Da FUA à 'Batalha da Sé': as raízes do movimento antifascista no Brasil
No meio de uma pandemia e profunda crise política no Brasil, uma palavra ressurgiu através de manifestações organizadas nas últimas semanas em diversas cidades, em especial na capital de São Paulo: antifascismo.
Não se trata de algo novo: o movimento antifascista surgiu na década de 1920 para combater tudo que fosse atrelado à ideologia fascista. Esse pensamento representa uma união de diversos espectros políticos contrários ao fascismo, dos comunistas aos social-democratas.
O movimento antifascista faz parte da História. Na década de 1930, em resposta ao fascismo em ascensão na Europa e a criação da Ação Integralista Brasileira (AIB), foi criada a Frente Única Antifascista (FUA) em São Paulo, um movimento heterogêneo que durou poucos anos e bateu de frente com a AIB, fundada por Plínio Salgado. Para entender melhor essa história, o TAB conversou com os historiadores Leandro Pereira Gonçalves, professor de História do Brasil Republicano e de América Contemporânea na UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora) e autor do livro "Plínio Salgado: um católico integralista entre Portugal e o Brasil (1895-1975)", e Ricardo Figueiredo de Castro, doutor em História Social pela UFF (Universidade Federal Fluminense) e professor de História na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
O que foi a Frente Única Antifascista? A FUA foi um movimento político criado em 25 de junho de 1933 na capital de São Paulo, com o intuito de combater o crescimento do fascismo. Fizeram parte dela sindicatos, estudantes, jornalistas, intelectuais, operários e simpatizantes da luta contra o fascismo, incluindo anarquistas. Entre seus apoiadores estavam nomes importantes como o do escritor Mário Pedrosa e o jornalista Fúlvio Abramo, ao lado de seus irmãos Lívio, ilustrador, e Lélia, atriz. Participaram do evento de fundação, dentre outras, organizações como o comitê paulista do PSB (Partido Socialista Brasileiro), o Grêmio Universitário Socialista, a União dos Trabalhadores Gráficos (UTG), a Legião Cívica 5 de Julho, a Frente Negra Comunista, anarquistas, a Liga Comunista (LC) e a seção paulista do Partido Socialista Italiano. Francesco Frola, dirigente do Partido Socialista Brasileiro, foi nomeado para dirigir a reunião inaugural. A escolha não foi aleatória. Frola era imigrante italiano e representava a união do antifascismo italiano (que já estava ativo desde a década de 1920, em decorrência da ditadura de Benito Mussolini) com as militâncias brasileiras.
Mas o fascismo era na Europa. Por que os brasileiros se preocuparam com isso? A década de 1930 foi um período extremamente turbulento na história mundial. Pense na crise do liberalismo, na quebra da Bolsa de Valores em Nova York, em 1929, na radicalização do comunismo e na ascensão de governos fascistas na Alemanha e Itália. Foi um período intenso de polarização, que culminou no que conhecemos como a Segunda Guerra Mundial. O Brasil não ficou de fora. Em 1932, Plínio Salgado fundou a Ação Integralista Brasileira (AIB), diretamente inspirada no fascismo italiano. Os integralistas ganharam o apoio das elites da época, especialmente em São Paulo, e eram notoriamente violentos com grupos de oposição da esquerda. "O antifascismo é reação a algo, esse é um ponto importante de lembrar", explica Leandro Gonçalves.
Então a FUA era uma grande união de progressistas? Sim e não. A FUA era alinhada ao pensamento de Leon Trotsky, um dos líderes da Revolução Russa de 1917, que já havia rompido com Joseph Stalin e vivia no exílio. O PCB (Partido Comunista Brasileiro), por sua vez, seguia diretrizes da Internacional Comunista, e só reconhecia correntes alinhadas à União Soviética. Para "trotskistas", o fascismo era uma ameaça iminente para todo mundo, por isso o grupo defendia a formação da frente única. Já os comunistas do PCB não queriam de jeito nenhum se associar aos sociais-democratas. Por isso, o PCB ficou oficialmente de fora do evento. No entanto, membros do PCB chegaram a participar informalmente em alguns atos, em especial da Batalha da Sé, em 1934. O PCB formou sua própria frente antifascismo, em resposta ao integralismo.
