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Como aparições em TV, filmes e séries ajudaram a carreira política de Trump

Donald Trump durante gravação do programa "O Aprendiz" da rede de televisão americana NBC - Amanda Edwards/Getty Images/AFP
Donald Trump durante gravação do programa "O Aprendiz" da rede de televisão americana NBC Imagem: Amanda Edwards/Getty Images/AFP

Caio Delcolli

Colaboração para o TAB

22/10/2020 04h00

"É o Donald! Ai, meu Deus", diz Carlton (Alfonso Ribeiro), o filho mimado da família Banks, antes de desmaiar ao ver seu ídolo e cair nos braços do pai, o tio Phil (James Avery). Ele larga Carlton no sofá e dá as boas-vindas ao ilustre convidado, que está com a esposa tiracolo. A filha mais nova, Ashley (Tatyana Ali), não está feliz com a presença dele naquela mansão em Los Angeles. "Obrigada por arruinar minha vida!", esbraveja a adolescente. "Todo mundo sempre está me culpando por tudo", diz o convidado, Donald Trump. O protagonista da série, Will (Will Smith), se oferece a cortar a grama todo sábado caso o milionário pague cinquenta mil dólares a mais na compra.

Antes de chegar à Casa Branca, o atual presidente dos Estados Unidos já havia passado por várias fases em sua carreira. Quando ele apertou a mão de Will Smith em um episódio de "Um Maluco no Pedaço" em 1994, ele estava na fase de fazer papel de si mesmo em séries de comédia. Naquela mesma década, ele participou também de "The Nanny", "Sex and the City" e "O Homem Elétrico".

No livro "Audience of One: Donald Trump, Television, and the Fracturing of America" (Liveright, 2019), o jornalista James Poniewozik argumenta que a televisão foi fundamental para o republicano ser eleito presidente em 2016. Se não fossem pelos quase 40 anos de aparições em talk-shows, filmes, programas de auditório, séries e, é claro, "The Apprentice" ("O Aprendiz"), o empresário que levantou torres enormes em Manhattan não teria conseguido um lugar para si no imaginário popular americano.

Poniewozick, que também é crítico de TV do "New York Times", defende em seu livro que Trump sabe usar simbolismos a seu favor, tendo mostrado aos espectadores, a partir dos anos 1980 — época em que foi consolidada, na cultura daquele país, a ideia de que ricos compõem uma nova categoria de celebridade —, como é viver na opulência. De acordo com o jornalista, esse processo foi essencial para o presidente estar em simbiose com o meio.

Por outro lado, enquanto os americanos se habituavam a vê-lo na televisão como um sujeito bem-humorado de roupa social, não havia simbiose com as contas em dia. Trump estava com os negócios em hemorragia financeira.

Em 1988, por exemplo, ele comprou o Plaza Hotel, em Manhattan, por US$ 407 milhões. Dois anos depois, as dívidas do empreendimento, somadas às de outros, chegavam a US$ 3 bilhões. Em 1992, o hotel estava em plano de recuperação; naquele mesmo ano, Trump fez uma emblemática participação no filme "Esqueceram de Mim 2: Perdido em Nova York" fazendo papel, é claro, de si mesmo.

O protagonista vivido por Macaulay Culkin topa com o empresário nos corredores do Plaza Hotel e pergunta a ele onde fica lobby, sem saber que o homem é dono daquela megaconstrução luxuosa. Já em "Os Batutinhas" (1994), ele vive o pai de uma das crianças que protagonizam a história. "Você é o melhor filho que o dinheiro pode comprar", ele diz ao menino rico do grupo.

Segundo Poniewozick, para o presidente, projetar é mais importante do que ser — e o que ele projeta se torna o que ele é. Trump seria, portanto, uma legítima figura pós-moderna.

O presidente indicado ao Emmy

Para entender um presidente, é comum que jornalistas recorram às biografias deles. Emily Nussbaum, da "New Yorker", fez diferente: ela foi "maratonar" o reality show "The Apprentice" (NBC). A crítica de TV escreveu para a revista, em 2017, o ensaio "The TV That Created Donald Trump" (A TV que criou Donald Trump, em tradução livre). Depois da imersão, ela concluiu que "Apprentice" foi essencial à chegada do republicano à Casa Branca, pois o reality show melhorou a imagem dele.

Depois de ter sido o personagem cômico, o ricaço endividado e ter histórias de traições e divórcio em revistas de fofoca, chegara o momento de ter outro papel: o de homem de negócios bem-sucedido.

