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Corrida de rua: como o racismo ocorre no mais democrático dos esportes

Corredoras disputam a São Silvestre em 31/12/2019 - Roberto Casimiro/Fotoarena/Estadão Conteúdo
Corredoras disputam a São Silvestre em 31/12/2019 Imagem: Roberto Casimiro/Fotoarena/Estadão Conteúdo

Luiza Pollo

Colaboração para o TAB

20/08/2020 04h00

Um tênis e disposição. Em tese você só precisa disso para praticar corrida de rua, esporte que vem ganhando adeptos e as redes sociais com velocidade nos últimos anos. Pensando bem, um espaço bem pavimentado talvez também seja importante. Uma rua segura é outro ponto. Roupas chamativas são úteis para quem sai à noite e precisa se destacar na paisagem, alertando os motoristas.

A lista de essenciais começa a ficar cara, sem falar dos "supérfluos".

Tênis mais confortáveis e tecnológicos podem chegar a custar R$ 1.000. Um relógio para contar seu "pace" (ritmo de corrida), conectado a um aplicativo no celular, dificilmente sai por menos de R$ 200. A mensalidade de uma assessoria de corrida (para quem quer treinamento) também fica na faixa dos dois ou três dígitos.

O esporte que se diz inclusivo também cria camadas de exclusão, observa Debora Taylor, fundadora do PRJCT//RUN, um grupo de corrida (crew) gratuita em São Paulo focada em representatividade.

"Quando você olha as redes sociais, as capas de revistas [de corrida], quem você vê? Aquela menina 'rasgada', branquinha, aquele cara forte, com dieta de leite de amêndoas, leite de cabra, damasco; 90% dos brasileiros não consomem isso. Eu não me via representada nas corridas de rua", relata.

Taylor corre há três anos e meio, e decidiu criar o projeto depois de um ano praticando a atividade física que trouxe saúdes física e mental a uma vida antes tomada por longas horas de trabalho como gerente de loja — e consequentemente sedentária, reconhece ela. "Quando fiz o projeto, não foi nem pela corrida em si, foi como um protesto, mesmo. Por ser mulher, preta, da periferia, percebi que era possível, sim. Eu não podia comprar um tênis de R$ 1.000, mas dava para comprar outro, no outlet, por R$ 200. Queria tirar um pouco essa impressão do 'isso não é para mim'."

Em contato com corredores de diversos países, Taylor correu sua primeira maratona há menos de um ano, em Nova York, em novembro de 2019, e mais recentemente ganhou uma capa de revista (fictícia) de amigos da Inglaterra.

Ela conta que a montagem feita por seus colegas veio de uma onda de questionamentos sobre diversidade e representatividade negra na corrida de rua, fomentada pelos protestos contra o racismo que eclodiram após o assassinato de George Floyd no fim de maio.

#IRunWithMaud

Três meses antes da morte de Floyd, outro homem negro foi morto nos Estados Unidos, dessa vez enquanto corria em um bairro residencial no estado da Geórgia: era Ahmaud Arbery, de 25 anos. O caso chamou atenção um mês mais tarde, quando foi revelado o vídeo que mostra como tudo aconteceu.

Dois homens brancos (pai e filho), de carro, perseguiram e atiraram em Arbery enquanto ele se exercitava, após o terem confundido com um suspeito de ter invadido casas na vizinhança. Em junho, eles foram presos, acusados de assassinato e agressão.

A comoção gerada pela morte de Arbery fez com que o tema "running while black" (correr sendo negro, em tradução livre), e a hashtag #IRunWithMaud (eu corro com Maud, em referência a Ahmaud), reunissem depoimentos de outros corredores negros nos Estados Unidos, ressaltando que o racismo tem suas particularidades na corrida de rua.

Sterling K. Brown, ator conhecido pelo papel de Randall na série "This Is Us", é corredor tanto na ficção quanto na vida real, e fez uma transmissão ao vivo após correr em homenagem a Arbery, no dia do aniversário de 26 anos do jovem. "Eu corri minhas 2,23 milhas, e corri usando máscara. É preciso usar máscara. Normalmente uso a minha por meia milha, tiro e aí me sinto leve e livre. Mas senti que precisava correr as 2.23 milhas com a máscara. E foi difícil. Quando tirei, senti que conseguia respirar. Mas eu sinto que, em um nível metafórico, estou correndo de máscara há muito tempo", contou o ator.

