'Self-branding': as redes sociais estão nos transformando em marcas?
Do início da pandemia até agosto, mais de três milhões de brasileiros perderam o emprego, segundo o IBGE. Entre as muitas estratégias defendidas em reportagens e artigos de coaches e gurus para lidar com a crise está promover uma "marca pessoal" em redes sociais como Instagram, Twitter e Facebook.
A ideia é pensar em si mesmo como "empresa de uma pessoa só" e usar a exposição das redes para se apresentar e chamar a atenção de empregadores ou clientes.
A recomendação é seguida por influenciadores digitais, que cultivam o status de microcelebridades. Mas a lógica da "marca pessoal" também é adotada por médicos em busca de pacientes, acadêmicos construindo uma reputação, cabeleireiros, artistas, professores.
Mesmo quem não tem pretensão de faturar com redes pode se pegar pensando duas vezes antes de postar "conteúdo queima-filme", que diminuiria sua empregabilidade. Um nome utilizado no campo do marketing para esse esforço de administrar uma marca pessoal é "self-branding".
O termo se refere a um conjunto de táticas para estabelecer uma boa reputação. "A pessoa é encorajada a se autopromover continuamente como um bom trabalhador, e também como alguém normal, amável, com interesses e uma vida própria", afirma em entrevista ao TAB Jennifer Whitmer, professora-assistente do Departamento de Sociologia da Universidade Estadual da Califórnia.
Whitmer é autora do artigo "Você é sua marca: self-branding e a mercantilização de si", publicado em 2019 na revista acadêmica Sociology Compass.
A origem do conceito
Whitmer escreve que um fator que impulsionou a ideia de self-branding nos Estados Unidos é a precarização do mercado de trabalho. "A partir da década de 1970, o neoliberalismo reduziu o poder dos sindicatos, diminuiu a seguridade social e a estabilidade. O self-branding emergiu como forma de lidar com esse mercado de trabalho instável. Seu discurso dá a sensação de que o trabalhador tem controle sobre sua trajetória", diz Whitmer.
Mesmo no caso de profissões tradicionais, empregos fixos e assegurados por direitos trabalhistas são substituídos por trabalhos precários, autônomos, e de prazo curto ou incerto. O trabalhador é incentivado a empreender para se proteger.
É o caso do freelancer, que não mantém vínculo formal com empresas para as quais realiza trabalhos pontuais. No Brasil, o trabalho autônomo cresceu ano a ano na última década. Segundo dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua, do IBGE, trabalhadores por conta própria eram 22,7% do total das pessoas ocupadas no segundo trimestre de 2012. No segundo trimestre de 2020, eram 26%.
Parte desse fenômeno se deve ao que é chamado no país de "pejotização", termo que vem da sigla PJ (pessoa jurídica). É o processo em que mais pessoas têm seus serviços contratados por meio de "empresas" constituídas por elas mesmas — cada empresa com seu número de CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica). Para o empregador, é mais fácil contratar e demitir, de acordo com a demanda.
O artigo que popularizou o termo
O conceito de self-branding se disseminou em 1997, quando o escritor Tom Peters publicou no site Fast Company o artigo "The Brand called You" (a marca chamada você, em tradução livre). Peters descreve o desenvolvimento de uma marca pessoal como inescapável na sociedade individualista contemporânea.
Das roupas à caneca em que bebe café, tudo pode ser interpretado por outros como parte de uma marca pessoal. Por isso, Peters conclama o leitor a assumir conscientemente a gestão de sua marca. "Nós somos presidentes de nossas próprias companhias: Eu Ltda. Para se manter no mercado hoje, a tarefa mais importante é ser chefe de marketing da marca chamada Você", escreve.
Com o desenvolvimento da tecnologia da informação, qualquer um passou a ter canais para se conectar com um público, a qualquer hora do dia. Por meio de plataformas como LinkedIn, Twitter, Instagram ou Facebook, é possível trabalhar a própria marca divulgando feitos profissionais, ou se mostrando sensível a acontecimentos de destaque no ciclo de notícias.
Mesmo ativistas, com discursos contra o status quo, são encorajados a promover suas próprias imagens, como "agentes de mudança".
Whitmer define essa lógica como a "mercantilização da vida pública". "Uma conversa não é só uma conversa, é networking, é trabalho. Você não posta por diversão, mas pelo valor que isso gera", exemplifica.
'Quer ter sucesso? Seja você mesmo'
Os manuais em torno do self-branding afirmam a necessidade de "ser autêntico" para ter sucesso. Ou seja, exibir a própria individualidade de forma ostensiva.