O que a FUA fazia? O carro-chefe da Frente era a articulação de comícios, manifestações e a distribuição do impresso "O Homem Livre", na cidade de São Paulo -- jornal que acabou virando divulgador da FUA, devido à alta qualidade do impresso, com seus textos críticos aos governos fascistas. Nos primeiros volumes, o impresso até dedicou uma coluna para responder a um artigo do "Deutscher Morgen", jornal oficial do Partido Nazista Brasileiro. A ação mais comentada e direta com participação da FUA, entretanto, foi a famosa Batalha da Praça da Sé.
Já teve batalha na Praça da Sé? Sim. O evento também ficou conhecido como "Revoada dos Galinhas Verdes" -- um confronto violento da FUA e outras organizações e frentes de esquerda contra os integralistas da AIB, em 7 de outubro de 1934. Não foi uma batalha espontânea. Os integralistas disputavam espaço e território, promoviam eventos e desfiles pelo país. Em 20 de abril daquele ano, 4.000 membros da AIB desfilaram nas ruas do Rio de Janeiro, usando suas camisas verdes, calças e gravatas. Um mês depois, três mil marcharam em São Paulo. Houve até uma marcha mais tímida em Salvador.
E o confronto começou como? Em 3 de outubro, o clima fechou de vez na cidade de Bauru, no interior de São Paulo, quando a AIB da cidade organizou uma grande festa para receber Plínio Salgado, em comemoração à Revolução de 30. Preparados para desfilarem pelas ruas da cidade, foram repreendidos por populares e por membros do Sindicato dos Empregados e Operários da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. No tumulto, um tiro foi disparado e o alvo era claro: Plínio Salgado, líder da AIB ao lado de Gustavo Barroso e Miguel Reale. "Foi uma confusão. Comerciantes fecharam as portas e o confronto foi estabelecido: de um lado, integralistas milicianos (havia um milícia armada dentro da AIB) e, do outro, sindicalistas. Houve um morto e quatro feridos, todos integralistas. O morto era um operário servente da ferrovia da estrada de ferro e membro da AIB", conta Gonçalves.
Como foi parar em São Paulo? Quatro dias depois, estava prevista uma marcha integralista na capital, ao lado de seus colegas fascistas. Segundo historiadores, há uma disputa de narrativas em cravar quem, de fato, convocou uma contra-manifestação. No entanto, todas as frentes antifascistas se juntaram naquele dia com um único propósito: esmagar o desfile da AIB. "Foram quatro horas de tiroteio na Praça da Sé, resultando em seis mortos e 50 feridos", conta Gonçalves. Entre os mortos, dois agentes policiais, um guarda civil, três integralistas e um estudante antifascista, Décio Pinto de Oliveira.
E por que 'galinhas verdes'? Para não serem mortos, fascistas brasileiros tiraram as camisas verdes que os caracterizavam e deixaram a praça forrada com suas vestimentas. O nome "Revoada dos Galinhas Verdes" refere-se a isso. Em de seus impressos, o jornalista satírico Barão de Itararé publicou uma corruptela do lema da AIB, de "Deus, Pátria e Família" para "Adeus Pátria e Família".
O que aconteceu depois da Batalha? A FUA já estava mais ou menos adormecida antes da Batalha da Praça da Sé, em 1934. No entanto, a repercussão positiva da batalha contra a AIB forjou um caldo perfeito para fermentar o sentimento antifascista e a formação de uma frente eleitoral das esquerdas, todas bastante críticas à Constituinte de Getúlio Vargas. Para Plínio Salgado, a presença de antifascistas em São Paulo não facilitou sua vida. De 1939 a 1946, ele viveu exilado em Portugal. Quando tentou retornar para São Paulo, com o fim da Segunda Guerra Mundial, foi vaiado na chegada e teve que se estabelecer, por fim, no Rio de Janeiro.
A FUA foi tão importante assim? Apesar da atuação curta, a importância da Batalha da Sé e a existência de uma reação ativa e forte contra o fascismo na época pavimentou o caminho para a articulação de frentes de oposição contra o autoritarismo, como a Aliança Nacional Libertadora (ANL), que pouco tempo depois organizou a Revolta Comunista de 1935, liderada por Luís Carlos Prestes. Quase um século depois, o sentimento antifascista voltou à pauta e tem mobilizado grupos e indivíduos que se colocam contra governos autoritários e suas forças policiais violentas. No Brasil, grupos antifascistas afirmam que a gestão e as falas de Jair Bolsonaro (sem partido) possuem diversos pontos em comum com regimes fascistas históricos. Atualmente, a bandeira antifascista já é levantada por grupos como entregadores de aplicativo, torcidas organizadas e até policiais brasileiros.
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