Ele se refere à necessidade de fazer um esforço extra para se mostrar pacífico, garantir que não é uma ameaça, para não assustar uma pessoa branca. Na corrida, ele relata que, ao vê-lo de longe, há quem reaja com medo, de forma automática.

O estatístico Oliver de Paula, que corre há 20 anos na rua e em parques de São Paulo, conhece bem essa experiência. "À noite, a pessoa vê um vulto negro correndo em sua direção e se assusta. Uma mulher, uma vez, segurou a bolsa forte e atravessou a rua [ao me ver]. Mas isso é comum em qualquer lugar. Mesmo quando estou só andando na rua à noite. Na corrida acho que assusta mais porque você está rápido", reflete ele.

Tem uma coisa que você precisa fazer, às vezes, como um homem negro que tende a estar em círculos predominantemente brancos: você precisa garantir que, para ser ouvido, você precisa primeiro apaziguar, ou tranquilizar as pessoas com quem você quer ter uma comunicação autêntica

Sterling K. Brown, ator

Oliver de Paula em maratona em Porto Alegre - Oliver de Paula/Arquivo pessoal - Oliver de Paula/Arquivo pessoal
Oliver de Paula em maratona em Porto Alegre
Imagem: Oliver de Paula/Arquivo pessoal

'E os quenianos?'

Há outro aspecto da discriminação ligada à corrida que é a associação do esporte a uma maior performance de atletas negros. A Corrida Internacional de São Silvestre, por exemplo, é liderada por quenianos. Foram 15 vezes vencedores na prova masculina e 14 na feminina — todos atletas negros e negras. Oliver de Paula relata que os comentários que associam sua boa performance na corrida ao fato de ele ser negro são bastante comuns.

"As pessoas te enxergam com uma baita expectativa. É até meio estranho, é como se fosse uma valorização na corrida. Acaba sendo uma forma de discriminação, mas sempre fui muito competitivo e acabo usando isso para me fortalecer", diz o estatístico.

Marco Antonio Bettine de Almeida, professor associado da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP) e membro da International Sociology of Sport Association, explica que, no Brasil, essa associação tem origem na década de 1940. "No mundo pós-Segunda Guerra Mundial, com a criação dos Estados Africanos, iniciou-se um processo de africanização das corridas de rua, principalmente depois da década de 1990. As provas de corrida sempre foram vistas como menos glamurosas no Brasil. A elite nunca se importou muito, ficando a modalidade relegada a grupos sociais menos favorecidos, no esporte de alto rendimento", relata.

No lazer, a corrida foi ganhando fama com os coopers e atletas amadores começaram a contar como uma estrutura cada vez mais profissional (e, consequentemente, custosa). Almeida conta que isso tem até nome na literatura: amadores sérios, semi-profissionais, ou atletas não profissionais de alta performance. É desse grupo que os corredores negros e de baixa renda começaram a ser segregados.

"É nesse momento que se inicia mais claramente um racismo estrutural que reproduz o racismo brasileiro. Pois a corrida desses atletas, de não profissionais de alta performance, brancos, lembra o início do esporte com a elite inglesa ou brasileira branca e eugênica", diz o professor. "Ganham contorno primeiro uma disputa pelos bens simbólicos (vencer ou chegar bem perto dos profissionais — que eram na sua maioria negros), ou seja, uma luta pela hegemonia de raça; e em segundo lugar, uma disputa de bens, com a aquisição de equipamentos esportivos muitas vezes melhores que os dos próprios atletas de elite."

União de forças

Debora Taylor e Oliver de Paula frisaram diversas vezes que o racismo na corrida é uma das muitas representações do racismo estrutural, presente em todas as esferas. Taylor explica que decidiu inclusive criar o PRJCT//RUN não tanto pelas especificidades do esporte em si, mas como uma forma de unir forças.

"Eu faço isso por doação mesmo, digo que me doo completamente para o projeto", afirma. "Se chega alguém que está começando agora e me diz que não quer correr, quer só andar, não importa, eu vou ficar para trás com ela. Não importa se você vai demorar duas horas, nós vamos juntas."