Segundo essa ideia, a individualidade, valorizada pela lógica neoliberal, não é somente especial, mas uma potencial fonte de renda. Basta comunicá-la com eficácia.
Na prática, no entanto, as pessoas divulgam seletivamente informações sobre si. Quem se promove precisa ser visto como alguém consistente, "seguro para se trabalhar junto". A imagem deve ser apresentável e amigável, capaz de se vincular a uma empresa sem prejudicá-la.
Mas a busca por autenticidade sob o olhar do público traz uma contradição por princípio. "Se a sobrevivência social, e mesmo o sucesso competitivo, dependem de uma contínua auto-encenação pensando no público, o que existe por trás da máscara?", questionou em 1991 o professor de estudos culturais e sociologia Andrew Wernick, em seu livro "Promotional Culture" (cultura promocional, em uma tradução livre).
As redes sociais representam novos obstáculos. Ao contrário do que acontece com a fala, que é efêmera, qualquer informação publicada continua on-line. Mesmo quando o post é apagado, prints ou vídeos de tela podem voltar para assombrar o autor, fora de contexto.
Autenticidade vigiada
Autora dos livros "Presos que menstruam" (Record, 2015) e "Eu, Travesti" (Record, 2019), a jornalista e escritora feminista Nana Queiroz ganhou notoriedade em 2014 quando lançou a campanha "Não Mereço ser Estuprada". Hoje, divulga em suas redes sociais imagens de sua vida pessoal ao lado de informações sobre feminismo e outras causas, como antirracismo.
"O machismo prospera no silêncio, então existe uma cobrança muito grande para eu ser autêntica. E, quando você é autêntica, tem que desagradar. Por outro lado, quando sou muito verdadeira quanto a coisas para as quais as pessoas não estão preparadas, sou perseguida. Nunca vou saber quanto do meu transtorno de ansiedade vem das redes sociais", diz.
Autora da coletânea "Parece que piorou" (Companhia das Letras, 2020), a quadrinista Bruna Maia promove seus trabalhos na página estarmorta, em que também publica imagens de si mesmo e fala de temas políticos caros a ela, como aborto.
Ela avalia que é difícil ser realmente autêntica em frente a um público. "Pessoas não normativas nunca tiveram tanto espaço quanto hoje. Mas eu vejo a apropriação de muitos discursos políticos de forma rasa e vendável. Isso acontece inclusive com a valorização do que é fora do padrão. Tudo é consumido, compartilhado e esvaziado"
Eu, francamente, desacredito da possibilidade de autenticidade em qualquer espaço que não seja a solidão. E, mesmo na solidão, a maioria das pessoas é inautêntica, porque encarar os próprios defeitos é difícil
Bruna Maia, autora de "Parece que piorou"
Quem ganha com o self-branding?
Para Whitmer, o discurso serve como justificativa para que indivíduos postem constantemente sobre si. Mesmo nos inúmeros casos em que esse trabalho não traz ganhos, as plataformas colhem informações valiosas sobre hábitos dos consumidores, que podem ser exploradas por anunciantes.
Whitmer também questiona se as redes democratizam o perfil de quem obtém visibilidade e sucesso. Ela avalia que os algoritmos tendem a impulsionar o conteúdo que normalmente já obteria mais audiência, como celebridades e corpos normativos, jovens, magros, musculosos.
A artista plástica Lyz Parayzo usa as redes sociais para divulgar sua trajetória e suas obras. Ela avalia, no entanto, que, no seu caso, as redes foram importantes para driblar instituições tradicionais.
"O artista tem que criar uma marca, um capital simbólico que valoriza o seu trabalho. Antes, só conseguiam por meio de instituições, como museus e galerias. Por isso, a arte brasileira foi escrita por homens ricos, masculinos. A internet quebra isso", afirma.
"Quem não tem o perfil hegemônico do poder, branco e de classe média alta pode postar que está trabalhando na Europa, e isso gera um capital simbólico que leva alguém a querer sua obra. Especialmente no caso do Brasil, que tem esse fetiche colonial. As pessoas não querem comprar só a Lyz que está no museu, querem comprar porque conhecem a minha presença na internet", afirma.
Whitmer diz que a ideia por trás do self branding não é necessariamente ruim como estratégia para construir uma reputação. Mas questiona o imperativo da autopromoção.
"É um trabalho que coloca muito peso sobre as pessoas. A atenção é um recurso finito, e talvez você não tenha qualidades valorizadas pelo mercado, e não seja vendável. Nós vivemos em uma sociedade hierárquica, e nem todo mundo pode ter sucesso", diz.
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