A série "Friends" estava perto de terminar e a emissora NBC precisava de um novo sucesso, e nenhum novo programa parecia dar certo. O produtor de TV Mark Burnett e Trump — ambos mantém o relacionamento até os dias de hoje — propuseram a Jeff Zucker, então diretor da divisão de entretenimento do canal, a ideia de "Apprentice", uma grande franquia que poderia trazer milhões em publicidade. Deu certo: o reality show fez enorme sucesso, bem como Trump e sua clássica fala "você está demitido!" — na versão brasileira, repetida por Roberto Justus e João Dória — aos participantes eliminados da competição.

Nussbaum argumenta que o apresentador passou a projetar a imagem de um homem de negócios vitorioso, alguém que deu a volta por cima e é excelente negociador. Era assim também que vários participantes o viam — eles falavam bem de Trump até pelas costas. Quando levavam broncas do apresentador, entendiam que era para o bem deles. Muitos espectadores latinos e negros viraram fãs do republicano nessa era, pois gostavam de se ver retratados no programa, entre os participantes, como empreendedores.

Entretanto, a audiência começou a cair depois da primeira temporada. Trump mentia a repórteres, dizendo que elas apenas cresciam. O programa foi exibido de 2003 a 2015 e, durante esse período, nenhuma outra tentativa de Trump de atuar na TV como produtor deu certo. Ele decidiu, então, dedicar seus esforços à WWE, empresa de entretenimento multimídia de luta livre profissional, que ele patrocinava desde os anos 1980. Em seguida, veio o "The Celebrity Apprentice", que o ajudou a desenvolver a persona de filantropo.

Segundo o IMDb, Trump tem 386 créditos em produções de não ficção (a primeira é de 1981, enquanto a mais recente é deste ano), 27 como ator e 20 como produtor; nesta lista, encontram-se "The Apprentice" e vários especiais de concursos de beleza feminina. Ele foi indicado ao Emmy duas vezes na categoria de melhor reality show de competição.

Em 2011, ele passou a ser um frequente convidado do "Fox & Friends", do canal pago que é catalisador da direita americana. Antes homem de negócios, agora ele era uma figura política. Ele foi comentarista do programa até anunciar a candidatura, em 2015.

Criador e criatura

Segundo estudo de James Shanahan, reitor da escola de mídia da Universidade de Indiana, e Michael Morgan, professor emérito de comunicação da Universidade de Massachusetts Amherst, publicado em 2017 no periódico "Journal of Communication", a TV cultiva autoritarismo — e, mesmo que indiretamente, ajudou a eleger o atual presidente americano.

Dois meses antes das convenções partidárias de 2016, quando os pré-candidatos na disputa eram Trump e os democratas Hillary Clinton e Bernie Sanders, os pesquisadores perguntaram a mil americanos adultos sobre a intenção de voto e os hábitos de consumo de televisão. Os que eram telespectadores ativos tiveram a maior pontuação de inclinação à posicionamentos autoritários e declararam voto no republicano, independente de gênero, idade, educação, ideologia política, etnia e consumo de notícias.

"Acredito que, naquele ano, a campanha de Trump entendeu os atributos de personalidade dele, e os fatores de personalidade de seus eleitores que poderiam ser bem-sucedidos", opina Shanahan, em entrevista ao TAB. "Eles podiam observar isso todo dia, nas interações de Trump com eleitores e em comícios."

O professor pondera que, embora a maioria dos americanos tenha votado em Clinton, o atual presidente teve muita força. "De certa maneira, isso prova que a mídia de 'massa' ainda pode ser bastante poderosa", analisa.

Poniewozik resgata em seu livro que, quando tinha 34 anos, em 1980, Trump foi um dos entrevistados do programa "Rona Barrett Looks at Today's Super Rich". Em um trecho que não foi ao ar, mas surgiu no YouTube há poucos anos, a apresentadora pergunta ao jovem se ele planeja um dia concorrer à eleição presidencial dos Estados Unidos. A resposta é não. Segundo ele, as pessoas verdadeiramente capazes — os diretores de grandes corporações — não têm interesse nisso e, ironicamente, a culpada é a TV, por ter "prejudicado o processo político".

"Alguém com opiniões fortes, do tipo que podem ser um pouco impopulares, mas talvez sejam as corretas, não teria necessariamente a mesma chance de ser eleito do que alguém sem cérebro, mas com um grande sorriso", diz Trump. "Abraham Lincoln provavelmente não seria elegível hoje por causa da televisão."