses com anos de estudo no tema, nos lembram que "em qualquer grupo ou sociedade, sempre houve, e sempre vai haver, fronteiras e diferenças". Do Oiapoque ao Chuí, de Xangai a Nova York, do chique Itaim Bibi à hipster Santa Cecília, onde há gente vivendo junta há a procura pela construção de bordas, limites e signos de distinção. Nesse jogo, amigos, conhecimentos e, sobretudo, coisas, são fortes aliados no levantar dos muros entre os "de dentro"e os "de fora". A vida social é marcada por batalhas e disputas pela definição de quem é quem, do que vale a pena ser valorizado ou estigmatizado.

O que muda é o que se ostenta, mas todo mundo ostenta. É ostentação carregar 8.000 dólares disfarçado de relógio de pulso, do mesmo modo que também é ostentação ter dezenas de plantas no canto do prediozinho antigo do bairro chique para mostrar preocupação ambiental; brigar por um apartamento com piso de taco; preocupar-se se o kombucha é artesanal ou industrializado, como símbolo do interesse na invenção de um novo capitalismo; colecionar milhares de livros não lidos nas paredes da sala, ou passar uma temporada no Quartier Latin, em Paris, para rever os amigos boho chic dos tempos áureos das redações.

Desse modo, classificar o comportamento de alguém como ostentação é se valer da própria moralidade e das réguas de valor para aferir o que os outros podem ou não comprar com seus salários ou herança.

A briga do Twitter não tem fim porque não há acordo possível. Ali estão em ação dois modos completamente distintos de pensar sobre o valor (custo/benefício) dos relógios, mas, de igual modo, duas soluções completamente diferentes para a sanha humana, compartilhada por todos nós, herdeiros ou não, de sempre marcar que não se é igual aos outros.

Bárbara e Cynara, reatem os laços. Em tempos de ódio, não há ostentação maior.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL